Nascido no dia 17 de janeiro de 1934, Cedar Anthony Walton Junior, um texano de voz pausada, gestos tranqüilos e trajes sempre muito alinhados, é apontado como o mais importante pianista do hard bop ainda em atividade. Sua carreira é das mais longevas, mas as coisas nem sempre foram fáceis para ele, que teve que ralar bastante até conseguir o almejado lugar ao sol. Nessa trajetória, pode se orgulhar de ter tocado com alguns dos maiores nomes do jazz e de ter construído uma obra das mais relevantes, registrada em dezenas de álbuns, boa parte deles ainda em catálogo.
O primeiro contato com a música veio por intermédio da mãe, uma pianista amadora de formação clássica e que dava aulas de piano em casa. Foi ela a responsável por ensinar ao filho os primeiros acordes e a incutir nele o gosto pelo jazz. A família morava em Dallas e o ambiente musical da cidade era bastante conservador, sendo muito pouco receptivo a músicos de outras plagas.
Walton conta que mesmo grandes nomes do jazz eram recebidos ali com desconfiança. “As pessoas de lá suspeitavam de tudo que vinha de fora. Mesmo quando Duke Ellington vinha se apresentar, a atitude era: ‘quem é esse cara? Nós temos as nossas próprias bandas aqui.’ Depois que o sujeito se apresentava as pessoas passavam a respeitá-lo, mas antes disso, suspeitavam dele. A menos que o músico tivesse nascido ou crescido no Texas, ele era visto com reservas”. Ellington, aliás, é descrito não como mera influência, mas como verdadeira inspiração e sua gravação de “Satin Doll”, para a Capitol, permaneceu, durante muitos anos, como um verdadeiro hino para o menino.
Graças à influência dos pais, o garoto tomou gosto pelo jazz e habitualmente ia assistir às apresentações dos grandes nomes da época, como Tommy Dorsey, Nat King Cole, Eddie Heywood, Errol Garner, Mary Lou Williams, Earl Hines, Hank Jones, Duke Ellington, Oscar Peterson, Lester Young e Dizzy Gillespie, quase sempre na companhia da mãe. Suas primeiras influências foram Nat King Cole, Bud Powell, Thelonious Monk e Art Tatum, cujas gravações eram ouvidas com entusiasmo e devoção.
A educação musical formal começou na Lincoln High Scholl, na cidade natal, onde o futuro pianista adquiriu intimidade com as partituras, escalas, notas e acordes. Após concluir o ensino médio, no início dos anos 50, foi estudar música na Dillard University, em Nova Orleans, onde teve como colega de turma o também pianista Ellis Marsalis, outro pianista de excepcionais recursos e que, no futuro, se tornaria mais conhecido como o pai de Wynton Marsalis.
Durante um período de férias, Cedar e a família viajavam até a Califórnia, quando fizeram uma parada em Denver, também no Texas. Curioso, o jovem resolveu conhecer o campus da University of Denver e ali ficou encantado. Nem tanto pelos métodos pedagógicos ou pela excelência do corpo docente, mas pelo singelo fato de que os alojamentos, além de novos, eram compartilhados entre rapazes e moças. Esse fato foi decisivo para fazê-lo deixar Nova Orleans e retornar para o Texas, mas, de qualquer maneira, a mudança fez bem ao pianista.
De fato, a atmosfera em Austin era bastante arejada, tanto do ponto de vista musical como do ponto de vista da convivência entre negros e brancos. Acostumado a ter que sentar nos bancos traseiros dos ônibus da cidade natal, Cedar de repente se deu conta de como era libertadora a vida sem a opressiva marca da segregação. Na universidade, o programa educacional era bastante amplo e incluía lições de instrumentos os mais variados, como o oboé e a flauta.
Além disso, as noites eram reservadas para as gigs nos diversos clubes e boates locais, como o Denver Club, onde muitos jazzistas de peso costumavam se apresentar quando estavam na cidade. Foi assim que Cedar pôde conhecer de perto – e, em alguns casos, até mesmo acompanhar – figuras seminais como Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Miles Davis, Jerome Richarson, Earl Hines, Richie Powell, Johnny Hodges e John Coltrane, entre muitos outros.
Formado em arranjo e composição, Walton logo foi recrutado em um programa local de educação musical, a fim de dar aulas em escolas públicas de Denver. Em 1955, decidido a tentar seguir carreira musical, deixou o magistério para tentar a sorte em Nova Iorque. Munido de 75 dólares, um velho Chevrolet e alguns contatos, o pianista teve um início bastante complicado na cidade.
Sem dinheiro, foi obrigado a morar em alojamento da Associação Cristã de Moços e trabalhou como estoquista da loja Macy’s e como lavador de pratos da rede de lanchonetes Horn and Hardart. Um dos primeiros amigos que fez na nova cidade foi o também pianista Gil Coggins, que já havia trabalhado com Miles Davis e Lester Young. Foi graças a Coggins, que costumava transcrever solos de Bud Powell, que Walton aprofundou os estudos de harmonia e adquiriu uma enorme intimidade com o estilo do lendário pianista.
Depois de algum tempo, Cedar conseguiu tocar em algumas gigs e acabou por despertar a atenção do empresário Johnny Garry, administrador do lendário Birdland, que o contratou para atuar como atração fixa das segundas-feiras. Quando seu nome começava a se fazer notar na Meca do Jazz, eis que Tio Sam resolveu convocá-lo para o exército. Sua primeira lotação foi em Fort Dix, onde conheceu o saxofonista Wayne Shorter e teve a honra de acompanhar ninguém menos que Duke Ellington, durante uma apresentação de sua orquestra para os soldados. De Ellington, guardou um valioso conselho, dito logo após a sua vigorosa interpretação de “What Is This Thing Called Love?”.
O maestro sentiu que o jovem pianista ia com tanto ímpeto aos acordes que acabava por descaracterizar a melodia. Então, recomendou: “Vá devagar, garoto, economize as notas”. Ao final da sessão, em êxtase, o rapaz buscou a aprovação do maestro, que, sorrindo, lhe disse: “Eu pensei que tinha lhe dito para economizar as notas”. Em uma entrevista, muitos anos depois, Walton reconheceria a importância de Duke em sua formação: “Acho que influência não é a melhor palavra. Eu diria que ele foi minha grande inspiração. Ellington era realmente impressionante. Uma prova disso é que, com o passar dos anos, suas composições ainda se mantêm atuais, modernas”.
De qualquer maneira, seis meses depois de sua convocação ele foi destacado para uma base em Stuttgart, na Alemanha, e ali conheceu vários futuros jazzistas, como Don Menza, Leo Wright, Houston Person, Don Ellis e Eddie Harris, todos lotados na mesma companhia. Durante os dezoito meses em que passou na Alemanha, Walton teve a oportunidade de tocar com Milt Jackson, que na época estava na cidade para uma série de shows do Modern Jazz Quartet. Os dois tocaram juntos no The Atlantic Bar e se tornaram grandes amigos.
Em 1958, logo após ter sido dispensado das forças armadas, o pianista retornou a Nova Iorque e imediatamente recebeu convites para tocar com músicos de peso. Passou pelas bandas de Oscar Pettiford, Kenny Dorham (com quem fez, naquele mesmo ano, a sua primeira gravação, no álbum “Kenny Dorham Sings And Plays”, lançado pela Riverside), Lou Donaldson, Gigi Gryce, Sonny Rollins e J. J. Johnson.
Foi no grupo do trombonista, onde substituiu ninguém menos que o grande Tommy Flanagan, que Cedar se apresentou pela primeira vez no palco do mítico Village Vanguard. Empolgado, o pianista pediu a um amigo um gravador emprestado, a fim de registrar seu debut naquele templo do jazz. Johnson estava pronto para iniciar o primeiro set quando olhou para o lado e viu o piano vazio. Firmou a vista e percebeu que o seu pianista estava agachado, lutando bravamente para arrumar o gravador. J. J. nem pestanejou e deu uma regulada homérica no pianista. De qualquer modo, o show foi um sucesso, embora não se saiba se a apresentação foi gravada ou não!
Em Nova Iorque, Walton também se aproximou do ídolo Thelonous Monk, tão exótico na vida pessoal quanto na musical. Era comum topar com o Monge Maluco e sua amiga dileta, a baronesa Pannonica de Koenigswarter. Sobre os dois, Walton vaticinou: “Eles eram amigos platônicos. Nelly Monk, sua esposa, não se importava que seu marido ficasse por aí, passeando no Bentley da baronesa. Eu costumava tocar em um pequeno clube chamado Boomer’s, que Monk a Baronesa costumavam freqüentar. Quando eu os via ali, em frente ao palco, eu dizia para mim mesmo: ‘Oh, Meu Deus. É ele!’ Mas logo ficava tranqüilo e me concentrava no que tinha que tocar”.
A amizade com Pannonica e Monk evoluiu ao ponto de, em uma determinada ocasião, ser indicado por ela para substituir o pianista em alguns concertos no clube Five Spot. Monk havia adoecido e, por esse motivo, o jovem Walton teve a honra de liderar, por algumas noites, o badalado quarteto do ídolo, que então era integrado pelo baterista Roy Haynes, pelo contrabaixista Ahmed Abdul-Malik e pelo saxofonista Johnny Griffin.
Em abril de 1959 foi um dos três pianistas que participaram das gravações do incensado “Giant Steps”, de John Coltrane, atuando apenas em um take alternativo da faixa título (os outros dois pianistas foram os consagrados Tommy Flanagan e Wynton Kelly). Naquele mesmo ano, integrou o The Jazztet, comandado pelo trompetista Art Farmer e pelo saxofonista Benny Golson. Seu currículo como sideman registra participações em álbuns de Chet Baker, Jimmy Heath, Clifford Jordan, Sonny Red, Freddie Hubbard, Wayne Shorter e muitos outros.
No início de 1960, foi contratado por Art Blakey para substituir Bobby Timmons no célebre Jazz Messengers, onde além de pianista, acumulou as funções de arranjador e compositor, tendo diversos de seus temas, como “The Promised Land”, “Bolivia”, “Ugetsu” e “Mosaic”, gravados pela banda. Na época, a banda tinha uma das mais estupendas formações de sua história, com Freddie Hubbard no trompete, Wayne Shorter no sax tenor, Curtis Fuller no trombone e Jymie Merritt no contrabaixo.
Sobre Blakey, Walton declarou diversas vezes que o baterista era “o sujeito mais inteligente que jamais havia conhecido”. O intuitivo baterista rompeu com as concepções de Cedar que vinculavam a inteligência à formação universitária. Blakey, além de amigo e mentor, tornou-se uma verdadeira referência do ponto de vista musical. Em uma entrevista à saudosa revista Jazz Mais, o pianista disse: “Ele era um músico fantástico, que tocava com muita delicadeza e espontaneidade. Na conseguia, por exemplo, tocar duas vezes um tema do mesmo jeito”.
Cedar deixou os Messengers em 1964 para atuar como freelancer. Fez inúmeras gravações para a Blue Note e para a Prestige, onde era uma espécie de pianista fixo. A partir da segunda metade da década de 60, foi um dos mais requisitados acompanhantes do mercado, tendo tocado em álbuns de Donald Byrd, Joe Henderson,Bobby Hutcherson, Sonny Criss, Blue Mitchell, Pat Martino, Stanley Turrentine, Ray Brown, George Coleman, Billy Higgins, Lucky Thompson, Bob Berg, Archie Shepp, Idreess Sulieman, James Spaulding, Milt Jackson, Hank Mobley, Teddy Edwards, Houston Person, Joe Chambers, Johnny Coles, Dexter Gordon, Philly Joe Jones e Charles McPherson e muitos mais.
Durante cerca de um ano acompanhou a cantora Abbey Lincoln, com quem já havia tocado no final da década anterior (o pianista pode ser ouvido no disco “Abbey Is Blue”, de 1959) e entre 1966 e 1968 foi o pianista regular da banda de Lee Morgan e seu trabalho pode ser conferido em álbuns como “Charisma”, “The Rajah”, “Sonic Boom” e outros. Também acompanhou o saxofonista Jackie McLean em uma turnê pelo Japão.
Naquela época, Cedar passou a liderar seus próprios trios, geralmente ao lado do baixista Sam Jones e dos bateristas Louis Hayes ou Billy Higgins. Seu primeiro álbum como líder, chamado simplesmente “Cedar!”, foi gravado para a Prestige em 1967 e seus acompanhantes na empreitada eram músicos do gabarito de Leroy Vinnegar, Billy Higgins, Kenny Dorham e Junior Cook.
Os anos 70 e 80 foram de bastante trabalho. Durante algum tempo o pianista co-liderou um grupo ao lado do saxofonista Hank Mobley. Em 1973 se reuniu novamente a Blakey para uma excursão ao Japão e no ano seguinte criou o Eastern Rebellion, supergrupo nos moldes dos Jazz Messengers, por onde passaram nomes de peso, como o trombonista Curtis Fuller, o trompetista cubano Alfredo “Chocolate” Armenteros, os saxofonistas Clifford Jordan, Bob Berg, Ralph Moore, e George Coleman, os baixista Sam Jones e David Williams e o baterista Billy Higgins. O grupo se manteve em atividade até os anos 90, excursionando com certa regularidade e gravando, ocasionalmente, para selos como Timeless e Music Masters Jazz.
Walton também enveredou pelos controvertidos caminhos do fusion, tendo montado, também na década de 70, o grupo Mobius, cujo primeiro disco, chamado “Mobius” foi gravado em 1975 para a RCA. A banda trazia alguns nomes conhecidos, como o baterista Steve Gadd, o percussionista Ray Mantilla e o saxofonista Frank Foster e o álbum obteve vendagens expressivas. Em 1976 e também RCA, o grupo lançaria “Beyond Mobius”, onde atuaram o guitarrista Cornell Dupree, o saxofonista Eddie Harris, os trompetistas Blue Mitchell e Jon Faddis, mas desta vez as vendagens ficaram abaixo das expectativas.
O pianista voltaria a flertar com a música eletrificada outras vezes. Em 1978, gravou o álbum “Animations” (Columbia), com uma profunda inclinação funk e que contava com as presenças de craques como o baterista Al Foster e o trombonista Steve Turre. Em 1980 foi a vez de lançar “Soundscapes”, onde pontuavam o baixista Tony Dumas, o trompetista Freddie Hubbard, o cantor Leon Thomas e o percussionista brasileiro Rubens Bassini. Nesses trabalhos Walton aboliu o piano acústico para usar o piano elétrico e uma extensa gama de sintetizadores.
A partir da segunda metade da década de 80, Cedar também passou a integrar a Timeless All-Stars Band, sexteto do qual faziam parte o saxofonista Harold Land, o vibrafonista Bobby Hutcherson, o trombonista Curtis Fuller (posteriormente substituído pelo não menos talentoso Steve Turre), o baterista Billy Higgins e o baixista Buster Williams. Em 1986 atuou na trilha sonora do filme “She's Gotta Have It”, de Spike Lee, juntamente com músicos renomados, como o também pianista Stanley Cowell, o baixista Kenny Washington, Harold Vick e o baterista Joe Chambers.
Em 1993, o pianista prestou uma bela homenagem ao ex-patrão Art Blakey, com uma série de concertos chamada “The Art Blakey Legacy”, realizados no clube Sweet Basil, em Nova Iorque. Desses concertos foram extraídas as músicas do disco “Bambino: Cedar Walton Sextet Plays The Music Of Art Blakey”, lançado pela Evidence em 1998. O disco conta com as presenças de vários ex-integrantes dos Jazz Messengers como os saxofonistas Javon Jackson e Lou Donaldson, o trompetista Philip Harper e o trombonista Steve Turre.
No começo dos anos 90, formou o Sweet Basil Trio com o baixista Ron Carter, depois substituído por seu ex-aluno David Williams, e o velho parceiro Billy Higgins, que se manteve em atividade até a morte do baterista, em 2001. O trio recebeu esse nome por se apresentar com freqüência no badalado clube Sweet Basil e ali gravou três excelentes discos ao vivo, todos lançados pela Evidence.
Os dois primeiros – “My Funny Valentine”, e lançado em 1995, e “St. Thomas”, lançado em 1996 – foram gravados em fevereiro de 1991 e contavam com Carter no baixo. O terceiro, “You’re My Everything”, traz Williams no contrabaixo e foi gravado durante uma apresentação realizada no dia 02 de setembro de 1993. Lançado em 1997, o álbum é uma síntese das qualidades do pianista e apresenta um dos seus mais coesos e espontâneos registros fonográficos.
A faixa escolhida para abrir o disco é “My Heart Stood Still”, que recebe um arranjo bastante animado, que assegura aos três músicos um amplo espaço para os solos. Após uma introdução breve e delicada, a cargo de Walton, o trio destila vivacidade e energia, com destaque para o notável trabalho de Higgins. A interpretação do trio nada fica a dever a versões consideradas clássicas, como as de Sarah Vaughan, Wes Montgomery, George Shearing ou Ahmad Jamal. As palmas entusiasmadas, ouvidas durante vários momentos da execução, são mais que merecidas.
De autoria de Cedar, “Clockwise” é uma valsa espirituosa e swingada, com uma estrutura melódica incomum e bastante elegante, que se assemelha aos temas compostos por Herbie Hancock em seus discos feitos para a Blue Note nos anos 60. O fraseado do líder é insinuante e desprovido de excessos. Williams demonstra que o aprendizado com Carter foi proveitoso. Sua emissão traz uma sensação de intimidade e aconchego, contrapondo-se à euforia de timbres provocada por Higgins.
Composta por Chick Corea, “High Wire” é um vibrante caleidoscópio sonoro, onde entram influências do bebop, do hard bop, do jazz de vanguarda e até da música pop. O entrosamento do trio é absoluto, quase simbiótico. A maestria do líder, em trabalhar elementos de música erudita enxertando ali a característica mais evidente do jazz, o swing, cativa o ouvinte desde os primeiros acordes. A linha melódica imperturbável deve muito à excelência da dupla Williams-Higgins, afinadíssima e que merece todos os encômios.
“Skylark” é uma espécie de hino, de paradigma da beleza da grande canção norte-americana. Composta em 1941 pelo pianista e cantor Hoagy Carmichael a canção está, certamente, entre as cem composições mais gravadas da história do jazz. Seu lirismo ingênuo sempre ficou bastante associado às cantoras e as versões de Carmen McRae e Anita O’Day são exemplares. Sem afrontar as propriedades cantáveis do tema, o trio exercita aquele tipo discreto e nada afetado de lirismo, que invade os ouvidos e a alma com a intensidade de um poema de Drummond.
“Blues For Myself” tem uma batida inflamável e descompromissada, que conclama o ouvinte a sacudir a cabeça e a estalar os dedos. Sua cadência e espontaneidade desafiam a solenidade do blues de maneira pouco ortodoxa e irreverente, mas nunca desrespeitosa. O piano ágil de Cedar encontra ressonância na batida pulsante de Higgins. A destacar, a abordagem marcial que o infatigável baterista adota em algumas passagens do tema.
De autoria do líder, “Turquoise” tem uma estrutura . A sonoridade límpida e envolvente de Walton paga tributo a pianistas incisivos como McCoy Tyner ou Kenny Barron. O fraseado do líder é robusto e pouco afeito a arabescos sonoros, concentrando-se no essencial. A atuação de Higgins chega às raias do sublime. Definido pelo líder como “o sonho de qualquer pianista”, o baterista empreende uma vigorosa jornada percussiva, exaurindo todas as possibilidades rítmicas do instrumento.
A expansiva “Calmita Rose” é uma das faixas mais irresistíveis do disco. Sua atmosfera vibrante e descontraída nem de longe sugere que tenha sido composta por um inglês, no caso o baixista Ken Baldock, ex-integrante das bandas de John Dankworth e Ronnie Scott, que já atuou ao lado de feras como Oscar Peterson e Barney Kessell. Como de hábito, o líder trafega, soberano e com enorme autoridade, pelas harmonias, com destaque para a hipnótica linha de baixo.
Composta em 1931 por Harry Warren, Mort Dixon e Joseph Young “You're My Everything” foi imortalizada por Nat King Cole e já foi gravada por gente como Houston Person, Miles Davis, Sonny Rollins e Freddie Hubbard. O dedilhado econômico de Walton flui com elegância e sua abordagem remete às sutilezas harmônicas de Ahmad Jamal.
A tradicional “The Theme” fecha o disco de maneira bastante espontânea e alegre. Pianista de técnica refinada e de enormes recursos, Walton desenvolveu um senso rítmico invejável e credita boa parte dessa versatilidade ao período em que tocou com Blakey. Segundo ele, o baterista sempre exigia que seus músicos tocassem no limite, sem economizar energia. Na faixa de encerramento, ele exibe uma deliciosa amostra de suas qualidades e os ouvintes, extasiados, mal percebem a passagem dos quase 62 minutos de duração do álbum.
De 1990 para cá, Walton continuou a abrilhantar, em concertos e gravações, as sessões rítmicas de gente como Frank Morgan, Ernestine Anderson, David Murray, Freddy Cole, Pat Metheny, Steve Turre, Dave Pike, Larry Coryell, Kenny Burrell, Benny Carter, Etta James, Carmen Lundy, Hank Crawford e muitos outros.
Segundo o pesquisador Sylvio Lago, “Walton tem sido um extraordinário acompanhador de música instrumental e vocal, mas não pode ser esquecido como grande solista em trios e piano solo. Suas gravações no Maybeck Hall (1993) revelam um pianista de harmonias complexas, dotado de swing exemplar e de recursos rítmicos de diferentes facetas na expressão do blues, do stride e de um bebop que sugere as linguagens de suas origens e da modernidade dos novos tempos”.
Também atuou como pianista da The Trumpet Summit Band, projeto criado por Nicholas Payton e Wynton Marsalis para a edição de 1995 do tradicional festival de jazz de Marciac, na França, e por onde já passaram monstros do calibre de Clark Terry, Benny Bailey, Jon Faddis, Roy Hargrove, Tom Harrell, Terell Stafford, Randy Brecker, Jeremy Pelt e do brasileiro Cláudio Roditi.
Apaixonado pela música brasileira, gravou composições de Ary Barroso (“Aquarela do Brasil”) e Tom Jobim (“Triste”), a quem dedicou a composição “Theme For Jobim”, incluída no excelente “Midnight Waltz”, de 2007. Tocou com diversos músicos brasileiros, como Airto Moreira e Flora Purim, além dos já mencionados Cláudio Roditi e Rubens Bassini. Em 2003 foi uma das principais atrações do Tim Festival, apresentando-se na mesma noite que outro gênio do piano, McCoy Tyner. O baterista dos dois concertos foi o incansável Lewis Nash.
Cedar excursionou intensamente ao longo dos seus quase 50 anos de carreira, apresentando-se em festivais pela Europa e Ásia. Tocou em países como Inglaterra, Holanda, França, Itália, Alemanha, Noruega e Japão, tendo gravado por selos como Muse, Evidence, Discovery, Red Baron, SteepleChase, Camden, WEA, 32 Jazz, Tokuma, Criss Cross e Highnote, por onde tem lançado seus últimos álbuns, incluindo os ótimos “Underground Memoirs” (2005), “One Flight Down” (2006), “Seasoned Wood” (2008) e “Voices Deep Within” (2009). Antenado com o jazz contemporâneo, costuma contar, em seus discos e concertos, com participações de novos talentos, como o saxofonista Vincent Herring e o trompetista Roy Hargrove.
O pianista mora no Brooklyn, em Nova Iorque, mas pode ser considerado um verdadeiro cidadão do mundo. Em Janeiro de 2010, recebeu o título de Jazz Master, concedido pela National Endowment For The Arts. Emocionado com a homenagem, declarou: “Esse título é uma enorme honra, pois representa não apenas o reconhecimento a uma carreira duradoura, mas também evidencia o quanto um determinado artista se empenhou em manter intacta a qualidade artística de sua produção”.
* Postagem dedicada ao novo amigo Pietro Frontini, por meio de quem cheguei até à soberba trinca de álbuns do Cedar, "The Trio", volumes 1, 2 e 3, lançados pela RED RECORDS.
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