O FILHO FAVORITO DE NETUNO
Música e outras coisas

O FILHO FAVORITO DE NETUNO



Inovar é preciso. Que o diga Steve Turre. Afinal de contas, se Hermeto Paschoal pode realizar concertos utilizando pratos, panelas, chaleiras e facas Ginsu ou levar para os estúdios porcos e galinhas, porque não usar conchas como instrumentos musicais? Para além do aspecto meramente pitoresco, o fato é que Steve consegue extrair de suas conchas uma sonoridade absolutamente pessoal e única. Como se não bastasse, é considerado um dos maiores nomes do trombone contemporâneo, merecendo rasgados elogios dos ídolos J. J. Johnson, Slide Hampton e Curtis Fuller.

Stephen Johnson Turre nasceu no dia 12 de setembro de 1948, na cidade de Omaha, estado de Nebraska, em uma família de ascendência mexicana, mas foi criado em Lafayete, pequena cidade vizinha a San Francisco, na Califórnia. Seu primeiro instrumento foi o aristocrático violino, mas aos dez anos, optou pelo trombone, por influência do pai. Os pais, James e Carmen, se conheceram durante um concerto da orquestra de Count Basie e além da música latina de Célia Cruz, Armando Peraza, Pérez Prado, Tito Puente, Mongo Sanatamaria ou Xavier Cugat, o garoto adorava ouvir country – até hoje é fã de Hank Williams – blues, jazz e música brasileira.

Durante a infância, Steve estudou na Acalanes High School, sob a tutela do maestro Elvo D'Amante e integrou a orquestra da escola. Complementava a educação musical formal com aulas particulares, ministradas por Rogers Shoemaker e Phil Wilson (egresso das orquestras de Herb Pomeroy e Woody Herman), ambos trombonistas profissionais e bastante conhecidos na região de San Francisco.

Com apenas 13 anos, Steve e o irmão, o saxofonista Mike Turre, já participavam de gigs em San Francisco Bay, e começaram a firmar a reputação como músicos talentosos e versáteis, chamando a atenção do grande James Moody. No final dos anos 60, o trombonista freqüentou a Sacramento State University, onde estudou teoria musical, ao mesmo tempo em que iniciava a carreira profissional, tocando com a Escovedo Brothers Band, liderada pelo baterista Pete Escovedo e que fazia uma anabolizada mistura de salsa, R&B e jazz.

Em 1968, Steve foi convidado para tocar com o multi-instrumentista Rahsaan Roland Kirk, quando este se apresentava no clube Now/Then, na região de San Francisco Bay, e o trampo acabou lhe rendendo, além do pagamento de 50 dólares por semana, a amizade e o carinho eterno do multi-instrumentista. Foi Roland quem apresentou o jovem trombonista aos mestres da velha escola como Dickie Wells, J. C. Higginbotham, Trummy Young e Jack Teagarden.

Afeiçoado a instrumentos exóticos, como flautas tailandesas e fagotes birmaneses, Kirk certa feita apareceu com uma concha e mostrou a seu jovem discípulo. Turre experimentou o curioso instrumento e adorou a sonoridade que extraía dali. O resultado é que, a partir de então, incluiu as conchas em seu rol de instrumentos e, ao longo dos anos, montou uma respeitável coleção de vários tamanhos e timbres.

Para tornar funcional a concha, Turre geralmente corta a ponta do reservatório com um serrote, no tamanho aproximando do bocal de um trompete ou trombone. Em seguida, com a ajuda de uma chave de fenda ou de um pequeno formão, ele retira o núcleo central da concha, para deixá-la oca, e lixa a extremidade do bocal, para que o atrito não fira os lábios ao tocar. Algumas vezes, não é possível ajustar o bocal naturalmente e o músico lança mão de uma variedade de próteses de borracha, que fazem o papel de boquilhas.

De qualquer sorte, embosa o uso de conchas como instrumento musical não seja propriamente uma novidade – os aztecas e outros povos pré-colombianos faziam isso na América Central e há registros de diversas tribos na África, na Polinésia e na Oceania que também eram hábeis no manuseio do instrumento, que era utilizado como meio de comunicação – não há dúvida de que com Steve o prosaico artefato adquiriu o status de um respeitável instrumento musical.

O trabalho com Kirk lhe deu alguma notoriedade e em 1972 Steve foi convidado para participar do álbum “Caravanserai”, do guitarrista Carlos Santana. No mesmo ano, tocou com outros astros pop – como o cantor Paul Simon, no álbum homônimo de 1972, que contém o hit “Mother and Child Reunion” – e excursionou com Ray Charles em uma turnê que cruzou os Estados Unidos e chegou à Europa e à Ásia. Da convivência entre eles, brotou uma sólida amizade, que perduraria até a morte de Charles, em 2004.

A partir daí, o nome seu nome se firmou, de maneira definitiva, entre os mais talentosos músicos de sua geração. O selo de qualidade foi dado por Art Blakey, que o convidou para integrar os Jazz Messengers. Steve participou do álbum “Anthenagin” (Prestige, 1973), em uma formação que incluía craques como o trompetista Woody Shaw – de quem era grande amigo e que o havia apresentado a Blakey – e o pianista Cedar Walton.

Ainda em 1973, Turre integrou a Thad Jones/Mel Lewis Orchestra, com quem excursionou pela Europa, passando em seguida para a banda de Chico Hamilton, com quem permaneceria de 1974 a 1976. Curiosamente, com Hamilton tocava, além do trombone e das já habituais conchas, contrabaixo elétrico em algumas gravações, incluindo o elogiado “Peregrinations”, de 1975, que contava com a participação do altoísta Arthur Blythe. Aduza-se que além dos citados instrumentos, Steve ainda toca violoncelo, piano e bateria.

A carreira como músico de apoio incluía trabalhos com os velhos parceiros Woody Shaw, no disco “Rosewood”, de 1977, e Roland Kirk, em “Boogie-Woogie String Along For Real”, último álbum do cultuado saxofonista e também gravado naquele ano. Acompanhou ou foi acompanhado por gente do quilate de McCoy Tyner, Dexter Gordon, Slide Hampton, Tito Puente, J.J. Johnson, Herbie Hancock, Mongo Santamaria, Van Morrison, Pharoah Sanders, Horace Silver, Max Roach, Carmen Lundy, Archie Shepp, Jon Faddis, Cassandra Wilson, Célia Cruz, Willie Colón, Johnny Griffin, Christian McBride, John Scofield, Randy Brecker, Terence Blanchard, Cyrus Chestnut e muitos mais.

Passou algum tempo no quinteto de Cedar Walton e aproveitou para retomar os estudos na University Without Walls, ligada à University of Massachusetts, onde se graduou em arranjo e composição. Desde 1986, integra a orquestra do popularíssimo show de TV Saturday Night Live, emprego que lhe assegura a necessária estabilidade econômica e que lhe permitiu comprar a confortável casa em que mora, na pequena Montclair, Nova Jérsei. Retornou à academia,

Em 1987 Dizzy Gillespie o convidou para integrar a sua United Nations Orchestra, big band multicultural integrada por músicos norte-americanos, cubanos, brasileiros e africanos. Outra associação relevante foi com o trompetista Lester Bowie em seu projeto Brass Fantasy, ao lado de quem gravou os premiados álbuns “I Only Have Eyes For You” (1985) e “Avant Pop” (1986).

Destaque também para o álbum “The Timeless All-Stars”, lançado pelo pequeno selo Early Bird em 1990, com ótima recepção por parte da crítica especializada, onde Turre atua ao lado de um verdadeiro “time dos sonhos”: Bobby Hutcherson, Harold Land, Cedar Walton, Buster Williams e Billy Higgins. Realizou o sonho de tocar com o antigo ídolo Slide Hampton, em seu projeto World of Trombones.

Em 1993, fundou a Sanctified Shells, big band que utilizava instrumentos tradicionais e uma sessão de conchas, que se apresentou com muito sucesso, na edição do Monterey Jazz Festival de 1995. Entre os músicos que passaram pela orquestra, destacam-se os excepcionais trombonistas Robin Eubanks e Clifton Anderson (este último, sobrinho de Sonny Rollins), a violinista Regina Carter, o pianista Mulgrew Miller, o contrabaixista Buster Williams e os bateristas Ignacio Berroa e Lewis Nash.

Contratado pela Telarc em 2000, foi recebido na gravadora com status de estrela e, logo de cara, gravou um dos seus álbuns mais espetaculares. Trata-se do fenomenal “In The Spur of the Moment”, que traz a excelsa participação de três dos mais consagrados pianistas de todos os tempos: Ray Charles, Chucho Valdes e Stephen Scott. Dividido em três partes, o disco também apresenta três formações distintas, que executam três escolas que marcaram a eclética formação de Turre.

Na primeira parte, chamada “The Blues In Jazz”, atuam, além do líder, Ray Charles ao piano, Peter Washington no contrabaixo e o irmão mais novo, Peter Turre, na bateria. O disco abre com fabulosa “Ray’s Collard Greens”, homenagem de Turre ao amigo e antigo patrão. Blues acelerado e com pitadas de hard bop, lembra os trabalhos de Curtis Fuller para a Prestige no final dos anos 50 e para a Blue Note no início da década seguinte. Charles é um gênio, capaz de transitar com a mesma classe pelo pop ou pela soul music, mas é no blues que ele se encontra, mais que em qualquer outro contexto, em casa. Econômico no fraseado, encaixando as com notas com a precisão de um joalheiro, o diálogo que mantém com o trombone e com as conchas mágicas de Turre é um deleite musical.

Em seguida, a extasiante versão de “Misty”, de Erroll Garner e Johnny Burke e um clássico absoluto da canção americana. Aqui é a velha escola de Jackie Teagarden e Tricky Sam Nanton quem impele a atuação magistral de Turre. O som que ele extrai do trombone é qualquer coisa de sobrenatural e Charles dedilha as teclas do piano como quem acaricia uma delicada princesa do oriente. Emoção à flor da pele, em um dos momentos mais soberbos do disco.

Com um ritmo contagiante “Duke Rays” é outra composição de Turre, na qual o baixo esfuziante de Washington rouba a cena. Finalmente, mais um standard, “The Way You Look Tonight”, de Jerome Kern, interpretada de forma irreverente e muito bem humorada. Aqui o quarteto tem bastante liberdade para improvisar, merecendo destaque a sacolejante performance do líder, que esbanja alegria e descontração.

Na segunda parte, denominada “Modern And Modal”, é a vez do espetacular Stephen Scott assumir o piano e, juntamente com o baixista Buster Williams e o baterista Jack DeJohnette, acompanhar o líder em uma abordagem mais contemporânea. Nem por isso, o quarteto abre mão dos gênios do passado e o primeiro tema é um medley em homenagem a Duke Ellington. “Do Nothing Till You Hear From Me / Five O’Clock Drag” ganham arranjos respeitosos mas nada acadêmicos ou burocráticos.

O segundo quarteto demonstra uma profunda intimidade com o post-bop. Turre é o autor de “Something For John”, tema cheio de groove e que indica que a influência musical de Woody Shaw ainda é muito vívida. O fraseado de Scott, discípulo confesso de Herbie Hancock, é pura elegância e refinamento, mas vem recheado em uma dose absurda de swing. DeJohnette é um baterista espetacular, com um senso de tempo assombroso e é, sem dúvida, a grande força motriz por trás dessa brilhante execução.

Demonstrando porque é considerado um dos mais criativos e tecnicamente bem-dotados pianistas surgidos nos 70, Scott é também um fabuloso compositor e contribuiu com a faixa que dá nome ao disco. Bebop estilizado e moderno - sem que soe “modernoso” – o tema é prato cheio para improvisações e solos generosos, a começar pelo do autor. Williams é combina solidez e versatilidade e as cordas do seu contrabaixo parecem querer falar. Dobrando nas conchas e no trombone, Turre expande as fronteiras de ambos os instrumentos com uma inventividade e uma técnica primorosas.

Por fim, um novo quarteto é formado, desta feita para a sessão denominada “Afro-Cuban Sounds”, com a presença magnética do grande Chucho Valdés e as luxuosas presenças de Andy Gonzalez no contrabaixo e do monumental Horacio “El Negro” Hernandezna bateria e percussão. Toda a riqueza e espontaneidade da

Música latina estão presentes em “Sueños de La Habana” e em “Descarga Ahora”, ambas compostas pelo líder, sendo que a segunda presta uma homenagem ao trombonista cubano Generoso “El Tojo” Jimenez.

O terceiro tema interpretado pelo quarteto é a inebriante “Claudia”, balada de autoria de Valdés e imortalizada por Paquito d’Rivera. Com uma introdução que é emotividade pura, a cargo do autor, os outros instrumentos vão sendo costurados de maneira discreta, com o trombone sussurando frases musicais repletas de ternura. Um delicado quarteto de cordas se junta ao combo, tornando ainda mais encantadora a execução. Por tantos predicados, este disco não é menos que uma enorme e verdadeira declaração de amor à música.

Em sua seleta, porém não muito extensa, discografia como líder, constam ainda trabalhos para selos como Stash, Antilles, Verve e Highnote. Turre também guarda em sua casa dezenas de prêmios de melhor trombonista, concedidos por revistas especializadas, como Down Beat Magazine, Jazz Time e Jazziz, tanto na votação dos críticos quanto na votação do público. Aliás, mesmo o seu trabalho com as conchas merece destaque na premiação da Down Beat: por causa dele, Turre abiscoitou diversas vezes o prêmio de “Best Miscellaneous Instrumentalist”.

Em 2003, lançou “One 4 J: Paying Homage to J. J. Johnson”, pela Telarc, no qual homenageia o mestre e influência maior, falecido em 2001. A seu lado, alguns dos mais importantes trombonistas da nova geração, como Robin Eubanks, Joe Alessi, Steve Davis, Andre Hayward e Douglas Purviance. Aliás, a pedido da família de Johnson, Turre tocou no funeral do amigo e mentor.

Casado com a violoncelista Akua Dixon, Steve é considerado um verdadeiro “evangelista do trombone”. Além de executante, também investiu na carreira de compositor e educador musical, ministrando oficinas em conservatórios e universidades. Seu mais recente grupo é formado poelos talentosos Xavier Davis (piano), Ray Drummond (baixo), Ron Blake (saxofone), Ignacio Berroa (bateria), Abdou Mboup (percussão) e Christian Scott (trompete) e com ele tem se apresentado em concertos e festivais ao redor do mundo.

Embora tenha freqüentado a academia e tenha estudado música sob o ponto de vista formal, Turre confessa que o aprendizado musical, embora valioso, não é feito nas salas de aula. Segundo ele, “Sabe para que servem as escolas? Para ensinar a ler e escrever partituras. Você aprende a ler e escrever música, aprende teoria musical, aprende escalas, contrapontos, arranjos. A escola te dá esse tipo de referencial teórico. Mas escola alguma é capaz de ensinar você a tocar. Eu aprendi a tocar trabalhando com caras como Art Blakey, McCoy Tyner, Woody Shaw, Rahsaan Roland Kirk. Na escola, tudo o que aprendi foi ler e escrever partituras. É claro que ajuda, mas não é o mais importante”.

Apaixonado pela música brasileira, incluiu em um de seus álbuns uma versão de “Basta de clamares inocência”, do nosso inesquecível Cartola. Desprovido de qualquer tipo de preconceito e exímio conhecedor dos mais diversos idiomas musicais, com trânsito fluente entre o popular e o erudito, o jazz e o pop, a música afro-cubana e a europeia, ele tem uma visão bastante lúcida sobre o papel do jazz: “A música clássica européia é parte das raízes do jazz, mas não é a mais importante. É claro que os conceitos harmônicos vêm de lá, mas o mais importante é a ligação com a África, o conceito rítmico, a consiência coletiva da improvisação. Por conta da escravidão e do racismo, há uma gama enorme de sentimentos que permeiam o jazz e que o tornam aquilo que ele é”.

Turre continua a trilhar o seu personalíssimo caminho. Sobre o ofício de tocar, suas palavras revelam a sabedoria própria dos grandes: “Um músico é como um médico: ele deve curar as pessoas com sua arte, fazê-las se sentir melhor. Enquanto eu puder fazer isso, serei feliz. Ganhar dinheiro é legal, mas não faz ninguém feliz”. E ele, portanto, continua a distribuir alegria e a esbanjar a disposição de fazer seus ouvintes se sentirem bem. Sempre, é claro, com muito talento e sob as bênçãos de Netuno.


=========================================





loading...

- O Demolidor
Ainda na infância Matt Murdock perdeu a visão em um acidente radioativo. Em compensação, seus outros sentidos se tornaram extremamente aguçados. Ele consegue distinguir, pelo olfato, uma pessoa no meio de uma multidão e ouvir, a quilômetros de...

- Pondo A Boca No Trombone!
Estamos na Inglaterra, no século XII. O Rei, Ricardo Coração de Leão, ausentara-se do país, a fim de lutar nas Cruzadas. Em seu lugar, havia deixado seu irmão mais novo, o astucioso e corrupto Príncipe João. Inebriado pelo poder, João iniciou...

- Quando O Mundo Era Jovem
Nascido no dia 17 de janeiro de 1934, Cedar Anthony Walton Junior, um texano de voz pausada, gestos tranqüilos e trajes sempre muito alinhados, é apontado como o mais importante pianista do hard bop ainda em atividade. Sua carreira é das mais...

- Um Petardo Sonoro Chamado Curtis Fuller
Curtis DuBois Fuller é considerado pela crítica especializada o trombonista mais importante do hard bop, com relevância comparável à que teve J. J. Johnson (uma de suas mais significativas influências, ao lado de Jimmy Cleveland e Urbie Green)...

- Caso VocÊ Ainda NÃo Tenha Escutado...
De 27 de fevereiro, quando sofreu um pavoroso acidente no metrô de Nova Iorque que lhe custou o braço esquerdo, a 10 de maio de 1989, quando as complicações decorrentes do acidente por fim consumiram o resto de suas parcas energias, ele agonizou...



Música e outras coisas








.