O mesmo pode ser dito de Miles Davis. Ali, naquele exíguo espaço dos palcos e estúdios, preenchido pelos cinco ou seis caras de sua banda, ele é o maior trompetista do mundo. E olha que nas incontáveis formações de seus combos, pontuaram gigantes como John Coltrane, Bill Evans, Ron Carter, Red Garland, Paul Chambers, Horace Silver, Wayne Shorter, entre muitos outros. Mas Miles é “o” líder e esses gênios todos sempre tiveram que se curvar à sua personalidade magnética. Ao posicionar a embocadura do trompete, colocar surdina e começar a soprar, Miles Davis deixa de ser um músico e se transforma em um mito.
Alguns iconoclastas haverão de insurgir-se contra essa afirmação e, certamente, dirão: “Gillespie era muito melhor que Miles” ou “Clifford Brown punha Miles no bolso”! Mas Davis, que decerto não era um virtuose, tampouco era apenas um músico. Ele era o chefe, o patrão, o sujeito que com um único olhar ou um grunhido ininteligível enquadrava todos os caras da sua banda – fossem eles uma lenda viva como Oscar Pettiford ou um quase iniciante como Herbie Hancock. Miles tocava de costas para platéias que pagavam fortunas para lhe assistir, por um único motivo: porque ele podia fazê-lo!
O soco dado em Coltrane em uma determinada oportunidade é emblemático: afundado nas drogas, o saxofonista desperdiçava seu talento e seus parcos recursos em uma vertiginosa descida aos infernos. Miles, descontente com a apatia do seu tenorista, o despediu com um vigoroso soco na cabeça – e olha que Coltrane tinha quase o dobro do seu tamanho. A amizade ficou abalada e John foi tocar com Monk, aperfeiçoando o seu estilo. Abandonou as drogas e, algum tempo depois, não apenas a paz foi selada como foi reintegrado à banda, participando das gravações do magistral “Kind Of Blue”.
Mas porque falar tanto de Miles, se o líder e primeiro nome nos créditos do disco “Something Else” é o do rechonchudo Julian “Cannonball” Adderley? Por que não dizer logo que esse maravilhoso saxofonista alto, irmão do também ótimo trompetista Nat Adderley, nasceu em 15 de setembro de 1928, em Tampa, na Flórida? Porque não informar ao leitor que, após estabelecer-se em Nova York, em 1955, o talentosíssimo Cannonball chegou a ser chamado de “The New Bird”? Porque demorar tanto para dizer que Adderley agregou sua exuberância técnica à banda de Davis em 1957 e ali permaneceu até o final de 1959, contribuindo para tornar imortais gemas como “Porgy And Bess” ou “Milestones”? Porque não falar que além de transitar com absoluta maestria entre as mais variadas escolas jazzísticas, do bebop ao cool, passando pelo hard bop, Adderley ainda foi um dos mais bem-sucedidos jazzistas, explorando com habilidade incomum as possibilidades comerciais do chamado “soul jazz”?
A resposta é simples: porque o disco de que estamos tratando se chama “Somethin’ Else” e, apesar do nome em destaque nos créditos, Cannonball Adderley aqui é, em verdade, um coadjuvante de luxo para o verdadeiro dono da festa: ele mesmo, o trompetista de órbitas salientes e língua afiada, Miles Dewey Davis III. Até o título do álbum foi tirado de uma canção sua e não será exagero afirmar que este disco é uma espécie de irmão mais velho do incensado “Kind Of Blue”, gravado pelo sexteto de Davis no ano seguinte e com a valiosa colaboração de Adderley no sax alto.
É bem verdade que Davis era proprietário de um ego muito maior que o gigantesco talento e quando reclamava para si a paternidade do cool jazz ou do jazz modal, é preciso se dar um desconto à sua megalomania e ter em conta que, embora sua participação nesses movimentos fosse emblemática, ele não estava sozinho na empreitada. Com efeito, George Russell, a cabeça pensante por trás de Ezz-thetics, já havia intuído as primeiras trilhas para o jazz modal em meados dos anos 50. Quanto ao cool, o noneto montado no final dos anos 40 incluía quatro outros possíveis “pais” da criança – Gerry Mulligan, John Lewis, Gil Evans e Lee Konitz – haja exame de DNA. Mas ninguém pode negar a importância de Miles como catalisador – e, sobretudo, disseminador – dessas correntes.
Voltando ao o disco, gravado em sessão única no dia 9 de março de 1958, para a Blue Note, ele apresenta, além dos mencionados Davis e Adderley, o piano etéreo de Hank Jones, o baixo pulsante de Sam Jones e um Art Blakey surpreendentemente contido – diria quase delicado – na bateria. Aqui talvez comece o flerte de Davis com as estruturas modais, que iria resultar em um badalado casamento, pouco mais de um ano depois. Percebe-se isso logo na primeira faixa, uma preciosa versão de “Autumn Leaves”, onde Davis explora, com seus agudos, as mais improváveis possibilidades harmônicas da canção, sempre escudado pelo veemente sax de Cannonball. Em outro standard, o trompete límpido de Miles dá um tratamento mais ortodoxo à lindíssima “Dancing In The Dark”, mas ainda assim permite-nos perceber certos vislumbres da carpintaria modal, da qual em breve seria o artífice mor.
Em “Somethin’ Else”, Miles sugere os caminhos que mais tarde iria percorrer com maior intensidade, criando uma canção climática, com destaque para o piano de Jones, que soa metálico, bem de acordo com a atmosfera cool pretendida por Davis. Um nada melancólico Cole Porter emerge da versão de “Love For Sale”, com direito a uma lindíssima introdução, a cargo de Jones, e a um maravilhoso solo de Adderley, enquanto o trompete de Davis pontua a canção o tempo todo. O grande momento de Cannonball talvez seja em “One For Daddy-O”, composição do seu irmão Nat, na qual o saxofonista elabora uma delicada arquitetura sonora, com destaque para o respeitoso diálogo mantido com o trompete. A sacolejante “Bangoon” (faixa bônus no CD relançado em 1999 através da série RVG Edition) permite a Blakey que se solte um pouco mais, sobressaindo-se, também, o piano de Jones (autor da música).
Um álbum clássico, enfim! Um finíssimo petisco musical, capaz de agradar aos paladares mais refinados, à altura dos grandes clássicos perpetrados por Davis como líder, como Miles Ahead, Milestones, Seven Steps To Heaven e o próprio Kind Of Blue. Esqueça o ego que não cabia em um álbum triplo, o péssimo humor e o proverbial “mau-caratismo” de Miles. Nos quase 43 minutos de prazer que “Somethin’ Else” proporciona aos ouvidos, quem se apresenta é ele, o maior trompetista do mundo.
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PS 1.: Post dedicado aos amigos d’além mar Pescador, Miguel Ângelo, Elisa (do blog bebedeiras de jazz), Cigarrajazz e Carlos Azevedo (do blog The Cat Scats).
PS 2.: Postagem efetuada ao som de "I Remember Miles", de Benny Golson (sax tenor), com o auxílio luxuoso de Eddie Henderson (trompete), Curtis Fuller (trombone), Tony Reedus (bateria), Mulgrew Miller (piano) e Ray Drummond (baixo).
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