Música e outras coisas
CASO VOCÊ AINDA NÃO TENHA ESCUTADO...
De 27 de fevereiro, quando sofreu um pavoroso acidente no metrô de Nova Iorque que lhe custou o braço esquerdo, a 10 de maio de 1989, quando as complicações decorrentes do acidente por fim consumiram o resto de suas parcas energias, ele agonizou na cama de um hospital. Nos últimos tempos, passou por diversos problemas de saúde – vinha perdendo progressivamente a visão, não conseguia abandonar uma exasperante dependência química e os shows e gravações escasseavam.
O garoto prodígio que com apenas 17 anos assombrara Joe Henderson, aos 19 fazia sua primeira viagem à Europa a convite de Eric Dolphy e aos 21 encantava o mundo do jazz tocando com Horace Silver, o último grande inovador do trompete (pelo menos até a chegada do fabuloso Wynton Marsalis no início da década de oitenta), o incendiário virtuose que roubou a cena no disco “Homecoming”, que celebrava a volta ao lar do lendário Dexter Gordon, finalmente encontrou a paz eterna.
Espírito inquieto, desde muito cedo Woody Shaw Jr. demonstrou uma habilidade incomum para a música e o instrumento escolhido foi o trompete. Se as coincidências existem ou não, não é dado aos pobres mortais saber. Mas talvez seja importante dizer que o grande Dizzy Gillespie foi colega de Woody Sr. na escola. Nascido em 24 de dezembro de 1944, em Laurinburg, Carolina do Norte, ainda bastante cedo Shaw se mudou com a família para Newark, Nova Jérsei.
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Aos 11 anos começa o aprendizado do trompete, em uma escola local, onde foi aluno do respeitado Jerome Ziering (professor, dentre outros, de Larry Young e Wayne Shorter). No início dos anos 60, com assombrosos 17 anos, já era considerado uma das mais consistentes promessas do trompete jazzístico, merecendo calorosos encômios de músicos bem mais experientes.
Bastante influenciado por Clifford Brown, Kenny Dorham, Lee Morgan e Freddie Hubbard, Shaw se envolve fortemente com a cena hard bopper nova-iorquina, tocando com músicos do calibre de Jackie McLean, McCoy Tyner, Gil Evans, Art Blakey, Andrew Hill e Eric Dolphy, que em 1963 o levou pela primeira vez à Europa. No Velho Continente, chega a se apresentar com verdadeiras lendas do jazz, como Kenny Clarke, Bud Powell e Johnny Griffin. Retornando aos Estados Unidos em 1964, integrou-se ao quinteto de Horace Silver, ocupando o lugar de Carmell Jones, e ali permaneceu até 1966. Em seguida, trabalhou com certa regularidade com Chick Corea, Hank Mobley, Larry Young, Max Roach, Louis Hayes, Booker Ervin, Anthony Braxton e Joe Henderson.
Na década de 70, não teve prá ninguém: Shaw foi, certamente, o trompetista mais premiado daquele período, incluindo-se aí votações do público e da crítica, além de diversas indicações ao Grammy. De 71 a 73 integrou os Jazz Messengers de Art Blakey e lançou os seus primeiros discos como líder, através de pequenos selos como Muse, Contemporary e High Note. Apesar do ambiente fortemente hostil a qualquer forma de jazz que não incluísse batas indianas, sintetizadores e baixo elétrico (corrente da qual Woody sempre manteve uma saudável distância, diga-se de passagem), em 1977 assina contrato com a poderosa Columbia e lança discos bastante elogiados, como os seminais “Rosewood” e “Stepping Stones” (este último gravado no mítico Village Vanguard).
E os motivos que levaram essa major a contratar a estrela em ascensão estão bem aqui, nessa gravação de 1976 para a Savoy, intitulada “Little Red’s Fantasy”. No dia 29 de junho de 1979, Shaw e seus acompanhantes adentraram as dependências do estúdio Blue Rock, em Nova Iorque, para gravar esse disco nada menos que fabuloso. Na produção, Michael Cuscuna. No piano, o sensacional Ronnie Mathews. No sax alto, o não menos talentoso Frank Strozier. Completando essa impressionante máquina de swing e energia, o versátil Stafford James (um contrabaixista que atuava com igual competência tanto em bandas de R&B quanto em ambientes free) e o pouco conhecido Eddie Moore.
Um disco que exige do ouvinte bastante atenção. Em primeiro lugar porque é extremamente difícil de ser enquadrado em qualquer das escolas tradicionais do jazz. Não é bebop. Não é hard bop. Não é free. Não é cool. Não é West Coast. Mas, ao mesmo tempo, é tudo isso e um pouco mais! Segundo o próprio Woody, seria uma espécie de “bop modal”. Em segundo lugar, porque é uma das poucas oportunidades de ver dois dos músicos mais “underrated” do jazz atuando lado a lado e complementando as concepções harmônicas um do outro, como se tocassem juntos desde sempre. Strozier e Mathews, cujas discografias como líder são bissextas, são dois instrumentistas do mais elevado gabarito mas que, infelizmente, remanescem bem menos conhecidos do que deveriam.
A faixa de abertura, “Jean Marie”, é um exemplo da capacidade desses dois músicos. A composição é de Mathews, que demonstra um domínio absolutamente integral das sutilezas harmônicas, em um momento sublime tanto da perspectiva composicional (lembra em muitos momentos o Hancock de “Empyrean Isles” e “Maiden Voyage”) quanto da execução. Strozier agrega uma leveza incomum às incontáveis variações harmônicas criadas pelo pianista e Shaw expande até as fronteiras do cosmos as possibilidades da improvisação em seu instrumento, com um fraseado exuberantemente criativo.
O baixista Stafford James contribui com a intrigante “Sashianova”, uma espécie de “hard-free”, fazendo a ponte entre esses dois estilos aparentemente inconciliáveis. O articulado trompete do líder intervém de maneira bastante inteligente e dinâmica, em mais uma prova de que o vocabulário do trompete seria menos rico sem a sua luminosa presença. Muitas dissonâncias e nenhuma previsibilidade, com um soberbo trabalho de Mathews.
O líder comparece também como compositor de três faixas. A primeira delas é a estupenda “In Case You Haven't Heard”, cujo título denotaria, talvez, uma certa arrogância, não fosse o seu autor o mais revolucionário trompetista dos anos 70. O seu solo é majestoso – uma confluência de sonoridades de norte a sul do planeta, do oriente e do ocidente, de ontem, de hoje e de amanhã, pode ser encontrada ali.
A faixa que dá nome ao disco, “Little Red's Fantasy”, é uma sensível balada, feita em homenagem à esposa do trompetista, Maxine. Solos esmerados de Shaw, Mathews e James fazem desse o momento mais inebriante do álbum. Fechando o disco em altíssimo astral, “Tomorrow's Destiny” tem uma estrutura mais convencional, sem tantas angulações ou dissonâncias, mas exige dos músicos um alto grau de coesão e muito swing. É um hard bop de alta octanagem que, certamente, poderia figurar com destaque no currículo de um Hank Mobley, Horace Silver ou Art Blakey, só prá ficar em alguns dos mais célebres compositores do estilo. Destaque para a ótima percussão de Moore. E Strozier manda ver um solo, literalmente, de tirar o fôlego!
Durante os anos 80, Shaw continuou lançando discos e liderando seus grupos, por onde passaram pianistas do naipe de Mulgrew Miller, Geri Allen e Larry Willis, além do trombonista Steve Turre, do baixista Ray Drummond e do baterista Victor Lewis. Miles Davis, sempre acerbo ao falar de seus pares, disse acerca de Shaw: “Agora existe um grande trompetista. Ele toca diferente de todo mundo”. Todavia, os problemas com as drogas e a perda progressiva da visão prejudicaram bastante a sua carreira – além do fato de que boa parte da década foi bastante refratária a músicos ousados e íntegros como Woody. Suas palavras ajudam a compreender a intensidade de relação com a música: “A música é a minha religião”. Ouçamos esse esplendoroso “Little Red's Fantasy” como uma ardorosa profissão de fé.
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PS.: Post dedicado ao mestre Augusto Pellegrini, incansável batalhador pela causa do jazz e um verdadeiro sábio – daquela rara estirpe para quem o conhecimento só faz sentido se puder ser compartilhado.
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