O GALANTE MR. JONES
Música e outras coisas

O GALANTE MR. JONES



Um dos mais talentosos e festejados pianistas de todas as eras, Henry “Hank” Jones nasceu no dia 31 de julho de 1918, em Vicksburg, Mississippi. Ainda na infância, mudou-se com a família para Pontiac, no estado de Michigan, onde o pai, diácono de uma igreja batista, resolveu se estabelecer. Dos sete filhos do casal Jones, três se tornariam destacados músicos de jazz: o próprio Hank, Thad e Elvin. Além disso, a mãe e quase todos os irmãos aprenderam a tocar piano, sendo que a matriarca da família também cantava. Embora tocasse guitarra, o pai considerava o jazz uma música diabólica e apenas tolerava a sua execução em casa.

Comentando a ojeriza paterna ao jazz, o bem-humorado Hank disse, certa feita: “Ele podia estar certo. Aos poucos, ele foi aceitando o jazz como uma forma de música, embora jamais tenha permitido que se tocasse em sua igreja. Ele não estava errado em suas convicções, pois, às vezes, a música religiosa deve ser a única forma de música permitida na igreja. Mas hoje em dia é comum se ouvir jazz e outras formas de expressão musical nas igrejas”.

Apesar das resistências do pai, o jazz acabou inoculando o seu vírus no jovem Hank, que costumava assistir, extasiado, às apresentações da orquestra de Eddie Cole, cujo irmão pianista, chamado Nat, causava frisson entre os aficionados do jazz, com seu fraseado lírico e sua postura elegante. Com apenas 13 anos, influenciado por gente como Earl Hines, Fats Waller, Teddy Wilson e Art Tatum, Hank começou a sua esplendorosa carreira musical, em bailes e clubes de Michigan e de Ohio.

Um dos programas prediletos do jovem Hank era assistir às incendiárias performances de Art Tatum na região de Detroit e Buffalo e era comum que após os espetáculos, o veterano pianista e seu discípulo ficassem conversando até o sol raiar. Após tocar em diversos grupos locais (um deles tinha o inacreditável título de “The Agony Provokers”), Jones começou a receber alguma notoriedade por conta de seu trabalho no quarteto do baterista Bernard Brown e seu pioneirismo acabou por influenciar outros grandes pianistas da cena de Detroit, como Tommy Flanagan, Barry Harris e Roland Hanna.

Em 1944, enquanto se apresentava com uma banda na região de Grand Rapids e Lansing, conheceu o saxofonista Lucky Thompson, que o convenceu a deixar Detroit e se fixar em Nova Iorque, a Meca do Jazz. Por influência de Thompson, Jones logo foi contratado pelo trompetista Hot Lips Page, que então era atração fixa do Onyx Club. Em novembro do mesmo ano e sob a liderança de Page, Hank entraria pela primeira vez em um estúdio, para gravar um compacto contendo “The Lady In Bed” e “Gee Baby, Ain't I Good To You”.

Após assistir a uma apresentação de Charlie Parker no Spotlight, Jones mudou radicalmente as suas concepções musicais e o seu próprio jeito de tocar. Juntou-se à turma de Young Lions que, comandada por Bird, assombrava o mundo do jazz com a revolucionária linguagem do bebop. Tornou-se amigo do próprio Parker, Dizzy Gillespie, Bud Powell, Max Roach e dos demais músicos que incendiavam as noites da Rua 52 e subvertiam todos os cânones jazzísticos vigentes até então.

Em pouco tempo na Big Apple, viriam trabalhos ao lado de Artie Shaw, John Kirby, Benny Carter, Howard McGhee, Coleman Hawkins, Benny Goodman, Andy Kirk, Gene Krupa, Johnny Hodges, Tyree Glenn, e Billy Eckstine. Jones foi um dos pianistas preferidos de Charlie Parker, tendo gravado inúmeras vezes ao lado de Bird. Sobre o grande Artie Shaw, de quem se tornaria amigo, Jones deu o seguinte depoimento: “Artie era um intelectual. Como Tatum e Bird, ele podia discorrer sobre qualquer assunto: política, esporte, história, religião, filosofia... Uma vez eu lhe perguntei porque ele casou tantas vezes e ele disse que era uma questão moral – era melhor casar dez vezes do que se casar uma única vez e ter nove amantes”

Hank também participou ativamente dos concertos promovidos pelo empresário e produtor Norman Granz – a célebre caravana Jazz At The Philarmonic – a partir de 1947. O pianista lembra com muito carinho o papel que Granz – assim como Benny Goodman e Artie Sahw – teve na luta contra a segregação racial e permaneceu viva em sua memória a noite em que o criador da Caravana JATP recusou-se a deixar seus músicos se apresentarem para uma platéia na qual os negros ficavam segregados dos brancos.

Entre 1948 e 1953, Jones foi o pianista de Ella Fitzgerald e o trabalho com a exigente cantora deu ainda mais visibilidade à sua carreira e abriu-lhe muitas portas no disputado mercado jazzístico do período. Aliás, acompanhar cantores e cantoras era uma especialidade de Jones, que também trabalhou com Sarah Vaughan, Johnny Mathis, Dakota Staton, Helen Merrill, Betty Carter, Abbey Lincoln, Chris Connor, Johnny Hartman, Anita O’Day, Joe Williams e muitos mais.

Os anos 50 e 60 foram exaustivamente prolíficos. Já estabelecido como um dos mais competentes acompanhantes da cena novaiorquina e pianista preferido da gravadora Savoy, Jones, que também liderava seus pequenos grupos, geralmente no formato de trio. Costuma-se dizer que é mais difícil indicar um grande nome do jazz que não tenha trabalhado com Hank Jones do que encontrar uma agulha em um palheiro.

Com efeito, Hank trabalhou com músicos da estirpe de Cal Tjader, Buddy Rich, Dizzy Gillespie, J.J. Johnson, Stan Getz, Al Cohn, Bill Perkins, Richie Kamuca, Eddie Bert, Donald Byrd, Yusef Lateef, Jimmy Cleveland, Milt Jackson, Kenny Clarke, Lawrence Brown, Nat Adderley, Zoot Sims, Jimmy Raney, Bob Brookmeyer, Max Roach, Pepper Adams, Lester Young, Paul Chambers, Cannonball Adderley, Fats Navarro, Paul Gonsalves, Kenny Dorham, Frank Wess, Hank Mobley, Sahib Shihab, Herbie Mann, Ray Brown, Curtis Fuller, Quincy Jones, Oliver Neslon, Wes Montgomery, Clark Terry, Urbie Green, Lee Morgan, Sonny Stitt e uma infinidade de outros.

Em 1958, quando o fotógrafo Art Kane reuniu 57 dos maiores músicos de Jazz em Nova Iorque, para fazer a célebre fotografia “A Great Day In Harlem”, publicada na Esquire Magazine, Hank Jones estava lá, juntamente com os geniais Dizzy Gillespie, Johnny Griffin, Horace Silver, Thelonious Monk, Charles Mingus, Maxine Sullivan, Buck Clayton, Benny Golson, Mary Lou Williams, Coleman Hawkins, Count Basie, Gene Krupa, Marian McPartland, Sahib Shihab, Gerry Mulligan, Red Allen, Sonny Rollins, Lester Young, Oscar Pettiford e muitos outros.

Entre 1959 e 1975, Jones integrou a orquestra da rede de TV CBS, que lhe dava a estabilidade financeira que a grande maioria dos músicos de jazz não dispunha. Nessa época, acompanhou uma constelação de astros, especialmente aqueles que se apresentavam no The Ed Sullivan Show, como Frank Sinatra, Judy Garland e Johnny Mathis. Outra curiosidade: era Jones que, ao piano, acompanhou a atriz Marilyn Monroe quando esta interpretou a sua lúbrica versão de “Happy Birthday” para o então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, no dia 19 de maio de 1962, em pleno Madison Square Garden.

Hank também atuou em musicais da Broadway, com destaque para “Ain't Misbehavin'”, baseada nas composições do pianista Fats Waller. As décadas de 70 e 80 pouco afetaram a atividade febril do pianista, que incluem dezenas de álbuns em seu próprio nome e duetos inesquecíveis com Tommy Flanagan (“Our Delight”, Galaxy, 1978), John Lewis (“Na Evening With Two Grand Pianos”, Atlantic, 1979) e George Shearing (“The Spirit Of 176”, Concord, 1988).

Criou, em 1976, o Great Jazz Trio, grupo que se apresentava com regularidade no Village Vanguard e que teve como membros originais o baixista Ron Carter e o baterista Tony Williams. Pelo combo, que gravou dezenas de álbuns, passaram músicos da estatura de Eddie Gomez, George Mraz, John Patitucci e Richard Davis, no contrabaixo, e Al Foster, Jimmy Cobb, Jack DeJohnette e Elvin Jones, na bateria. O grupo gravou com diversos músicos de primeira linha, como Jackie McLean, Art Farmer, Benny Golson e Sadao Watanabe.

A seu turno, o trabalho de Hank como acompanhante de grandes nomes do jazz – como Art Pepper, Anthony Braxton, Lionel Hampton, Tal Farlow, Red Mitchell, Warren Vaché, James Moody, Charlie Haden, Ken Peplowski, Scott Hamilton e Curtis Lundy, por exemplo – manteve-se sempre constante. Digno de nota foi a sua participação na Thad Jones-Mel Lewis Orchestra, em substituição ao amigo e pupilo Roland Hanna, com quem excursionou pela Europa em uma turnê que chegou ao fechadíssimo Leste Europeu, incluindo concertos na Rússia e Polônia. Durante anos foi atração fixa do Cafe Ziegfeld, em Manhattan.

O século XXI encontrou um Hank Jones mais que disposto, com destaque para os duetos com o saxofonista Joe Lovano (“Joyous Encounter”, Blue Note, 2005) e a cantora Roberta Gambarini (“You Are There”, Universal, 2006). Tocou com Diana Krall a canção “Dream a Little Dream of Me”, no tributo a Ella Fitzgerald “We All Love Ella” (Verve, 2007) e foi um dos destaques do documentário “Note by Note: The Making of Steinway L1037”, filmado em 2007.

Gravações a granel, excursões à Europa e ao Japão, matérias em revistas especializadas e participações nos mais importantes festivais do mundo deram a tônica de suas atividades. Dois discos ao lado do velho amigo Frank Wess (“Hank and Frank, Vol. I”, de 2006 e “Hank and Frank, Vol. II”, de 2009), ambos para a Lineage Records, resgataram a atenção da crítica para o seu fraseado impecável e elegante ao extremo. Uma das mais soberbas peças de sua alentada discografia é “For My Father”, gravado entre os dias 30 de janeiro e 1º de fevereiro de 2004, para o selo Justin Time.

Ao lado do baixista George Mraz e do baterista Dennis Mackrel, Hank está muito à vontade para professar seu estilo sóbrio e refinado, a bordo de um repertório eclético e de excepcional bom gosto. A abertura fica a cargo de “Paulette”, do ex-parceiro Al Foster, na qual o trio flerta com a bossa nova. Com uma excepcional técnica com as escovinhas, Mackrel dá uma aula magna de delicadeza e é o maior destaque individual da faixa.

Uma monumental releitura de “Bemsha Swing”, do sempre ótimo Thelonious Monk, vem logo a seguir. Dotada de muita graça e swing, é o veículo perfeito para que o líder possa exibir a sua proverbial excelência melódica. Alongando as notas fazendo uso parcimonioso das dissonâncias, o pianista subverte o cânone monkiano e permite ao ouvinte que se deleite com a melodia, deixando a harmonia em um plano secundário. O resultado, embora pareça blasfemo aos ouvidos de alguns, é simplesmente delicioso e inesquecível.

“Queen Of Hearts” tem um andamento de valsa, com evocações primaveris à música delicada de um Steve Kuhn ou de um Bill Evans, mas reveste-se também de uma certa dose de melancolia. Mais uma vez, o trabalho de Mackrel é notável, especialmente com os pratos. A consagrada “Johnny Come Lately”, de Billy Strayhorn, recebe um arranjo moderno e, ao mesmo tempo, relaxado. O versátil Mraz disseca as entranhas do blues, em uma atuação precisa e arrojada.

Jones pertence àquela rara estirpe de músicos que consegue imprimir frescor em tudo o que faz, inclusive quando executa temas mais conhecidos – e é lógico que Ellington não poderia ficar de fora. As interpretações de duas de suas gemas mais preciosas, “Sophisticated Lady” e “Prelude To A Kiss”, demonstram que reverência não significa ausência de idéias próprias, muito menos de personalidade. Ambas as versões são belíssimas e o piano de Hank parece flutuar, tamanha a leveza do seu toque.

Strayhorn comparece, novamente, com a etérea “Lotus Blossom”, uma de suas composições mais belas e sofisticadas, na qual a integração do trio é absurda, merecendo audição detida a percussão delicada de Mackrel e o suntuoso arcabouço melódico construído pelo líder. Em “SKJ”, de Milt Jackson, tem-se um profundo mergulho nas caudalosas águas do blues e, mais uma vez, o destaque vai para o baixo taciturno de Mraz, que constrói uma atmosfera claustrofóbica e soturna.

Cole Porter está presente com a eufórica “Easy To Love”, uma das faixas mais irresistíveis do álbum, na qual o idioma bop se faz presente no dedilhado feérico do líder e, sobretudo, na percussão vulcânica de Mackrel. A infecciosa “Because I Love You” é outro momento saboroso do álbum. Composto pelo trompetista Tom Harrell e executada com um swing inebriante, o tema tem uma estrutura bastante singela e, talvez por isso mesmo, irresistível. O líder brinca com as teclas e faz delas um espaço para o lúdico – aos 85 anos, Jones mostrava ao mundo que ser criança é um estado de espírito e não um estado cronológico.

Harold Mabern, um dos mais importantes pianistas contemporâneos, tem a honra de ver a sua “Grace of God” interpretada com discrição e sobriedade pelo trio. Para terminar, mais um standard, “Softly as in a Morning Sunrise”, que recebe um arranjo vivaz e intenso, mais acelerado que o habitual. O fraseado classudo de Jones casa à perfeição com a elegante melodia de Oscar Hammerstein, fazendo desse disco um dos pontos mais altos da carreira do veterano pianista. Um disco à altura da importância do pianista e excelente oportunidade para começar a se familiarizar com o seu majestoso universo.

Jones teve a felicidade de receber, em vida, homenagens tão extensas quanto a sua brilhante carreira. Mereceu o título de Jazz Master em 1989, dado pela National Endowment for the Arts Jazz e, em 2003, o pianista Geoffrey Keezer lançou o álbum “Sublime - Honoring the Music of Hank Jones”, pela Telarc, no qual visita a obra composicional do decano dos pianistas de Detroit, fazendo duetos históricos com estrelas do naipe de Kenny Barron, Chick Corea, Benny Green e Mulgrew Miller.

Também em 2003, foi nominado “Jazz Living Legend Award” pela poderosa ASCAP (American Society of Composers, Authors, and Publishers). Foi eleito o pianista do ano de 2007 pela Jazz Journalists Association. Recebeu a prestigiosa National Medal of Arts em 2008 e foi o grande homenageado do Festival Internacional de Jazz de Montreal, no Canadá daquele ano. Foi indicado para um prêmio Grammy especial, por sua contribuição para a música, em 2009, mesmo ano em que a University of Hartford lhe concedeu o título de Doutor Honorário e a revista Down Beat o indiccou para o seu Hall of Fame.

Como sideman, participou de mais de mil gravações. Sua discografia como líder é bastante extensa e prima pela enorme qualidade. Seus discos foram lançados por selos como Riverside, Prestige, Evidence, Lonehill, Columbia, Mercury, Savoy, MPS, Black & Blue, Verve, Fresh Sound, Cheski, MCA, Capitol, Timeless, Concord, Denon e dezenas de outros. Ele faleceu no dia 16 de maio de 2010, de causas não reveladas, no Calvary Hospital Hospice, em Nova Iorque.

Em seus 91 anos muito bem vividos – ele não fumava, não bebia e jamais usou qualquer tipo de droga – Hank Jones deixou um dos mais belos e emocionantes legados de toda a história do jazz. Pedro “Apóstolo” Cardoso sintetiza a sua importância para o universo jazzístico: “Hank Jones foi, talvez, o menos incensado dos pianistas boppers, talvez até por sua postura plena de classe e de discrição. Um mestre das 88 teclas, um fidalgo no comportamento e nas apresentações”.

Sobre ele, o português José Navarro de Andrade escreveu um belíssimo texto, do qual extraio alguns excertos:

“A morte de Hank Jones, com a idade que tinha e pela atividade que manteve até aos derradeiros momentos, é mais um pouco da morte do jazz. Com a morte de Hank Jones, desaparece um modo de ser (mais do que um estilo ou escola) do jazz: aquilo que se chamava ‘O Jazz de Detroit’. Aliás, para ser mais tremendista, poderá arriscar-se que com Hank Jones vai a enterrar a própria Detroit. Não deixa de ser assustador imaginar que uma cidade pode morrer por dentro, corroída pelo abandono. É o caso exemplar de Detroit, cuja downtown são ruínas fantasmagóricas e não poucas áreas residenciais, outrora ricas, são hoje desolados baldios. Nas imagens recolhidas por Stan Douglas no final do séc. XX, já não se consegue ouvir o Hard Bop, fica apenas um triste silêncio. Já não há o delicado piano de Hank Jones.”

Outro que não se furtou a falar sobre o falecido pianista foi o crítico Nat Hentoff, seu amigo por longas décadas e para quem Jones era o símbolo vivo da serenidade. Segundo ele “Não importava o tempo ou o humor, a serenidade Hank sempre dominava a cena. Ele sabia quem era, e sempre se manteve trabalhando para preservar a identidade. Certa vez eu lhe disse que o que mais gostava em sua música era que ela sempre soou nova. Com humildade, ele respondeu ‘Toda noite eu tento tocar como se fosse a primeira vez’. Para Hank, a música era sempre algo novo. Havia sempre um horizonte onde ele não havia chegado ainda”.

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