Foi o amigo Guen Yokoyama, dos excelentes blogs “Sobretudo, música” e “Conteúdo da lata” quem cantou a bola. Ser um pianista acompanhante de cantores ou cantoras é uma arte nobilíssima, mas, via de regra, esse ofício não vem acompanhado de um reconhecimento à altura. Ele cita os exemplos de Ralf Sharon e Laurence Hobgood, pianistas e diretores musicais de, respectivamente, Tony Bennett e Kurt Elling.
Algumas exceções ficam por conta de Hank Jones e Tommy Flanagan, que se celebrizaram por acompanhar a cantora Ella Fitzgerald, mas que obtiveram, dentro das próprias carreiras como solistas e líderes de pequenos conjuntos, a merecida reverência por parte do mundo do jazz. Hobgood é o objeto do post intitulado “Laurence Hobgood e a sina dos pianistas acompanhantes”, que analisa as dificuldades de quem, muitas vezes, tem que refrear o próprio talento para que o cantor – ou cantora – possa brilhar com mais intensidade.
Na preciosa prosa de Yokohama, que considera Elling o melhor cantor de jazz da atualidade, “não é fácil a vida de ‘segundo’ do melhor cantor de jazz. Por melhor que seja, fica em plano… secundário. Mas, aproveitando o ditado de que ‘ao lado de um grande homem sempre há uma grande mulher’, à mercê de certo chauvinismo e um tanto de misoginia, um bom pianista só valoriza o bom cantor. Tony Bennett que o diga”.
Embora tenha tocado ao lado de alguns dos maiores nomes do jazz de todos os tempos e possua credenciais impecáveis como acompanhante, o nome do californiano Richard Wyands não é dos mais conhecidos e se enquadra, à perfeição, na hipótese mencionada por Yokohama. O que é uma tremenda injustiça, pois seu talento superlativo e sua musicalidade o colocam no mesmo patamar que sumidades como Tommy Flanagan, Barry Harris, Cedar Walton, Bobby Timmons, Junior Mance, Horace Silver e outros companheiros de geração, bem mais badalados pela crítica e pelo público.
Nascido em Oakland, no dia 02 de julho de 1928, desde cedo Richard demonstrou aptidões musicais bastante apuradas, tendo iniciado os estudos de piano clássico aos oito anos. Aos catorze, recebeu aulas de Wilbert Baranco, um conhecido pianista local que, na época, tocava na banda de Jerome Richardson. O período de estudos com Baranco foi de extrema importância e foi por intermédio dele que Wyands fez a sua primeira gravação: um compacto contendo versões de “Stardust” e “Body And Soul”, realizado quase artesanalmente em um pequeno estúdio da cidade natal.
Ao final de oito meses de aprendizado, o pianista mais velho dispensou seu jovem pupilo dizendo: “Ótimo! Você trabalhou muito bem e é somente até aqui que eu posso levá-lo. A partir de agora é por sua conta”. De qualquer modo, a convivência no meio musical e as noções de harmonia e improvisação adquiridas durante aquele período seriam bastante úteis na futura carreira musical de Wyands, cujos principais ídolos eram Teddy Wilson, Nat Cole e Art Tatum.
Primeiramente, o pianista tocou em orquestras e conjuntos de sua cidade natal, de Richmond e de Bay Área, em San Francisco, para onde se mudou, em 1945, a fim de estudar no San Francisco State College. Wyands já era um jovem veterano quando concluiu o curso de música, em 1950, e não tardou a se destacar no cenário musical da Califórnia, que era dos mais estimulantes e competitivos. Ali, pode conhecer e trabalhar com gente do calibre de Charles Mingus, Cal Tjader, Jerome Richardson, Vernon Alley e Paul Desmond, entre outros.
Em 1951 foi contratado como pianista do célebre Blackhawk, tocando em cinco sets por noite, nos intervalos das atrações principais do clube. E que atrações eram aquelas! Wyands atuava durante os intervalos de shows de gente como Erroll Garner, Red Norvo, Dinah Washington, Shorty Rogers e muitos outros. Quando a estrela era Art Tatum, o jovem Richard pegava uma cadeira e punha bem perto do piano, apenas para contemplar, extasiado, o fabuloso trabalho do mago das teclas.
Sobre aquela época, o pianista relembra: “Eu procurava tocar como Teddy Wilson ou Art Tatum, mas quando Tatum era a atração eu nem me arriscava a tentar imitá-lo. Ele costumava me dizer: ‘você não pode competir comigo, mas não desista’. Realmente ninguém no mundo poderia competir com ele! Na verdade, ele era um sujeito muito bacana e acho que ele ficava feliz em me ver ali perto, pois costumava conversar comigo enquanto tocava. Eu sentava bem perto do piano e embora ele fosse cego, sabia que eu estava ali. Quando ele terminava um set eu tinha que subir ao palco, então nós não conversávamos muito nos intervalos. Mas só o fato de estar ali perto, vendo-o tocar, era uma experiência fantástica e eu não me sentia intimidado em ter que tocar depois dele”.
Em 1956, foi contratado pela cantora Ella Fitzgerald para trabalhar como pianista e diretor musical de sua banda. No ano seguinte, mudou-se para Ottawa, no Canadá, a convite do baixista Wyatt Reuther, onde passou nove meses, atuando como pianista de um clube da cidade, onde estrelas como Johnny Mathis e Carmen McRae costumavam se apresentar. Esta última gostou tanto da performance do pianista que acabou contratando-o para a sua própria banda, que então fazia uma grande excursão pela América do Norte.
Com McRae, Richard tocou em clubes de Chicago, Detroit, Filadélfia e Nova Iorque, onde o pianista decidiu se fixar, definitivamente, em 1958. Logo, logo, estava tocando com jazzistas de primeira grandeza da Grande Maçã. Um dos seus primeiros trabalhos foi no trio do baterista Roy Haynes, ao lado de quem gravou o seminal “Just Us”, em 1960, para a Prestige. Complementava a sessão o baixista Eddie De Haas.
De 1959 em diante, tornou-se um dos acompanhantes mais requisitados do cenário novaiorquino, aparecendo em concertos e gravações ao lado de Charles Mingus, Jerome Richardson, Oliver Nelson, Eric Dolphy, Flip Philips, Etta Jones, Gene Ammons, Buddy Tate, Clark Terry, Gigi Gryce, Eddie “Lockjaw” Davis, Lem Winchester, Roland Kirk, Willis Jackson, Taft Jordan, Ernie Andrews, Charlie Mariano, Zoot Sims, Benny Bailey, Freddie Hubbard, Frank Wess, Benny Carter, Milt Hinton, Maxine Sullivan, Frank Foster e uma infinidade de outros.
Uma das mais importantes associações de Wyands foi com o guitarrista Kenny Burrell, iniciada em 1964 quando este era, então, atração fixa do mítico clube “Minton’s. A partir daí, seriam quase catorze anos de uma parceria bastante prolífica, incluindo atuação em álbuns como “The Tender Gender” (Cadet, 1966), “For Charlie Christian And Benny Goodman” (Verve, 1967) e “God Bless The Child” (CTI, 1971), participações em festivais como o de Newport e o de Montreux, e excursões pela Europa, Estados Unidos e Japão.
Em meados dos anos 70, o pianista integrou-se ao quinteto do saxofonista Al Cohn e do trombonista Bob Brookmeyer. O ritmo de atuações como sideman manteve-se intenso pelas décadas seguintes e registram-se trabalhos ao lado de Esther Philips, Don Sebeski, Carl Fontana, Teddy Edwards, Warren Vaché, Louis Smith, Grady Tate, Houston Person, Ron Carter, Scott Robinson, Von Freeman, James Spaulding e Don Sickler, entre outros. No final da década de 80, Wyands fez parte da orquestra do saxofonista Illinois Jacquet.
Em 1998, quando o lendário baterista Jimmy Cobb resolveu montar uma banda com alguns dos seus ex-alunos da New School of Music, chamou o experiente Wyands para ocupar o piano, o que permitiu-lhe conviver com uma nova e talentosa geração de jazzistas, como o tenorista Eric Alexander, o guitarrista Peter Bernstein e o baixista John Webber. A banda, chamada “Jimmy Cobb’s Mob”, gravou alguns álbuns, como “Only For The Pure At Heart” (Lightyear, 1998) e o estupendo “Cobb’s Groove” (JVC, 2003), sempre com atuações notáveis do pianista.
A parceria com Cobb tem se estendido ao longo dos últimos anos e Wyands também participou do disco “Cobb’s Corner” (Chesky, 2007), no qual os dois veteranos atuam ao lado dos jovens Peter Washington (contrabaixo) e Roy Hargrove (trompete). Em 2008, o “Jimmy Cobb’s Mob” se reuniu novamente, agora sob a liderança do guitarrista Bernstein, que lançou, em seu nome, o álbum “Live At Small’s”.
Como líder, a discografia de Wyands é bastante escassa, do ponto de vista quantitativo, e registra, basicamente, álbuns para gravadoras sediadas fora dos Estados Unidos, como as dinamarquesas Storyville e SteepleChase, a holandesa Criss Cross e a japonesa DIW. Seu primeiro disco para um selo norte-americano foi “As Long As There’s Music”, de 2001, gravado para a independente Savant, tendo como acompanhantes os fabulosos Ray Drummond e Grady Tate.
Fundada por Gerry Teekens, um ex-professor apaixonado por jazz, a holandesa Criss Cross se destaca pela excelência de seu cast e é considerada pelo crítico Richard Cook como a mais legítima sucessora da Blue Note. Em seu catálogo, é possível encontrar discos de artistas consagrados como Kenny Barron, Warne Marsh, Philip Catherine, Cedar Walton, Johnny Coles, Tom Harrell, Clifford Jordan ou Slide Hampton, bem como de jovens talentos como Benny Green, Conrad Herwig, Chris Potter, David Hazeltine, Javon Jackson, Kenny Garrett, John Swana, Seamus Blake ou David Kikoski.
Uma das gemas mais preciosas desse catálogo é, sem dúvida alguma, “Half And Half”, gravado no dia 08 de dezembro de 1999, nos estúdios System Two Recordings, em Nova Iorque. Acompanham Wyands o baterista Kenny Washington e o contrabaixista Peter Washington, seus parceiros desde meados da década de 90 e que tocaram com ele no não menos brilhante “Get Out Of Town” (SteepleChase, 1997).
A encantadora “I'm Old Fashioned” abre o álbum, com a classe e o apuro melódico típicos de Jerome Kern. Composta em 1942 para o filme “You Were Never Lovelier”, estrelado por Fred Astaire e Rita Hayworth, a balada recebeu letra do genial Johnny Mercer. Aqui ele é executada em tempo médio, rivalizando em graça e beleza com versões célebres, como as de John Coltrane (no álbum “Blue Train”), e Chet Baker (no disco “Chet Baker Sings”). A performance do líder é arrebatadora, e seu toque é de um frescor e de uma leveza que transportam o ouvinte para o Nirvana musical.
Em seguida, é a vez de “Blues For Kosi”, composta pelo pianista em homenagem ao neto. É um blues acelerado, que evidencia a influência de Red Garland, com quem Wyands é freqüentemente comparado. Segundo Pedro “Apóstolo” Cardoso, o virtuosismo de Richard “desfila a quilômetros da eloqüência vazia e de clichês, o que sempre lhe permitiu ‘encontros’ desde o jazz mais tradicional até as fases mais inovadoras da arte popular maior”. O timming do baterista é perfeito, seu dinamismo contagiante e seu domínio rítmico é torrencial.
“P.S. I Love You” é uma balada romântica de Gordon Jenkins e Johnny Mercer, cuja interpretação intimista e sem maneirismos é um retrato dos mais fiéis de um artista maduro e bastante sóbrio, mas que não abre mão do lirismo. A música brasileira se faz presente na estupenda versão de “Once I Loved”, que nada mais é que a nossa querida “O amor em paz”, do maestro Antonio Carlos Jobim e do poetinha Vinícius de Moraes. A versão do trio é relaxada, mas conserva o discreto balanço da bossa nova, com destaque pêra o delicado trabalho percussivo de Kenny Washington.
Faixa que dá nome ao disco, “Half And Half” é de autoria do próprio Wyands e tem uma estrutura essencialmente bop. Não é tão acelerada, mas os improvisos calcados no blues e a colocação certeira das notas, traços marcantes na pianística do líder, estão presentes. Em “Beautiful Friendship”, de Sammy Cahn e Jules Styne, e “Time After Time”, de Gus Kahn, o pianista atua desacompanhado, mas o lirismo de sua interpretação em momento algum perde a força e a consistência.
“Daydream” é uma das mais belas composições de Duke Ellington e Billy Strayhorn. Classuda e delicada, é mais do que propícia para os devaneios harmônicos do trio, que se mostra particularmente inspirado. Em seguida, Wyands constrói uma notável interpretação de “Is That So?”, de Duke Pearson. Apoiado em uma bateria sóbria e em uma linha de baixo simplesmente inacreditável, o pianista apresenta um fraseado sedutor e equilibrado, mostrando que o hard bop ainda continua vivo e pulsante.
Para concluir em alto estilo e astral ainda mais elevado, uma extasiante interpretação de “As Long As I Live”, de Harold Arlen. Contrabaixo musculoso, bateria ágil e um dedidilhado frenético fazem da faixa uma das mais swingantes do disco, criando uma atmosfera de jam session das mais animadas. Wyands impõe à execução uma inebriante levada bop, com direito a solos intrincados do ponto de vista técnico. A poderosa pegada rítmica do baterista e seu solo exposivo são bastante estimulantes.
O pianista continua a atuar com a mesma disposição do início da carreira. Seu último trabalho foi no disco “Let’s Fly”, da cantora Amy London, gravado em 2010 para o selo Montema Music. Como bem detecta o Mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso, este precioso músico “é dono de sonoridade cristalina, resultante de toque excepcionalmente preciso em qualquer andamento, particularmente quando em ‘up tempo’, frescura rítmica e perfeita leitura harmônica (o que explica com absoluta clareza sua participação em apresentações, temporadas, festivais e gravações com músicos de tantas “escolas” e vertentes)”.
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