Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro assomo...
Evoé Momo!
Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!
Se perguntarem: Que mais queres,
além de versos e mulheres?
- Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...
Evoé Baco!
O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que não domo!...
Evoé Momo!
A Lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!
Qual o personagem do poema “Bacanal”, de Manuel Bandeira, Malcolm Earl Waldron nasceu sob o signo de Baco (tomou todas), Momo (divertiu-se à larga) e Vênus (passou por dois casamentos e teve sete filhos). Por sorte, sobretudo nossa, também às Musas haveria de pagar tributo, e sua existência parece haver sido pautada por um único mandamento: “há também um cântaro e quem manda é a deusa Música, pedindo prá deixar”!
Um dos mais importantes pianistas surgidos nos anos 50, ele veio ao mundo no dia 16 de agosto de 1925,
Suas primeiras lições de piano vieram aos oito anos e na adolescência chegou a tentar o sax alto, mas logo desistiu. Fã de Bud Powell, além de discípulo confesso de Monk, o jovem Waldron costumava freqüentar os clubes da Rua 52 durante o início da década de 40 e integrava a fabulosa geração young lions que tomaria de assalto a cena musical da década seguinte, como Sonny Rollins, Jack McLean, Walter Bishop Jr., Randy Weston, Art Taylor, Kenny Drew, Cecil Payne e outros. O bebop de Charlie Parker e Dizzy Gillespie era a mais importante e moderna vertente do jazz e Nova Iorque era o epicentro dessa verdadeira revolução. Para um garoto apaixonado por jazz como Waldron, isso era o mesmo que estar no paraíso.
Em meados dos anos 40, foi convocado pelo exército e serviu em um regimento da cavalaria baseado em Nova Iorque. Desse modo, o pianista não se afastou da cena musical local e, sempre que podia, assistia a concertos e participava de gigs em clubes da cidade, o que lhe permitiu desenvolver uma intimidade muito grande com a sintaxe bop. Findo o serviço militar, Waldron estudou no Queens College, onde bacharelou-se em artes em 1949. Na mesma época, estudou teoria musical e composição com o músico erudito Karol Rathaus.
Com o canudo debaixo do braço, o pianista foi à luta e começou a atuar profissionalmente em 1950. Seu primeiro emprego foi na banda de Big Nick Nicholas, cujo foco era o rhythm’n blues. Pouco depois, juntou-se ao grupo do saxofonista Ike Quebec, com quem faria a sua primeira gravação e ao lado de quem permaneceria até 1953.
Mal participou ativamente do projeto Jazz Composer’s Workshop, criado por Charles Mingus, e integrou os grupos do genial contrabaixista entre 1954 e 1956, atuando em álbuns importantes, como “Mingus at the Bohemia” (1955), “The Charles Mingus Quintet + Max Roach” (1955) e “Pithecanthropus Erectus” (1956), além de ter acompanhado Mingus em suas memoráveis apresentações no Newport Jazz Festival, em 1955 e em 1956. Outra associação relevante foi com o Jazz Lab de Gigi Gryce e Donald Byrd, com quem tocou por um breve período.
A partir de 1957, Waldron foi o acompanhante regular de Billie Holiday, tendo acompanhado a cantora em shows na Europa e em festivais de jazz, como o tradicional Festival de Monterrey, em 1958. É Waldron quem pilota os teclados na célebre gravação de “Fine and Mellow,” feita para a rede de televisão CBS, na qual Lady Day se faz acompanhar por ninguém menos que Lester Young, Coleman Hawkins e Ben Webster. A parceria findou-se em 1959, em virtude da morte da cantora, mas o aprendizado foi valioso. Graças a Billie, o pianista passou a dar especial atenção às letras das canções, especialmente das baladas, mesmo que estivesse interpretando uma versão instrumental.
No final dos anos 50, foi contratado para ser o diretor musical da gravadora Prestige, tendo participado de inúmeras gravações, seja como intérprete, seja como arranjador. Também foi um dos mais destacados integrantes da “Prestige All-Stars”, por onde passaram estrelas da magnitude de Teo Macero, Donald Byrd, Thad Jones, Hank Mobley, Teddy Charles, Al Cohn, Kenny Burrell e Bobby Jaspar, entre outros. Compositor inventivo e refinado, Waldron é o autor de verdadeiros standards do jazz, como “Soul Eyes”, “D’s Dilemna”, “Bud Study” e “Fire Waltz”.
Além de liderar seus próprios conjuntos, o pianista eram um dos mais disputados músicos de apoio do período, tendo participado de gravações ao lado de John Coltrane, Clifford Jordan, Pepper Adams, Cecil Payne, Elvin Jones, Steve Lacy, Jackie McLean, Booker Ervin, Art Farmer, Gene Ammons, Max Roach, Abbey Lincoln e outros. Por seus grupos, passariam grandes nomes do jazz, como Ron Carter, Charlie Persip, George Mraz, Al Foster, Cecil McBee, Dannie Richmond, Joe Henderson, Billy Higgins, Reggie Workman, entre outros.
Gravado no dia 26 de setembro de 1958, nos estúdios Van Gelder, sob a supervisão Desmond Edwards, “Mal/4” é um álbum de suma relevância na carreira do pianista. Era, como o título indica, a sua quarta sessão como líder na Prestige, mas a primeira no formato de trio. O repertório contempla quatro standards e três temas autorais e, ao lado do pianista, os competentes, mas pouco lembrados, Addison Farmer (contrabaixista e irmão gêmeo de Art Farmer) e Kenny Dennis (baterista oriundo da orquestra de Earl Bostic, mas com um portfólio que incluía trabalhos com Sonny Stitt, Thelonious Monk, Erroll Garner e Billy Taylor, entre outros).
A faixa de abertura é o blues “Splidium-Dow”, de autoria de Waldron, que remete ao universo monkiano. Harmonias intrincadas, repetição de acordes, toque percussivo, uso freqüente dos silêncios, enfim, diversos elementos caros a Monk, são aqui muito bem empregados, em um tema extremamente bem construído. O solo de Farmer é antológico e Dennis exibe o rigor típico de um ótimo discípulo de Philly Joe Jones.
As dissonâncias tipicamente monkianas e as notas espaçadas também são facilmente observáveis na balada “Like Someone In Love”, de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen. Um dos mais belos standards do cancioneiro norte-americano, gravada por gente como Stan Getz (em “The Steamer”), John Coltrane (em “Lush Life”) e Art Farmer (em “Modern Art”), o tema recebe por parte do trio uma roupagem diferente e pouco linear. Waldron consegue imprimir muita personalidade à execução, sem abrir mão do lirismo.
Outro standard, “Get Happy”, de Harold Arlen e Ted Koehler, é a faixa mais bopper do álbum. O trio ataca com muita avidez e espontaneidade, com o líder emulando Bud Powell, outro dos seus maiores ídolos. Destaque para a bateria vivaz de Dennis e para a fluência do toque de Waldron, que em alguns momentos parece um possesso.
“J. M.’s Dream Doll” é uma homenagem do pianista à esposa do amigo Jackie McLean. Como em toda composição de Waldron, a obviedade mantém-se distante. O tema é bastante delicado, mas reserva ao ouvinte alguns momentos sombrios, especialmente quando o piano e o contrabaixo interagem mais intensamente.
“Too Close For Comfort”, é um tema de Jerrold Bock, Lawrence Holofcener and George Weiss, composto em 1956 e que faria sucesso na voz de Sammy Davis Jr. O pianista Carl Perkins apresentou a canção a Waldron em 1957, e este imprimiu à sua versão um andamento mais lento, adicionando-lhe um toque de blues. A destreza e a capacidade do líder em criar atmosferas harmônicas inquietantes, sobretudo quando faz uso da repetição de notas, impressionam – tanto quanto o soberbo solo de Farmer.
O trio extrai de “By Myself”, da dupla Arthur Schwartz e Howard Dietz, uma discreta sensualidade. Sua estrutura contagiante, permite uma atuação bastante coesa do trio, com espaço para ótimos solos, especialmente por parte de Dennis. Mais uma composição de Waldron, a reflexiva “Love Span” encerra o disco de maneira bastante sóbria. Certamente um dos momentos mais belos do álbum, o tema, que em algumas passagens lembra a nossa “Canção da manhã feliz”, de Haroldo Barbosa e Luiz Reis, celebra a grandeza do Waldron compositor, um dos mais inventivos e talentosos da história do jazz.
Waldron co-liderou, ao lado do virtuose Eric Dolphy, um dos combos de maior prestígio do início dos anos 60, que incluía os jovens e talentosos Booker Little, Richard Davis e Ed Blackwell. Também compôs trilhas sonoras para filmes como “The Cool World” (1964) e “Three Bedrooms in Manhattan” (1965), este último dirigido pelo cineasta francês Marcel Carné.
Em 1963, sofreu um colapso nervoso, causado por uma terrivelmente poderosa combinação de uso intenso de drogas, ansiedade, depressão profunda e exaustão física. O pianista não conseguia sequer lembrar o próprio nome e, como conseqüência, ficou internado em instituições psiquiátricas por cerca de um ano. Na época, os tratamentos eram brutais e feitos à base eletrochoques. Waldron foi uma vítima dessa brutalidade e, ao deixar o hospital no ano seguinte, era um homem psicologicamente devastado. Além disso, havia perdido completamente a sua capacidade de tocar piano.
Como muitos músicos daquele período, Waldron também havia sucumbido ao terrível efeito das drogas. Seu depoimento é, a um só tempo, contundente e emocionado: “Naquela época, a pressão era realmente insuportável. A cada dia tínhamos que travar uma luta brutal pela sobrevivência e as drogas pesadas dominavam a cena. Muitos proprietários de clubes contratavam viciados porque estes dificilmente exigiam os seus direitos, pois ficavam satisfeitos em receber o pagamento sob a forma de drogas”.
Contudo, apesar dos revezes, Waldron não se deixou abater. Como em um conto de fadas, aos poucos conseguiu recuperar a saúde física e psicológica e, novamente, dedicou-se a dominar as 88 teclas. Para tanto praticava exaustivamente e ouvia intensamente as suas antigas gravações. O resultado foi a volta aos palcos e estúdios, mas dessa viagem interior, emergiu um pianista diferente. Seu estilo estava mais reflexivo, minimalista. Além disso, havia incorporado ao bebop elementos harmônicos do jazz de vanguarda e sua sonoridade se tornaria metálica, abrasiva, sombria, fantasmagórica até.
Em 1965, resolveu se mudar para a Europa, fixando-se, inicialmente, em Paris e depois em Munique, na Alemanha. Em seu exílio europeu, consolidou uma profícua parceria com Steve Lacy, um dos mais ardorosos devotos de Monk. A mudança para o continente europeu foi estimulante e devolveu ao pianista a confiança e a auto-estima. Disse ele: “Quando eu vim para a Europa, a pressão de repente passou e eu não precisava mais usar drogas. Além disso, na América eu era duplamente penalizado: por ser negro e por ser músico de jazz”.
Em 1969, seu disco “Free At Last” foi o primeiro a ser lançado pelo então nascente selo ECM. A partir dos anos 70, fez várias viagens ao Japão, onde era extremamente popular, além de haver se apresentado, virtualmente, nos mais importantes festivais de jazz ao redor do planeta. Waldron manteve uma curiosa parceria com o grupo alemão de rock experimental Embryo, que rendeu o álbum “Rocksession”, lançado pela gravadora Brain Metronome, em 1973.
Waldron gravou incessantemente para selos como Enja, Soul Note, Timeless, New Jazz, Bethlehem, Impulse, Freedom, Black Lion e outros. Entre seus colaboradores regulares, dos anos 70 em diante, podem ser citados músicos do calibre de Chico Freeman, Marion Brown, David Friesen, Archie Shepp, Don Cherry, Barre Phillips, Philly Joe Jones, Gary Peacock e muitos mais.
Os anos 80 e 90 continuaram a ser de atividade febril. Alguns dos pontos altos de sua discografia foram os elogiados “A Case of Plus 4’s” e “Snake-Out”, ambos de 1981 e gravados ao lado do velho parceiro Steve Lacy. No mesmo ano, a dupla reuniu-se ao trompetista italiano Enrico Rava, na gravação de “Let’s Call This”. Em 1986, o pianista fez uma vitoriosa temporada no Village Vanguard, em Nova Iorque, que rendeu dois álbuns ao vivo: “Git Go: Live at the Village Vanguard” e “The Seagulls of Kristiansund”. Em ambos, Waldron lidera um quinteto da pesada, formado por Woody Shaw, Charlie Rouse, Reggie Workman e Ed Blackwell.
Nos anos 90, merecem destaque as suas gravações com o saxofonista George Haslam: “Waldron/Haslam” (1994) e “Two New” (1995). Em 2001, foi a vez do multiinstrumentista David Murray, com quem gravou o álbum “Silence”. Um dos momentos mais sublimes do pianist foi um emocionante tribute a Billie Holiday, “Left Alone Revisited”, em dueto com Archie Shepp. No início de 2002, Waldron fez a sua última gravação, ao lado de Steve Lacy e do baixista Jean-Jacques Avenel, no disco intitulado “One More Time”.
Fumante inveterado, Mal lutava há anos contra um câncer de pulmão, tendo, finalmente, perdido a guerra contra a doença no dia 02 de dezembro de 2002, em Bruxelas, na Bélgica, onde vivia desde 1992. Tinha 76 anos. Sua vida é um exemplo de superação das adversidades e seu legado musical é, certamente, um dos mais belos e originais da história do jazz. Sobre a sua relação com a música, suas palavras são sabedoria pura: “Eu não faço música em um nível consciente, eu toco com o coração. Este é, sem dúvida, um dos elementos que distinguem um bom músico de um grande músico”. Evoé, Waldron!
=================================