O PALADINO DAS CAUSAS NOBRES
Música e outras coisas

O PALADINO DAS CAUSAS NOBRES





Conhecida como Cidade dos Ventos, talvez a particularidade de sua geografia possa explicar as razões pelas quais Chicago tenha produzido uma quantidade impressionante de notáveis saxofonistas. De precursores como Gene Ammons, Yusef Lateef e Von Freeman (os dois últimos ainda estão na ativa, apesar de nonagenários) passando por músicos de gerações mais novas, como John Gilmore, Ira Sullivan, Johnny Griffin, Charles Davis e John Jenkins, todos parecem ter sido inspirados pelos ventos gelados que cortam a cidade e quando resolvem soprar, o couro come pra valer!

Nascido naquela cidade no dia 02 de setembro de 1931, Clifford Laconia Jordan se inscreve nessa tradição com muita galhardia e um imensurável talento. Estuda piano na infância, mas sem muita convicção - “Era uma espécie de acordo compulsório, pois minha mãe queria que eu fosse pianista”, como revelou em uma entrevista. Todavia, aos 13 anos, influenciado pela sonoridade aveludada de Lester Young, ele decide trocar o teclado pelo saxofone tenor.

Apesar da troca de instrumentos, a mãe de Clifford o estimulava e não apenas isso, o apresentava aos grandes nomes do jazz que precederam – ou mesmo anteciparam – o bebop. Assim, o jovem apaixonado por Charlie Parker, Bud Powell e Dexter Gordon foi levado a conhecer a obra de precursores como Johnny Hodges, Erroll Garner e Coleman Hawkins.

O garoto fez todo o ensino médio na afamada DuSable High School, e teve como colegas ou contemporâneos, os já citados Griffin, Gilmore e Jenkins, além do futuro baixista Richard Davis. Naquele tempo, fazer parte da banda da escola era sinal de prestígio e contava muitos pontos entre as garotas. Ele recorda: “Ser músico era algo que dava status, todo mundo olhava pra você. Com um sax nas mãos você podia fazer o que quisesse. Muita gente queria fazer parte da orquestra da DuSable, mas o diretor sabia separar o joio do trigo. Se ele percebesse que você não sabia tocar, ele expulsava você do ensaio, imediatamente. Ele não admitia brincadeiras”.

Concluído o ensino médio, suas primeiras experiências profissionais foram em bandas de R&B da região, mas ainda em Chicago ele teve a oportunidade de tocar com grandes nomes do jazz e do blues de passagem pela cidade, como Max Roach, Dizzy Gillespie, Sonny Stitt e Willie Dixon.

Já estabelecido como um respeitado músico local, Jordan aceitou o convite de Max Roach, para se juntar a seu quinteto, ocupando o lugar de ninguém menos que Sonny Rollins. O novo emprego acarretou a mudança para Nova Iorque, em 1957, e as oportunidades de trabalho se multiplicariam na nova cidade. Ainda naquele ano, uma nova mudança e o saxofonista entra para o badalado quinteto de Horace Silver, em substituição a Hank Mobley.

Silver havia sido o pianista do álbum de estréia de Jordan, gravado em março de 1957 (“Blowing In From Chicago”, Blue Note), no qual o saxofonista divide os créditos com o conterrâneo John Gilmore em um eletrizante duelo de tenores, na melhor tradição daqueles protagonizados por outras duplas formidáveis, como Gene Ammons e Sonny Stitt, Al Cohn e Zoot Sims ou Johnny Griffin e Eddie “Lockjaw” Davis.

A associação com a Blue Note renderia ainda mais dois álbuns, todos de 1957: “Cliff Jordan”, onde o saxofonista está secundado por Lee Morgan (trompete), Curtis Fuller (trombone), John Jenkins (sax alto), Ray Bryant (piano), Art Taylor (bateria) e Paul Chambers (contrabaixo), e “Cliff Craft”, onde lidera um quinteto integrado pelo trompetista Art Farmer, pelo pianista Sonny Clark, pelo baixista George Tucker e pelo baterista Louis Hayes.

Dividindo-se entre o trabalho com Silver e a liderança de seus próprios grupos, Jordan consolida seu nome como um dos mais confiáveis músicos do hard bop, participando de gravações sob a liderança de Sonny Clark, Sahib Shihab, Paul Chambers e Lee Morgan, entre outros. Sua performance no álbum “Further Explorations by the Horace Silver Quintet” (Blue Note, 1958), é impressionante, sobretudo por causa do contraste entre a sua sonoridade musculosa e a abordagem mais lírica do trompetista Art Farmer, que também participa da sessão.

Algum tempo depois, ele vai trabalhar com o trombonista J. J. Johnson, em 1959, permanecendo naquela banda até 1961. Uma das formações daquele grupo, aquela que incluía o trompetista Freddie Hubbard, o pianista Cedar Walton (que nos anos vindouros se tornaria um dos mais assíduos parceiros de Jordan), o baixista Arthur Harper e o baterista Albert “Tootie” Heath, é considerada por Johnson “a melhor banda que já liderei. Eu sempre tive vontade de montar um grupo com três instrumentos de sopro”.

Após a sua saída do sexteto de J. J., Clifford monta um quinteto com o trompetista Kenny Dorham. Naquele período, já havia iniciado a sua parceria com alguns selos ligados à gravadora Fantasy, como Riverside e Jazzland. O primeiro disco desta nova fase, gravado para a Riverside, foi “Spellbound”, de 1960, e ali o piano fica a cargo do amigo Cedar Walton. Como curiosidade, o disco foi produzido por Cannonball Adderley, que na época era diretor artístico da gravadora e havia produzido álbuns de figuras importantes como James Clay, Chuck Mangione, Budd Johnson e Dexter Gordon.

Gravado nos dias 28 de dezembro de 1961 e 10 de janeiro de 1962, o álbum “Bearcat” é um dos pontos altos na carreira fonográfica de Jordan. Com produção de Orrin Keepnews, o disco foi lançado pela Jazzland e conta com as participações de Cedar Walton no piano e dos pouco conhecidos Teddy Smith (atuou com Horace Silver e Joe Henderson), no contrabaixo, e J. C. Moses (integrante do “New York Contemporary Five”, grupo ligado ao jazz de vanguarda, onde atuavam Archie Shepp, John Tchicai e Don Cherry), na bateria.

“Bearcat” (homenagem a um amigo de infância de Jordan), faixa de abertura composta pelo líder, é um hard bop vigoroso, embora seu andamento não seja dos mais rápidos, que flerta com o soul jazz. Na execução algo oblíqua do saxofonista há ecos de Coltrane e Wayne Shorter. Walton tinge de blues a sessão e seus improvisos se caracterizam pela justaposição rigorosa dos acordes, pelo brilhantismo das modulações e pela multiplicidade de timbres.

Jordan assina cinco das sete faixas. A que vem em seguida é “Dear Old Chicago”, emocionante homenagem à cidade natal, com andamento de valsa e elementos harmônicos típicos do hard bop. Com atuações destacadas de Walton, Moses e Smith na seção rítmica, todos seguros e confiantes, o espaço para os solos fica praticamente todo reservado ao líder. Apesar da influência primordial de Lester Young, a sonoridade de Clifford é mais próxima à de saxofonistas como Sonny Rollins. Seu timbre é áspero, por vezes rascante, e seu sopro é sempre volumoso e febril.

O único standard do disco é a fabulosa “How Deep Is the Ocean?”, de Irving Berlin. A principal característica desta versão é a leveza, presente sobretudo na abordagem relaxada de Jordan. Com um arranjo em tempo médio e uma graciosa condução melódica a cargo de Walton, também responsável por um dos solos mais encantadores do disco, a canção flui de maneira espontânea, distante da atmosfera solene e até mesmo sisuda de outras interpretações.

A rápida “The Middle of the Block” é um tema fogoso, agitado, eletrizante, indomável. O legado harmônico do bebop se faz sentir em sua inteireza, não apenas por conta do dedilhado nervoso e inquieto de Walton, mas, principalmente, por causa das endiabradas intervenções do líder. Seu ataque é vigoroso, seu discurso é inflamado, seu fraseado é impecável e sua dinâmica é notável. O quarteto é de uma coesão e de um entrosamento raros e o trabalho de Moses é de grande impacto rítmico.

“You Better Leave It Alone” é um blues progressivo e inebriante, com uma percussão meio quebrada, que às vezes parece fora do tempo, mas que só acrescenta personalidade ao tema. Walton injeta a furiosa energia do R&B ao tema e seus diálogos com Moses são empolgantes. Jordan transita entre a ortodoxia ancestral do blues e a efervescência do soul e do R&B com ousadia e veemência. Smith tem amplo espaço para mostrar seus dotes de solista, improvisando com volúpia e uma técnica exemplar.

A balada em tempo médio “Malice Towards None” é uma composição do trombonista Tom McIntosh. Mais uma vez, Moses adota uma abordagem rítmica transversa, pouco usual e fortemente influenciada pelas estruturas dissonantes do jazz de vanguarda. O contraste da percussão de Moses com o piano acadêmico de Walton e com a placidez da marcação de Smith é um dos pontos altos desta faixa, que conta ainda com uma exibição esplendorosa do líder.

Última faixa do álbum, “Out-House” é um soul jazz volátil, que poderia perfeitamente fazer parte do repertório de um Cannonball Adderley. O quarteto devende com entusiasmo o tema, construído à base de riffs infecciosos e dotado de um groove capaz de chacoalhar até mesmo uma estátua. Fazendo a síntese entre o lirismo de Lester Young e a impetuosidade de Coleman Hawkins, Jordan traz uma sonoridade ora adstringente, ora aveludada, fazendo transições entre graves e agudos com a autoridade de quem domina completamente o seu ofício.

Em 1963 Clifford volta a atuar com Max Roach e realiza alguns trabalhos ao lado de Eric Dolphy, Clark Terry, Andrew Hill e do altoísta Sonny Redd. No ano seguinte, Jordan e Dolphy voltariam a se encontrar, desta feita no sexteto de Charles Mingus, que incluía, ainda, o trompetista Johnny Coles, o pianista Jaki Byard e o baterista Dannie Richmond. Com esse grupo, Mingus faz uma de suas mais importantes e aplaudidas excursões pela Europa, que resultou em álbuns como “Mingus in Europe”, “Live in Oslo” e “Live in Stockholm, 1964”.

Em 1965, Clifford assina com a Atlantic e em seu primeiro trabalho pela nova gravadora, faz uma homenagem ao lendário bluesman Leadbelly, no álbum “These Are My Roots”. Ainda naquela década, Jordan fez parte das orquestras do cantor de R&B Lloyd Price e do soulman James Brown. Em 1967, o saxofonista excursionou pela África e pelo Oriente Médio, juntamente com o pianista Randy Weston, em uma turnê patrocinada pelo Departamento de Estado Norte-americano.

No ano seguinte, Jordan criou o seu próprio selo, a Frontier Records, por onde gravariam nomes consagrados do jazz, como Wilbur Ware, Pharoah Sanders, Cecil Payne e Ed Blackwell, entre outros. Extremamente politizado e engajado nas causas dos negros norte-americanos, Clifford sempre procurou usar a música como meio de promover a inclusão social. No final dos anos 60, foi marcante a sua ligação com entidades de apoio a jovens carentes de Nova Iorque, como o Henry Street Settlement, a Bed-Stuy Youth in Action e o Pratt Institute, onde deu aulas e ministrou diversas oficinas.

Em 1968, o saxofonista exerceu o cargo de diretor musical do grupo de dança Dancemobile Performing Act, fundado no ano anterior pelo coreógrafo colombiano Elco Pomare. Em 1969, Jordan decidiu se fixar na Europa, por conta da escassez de trabalho que afligia os músicos de jazz em seu próprio país. Ele fixou residência na Bélgica, com a mulher e a filha, e participou intensamente do circuito europeu de festivais de jazz.

No velho continente, chegou a tocar com o trompetista Don Cherry e com o saxofonista Pheroah Sanders, conhecidos por suas ligações com o free jazz. De volta aos Estados Unidos em 1971, Jordan realizou várias apresentações ao lado do trio do pianista Cedar Walton, complementado pelo baterista Billy Higgins e pelo baixista Sam Jones, formação de tamanha excelência que era chamada de “Magic Triangle” pela crítica especializada da época.

Clifford também enveredou pelas artes cênicas, interpretando o papel do ídolo Lester Young no espetáculo musical “Lady Day: A Musical Tragedy”, baseado na vida da diva Billie Holiday e encenado na Brooklyn Academy of Music, em 1972. O roteiro e os diálogos foram escritos por Aishah Rahman e o score musical ficou a cargo de Archie Shepp, Stanley Cowell e Cal Massey.

A convivência com Shepp despertou novamente em Jordan o interesse pelo jazz de vanguarda e no ano seguinte ele lançou, pelo selo italiano Strata East, o elogiado “Glass Bead Games”, tendo como acompanhantes o pianista Stanley Cowell e os velhos parceiros Billy Higgins e Sam Jones. Como bem elucida o catedrático John Lester, “apesar das arriscadas aventuras musicais que experimentou com músicos do free jazz, como Don Cherry, Clifford nunca esqueceria suas sólidas origens no blues e no bebop, daí seu discurso musical ter permanecido sempre acessível e sedutor”.

Os anos 80 flagraram Jordan trabalhando intensamente, acompanhando nomes como Dizzy Gillespie, Kenny Clarke, Art Farmer, Philly Joe Jones, Wilbur Ware, Freddie Redd, Carol Sloane, John Hicks, Richard Davis, David “Fathead” Newman, Dizzy Reece, Tommy Flanagan, Jimmy Heath, Slide Hampton, Barry Harris, Mal Waldron e Junior Cook, ao lado de quem gravaria o inspirado “Two Tenor Winner” (Criss Cross Jazz, 1984).

Integrou o quarteto “Eastern Rebellion”, ao lado do seu fundador e velho parceiro Cedar Walton, e fez inúmeras excursões pela Austrália, Japão e Europa, tocando em países como Dinamarca, Noruega, Áustria, Itália, Finlândia, França e Suécia. No Velho Continente, apresentou-se ao lado de diversas orquestras, como a Hamburg Radio Big Band, da Alemanha, a Metropole Orchestra, da Holanda, e a UOMO New Music Jazz Band, da Finlândia.

Sempre a postos para defender as causas mais nobres, foi um dos mais ativos membros da Jazz Foundation of América, entidade que se notabilizou por prestar auxílio médico, ambulatorial e financeiro a músicos de jazz em dificuldades. Também foi uma das atrações do concerto comemorativo da independência do Senegal, em 1980, ao lado de Dizzy Gillespie e Kenny Clarke.

Quatro anos depois, recebeu o “BMI Jazz Pioneer Award”, concedido pela poderosa BMI, sociedade que congrega compositores, produtores e editores musicais dos Estados Unidos. Em 1990, aceitou um novo desafio: liderar a orquestra do clube Condon’s, em Manhattan, atração fixa das segundas-feiras e criada nos moldes da Thad Jones-Mel Lewis Orchestra, que durante anos animou as noites do Village Vanguard naquele mesmo dia da semana.

Clifford morreu nas dependências do Beth Israel Medical Center, em Manhattan, Nova Iorque, no dia 27 de março de 1993, em conseqüência de um câncer de pulmão. Sua contribuição para o jazz pode não ser tão significativa quanto a de outros tenoristas, como Dexter Gordon, Sonny Rollins ou John Coltrane, mas ele deixou um legado de integridade e dedicação às causas da música, da cidadania e da inclusão social.

Não por acaso, sobre ele escreveu o crítico Robert Levin: “Clifford Jordan toca com uma concepção imaginativa e vital. Ele é um músico consistente e sua obra é das mais significativas. Ele está, sem dúvida alguma, entre os saxofonistas tenores mais importantes do jazz moderno”. Boa parte dos seus quase 40 álbuns como líder, distribuídos por selos como Vortex, Muse, SteepleChase, Criss Cross, Bee Hive, DIW e Mapleshade ainda se encontram em catálogo e merecem uma conferida

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