O FEIJÃO E O SONHO
Música e outras coisas

O FEIJÃO E O SONHO





É difícil crer que alguém conhecido como “Feijão” pudesse ser um homem sensível e de hábitos refinados. Com um apelido desses, o mais provável é que o sujeito fosse um homem rude, ainda mais quando se sabe que ele recebeu essa alcunha por conta do seu apetite insaciável por prosaicos feijões. Mas todos os que conviveram com o nosso querido “Feijão”, ou melhor, “Bean”, são unânimes em louvar a sua polidez, a sua elegância no falar e no trajar e sua cordialidade.

Os músicos com quem tocava eram os primeiros a reconhecer as suas qualidades. Para o pianista Sir Charles Thompson, que fez parte de sua banda nos anos 40, “Bean” era “um homem culto e extremamente elegante”. Era também bastante generoso no pagamento dos cachês e não foram poucos os ex-integrantes de sua banda que o apontaram como um excelente patrão.

Bem, mas afinal de contas quem é esse tal “Bean” e qual a importância dele para o jaz? Ora, o tal “Bean” é ninguém menos que Coleman Randolph Hawkins, um dos pais fundadores do jazz e, sem dúvida alguma, um dos seus principais estetas. Sua importância? Durante um concerto, o cantor Jon Hendrics assim o apresentou à platéia: “Este é Coleman Hawkins, o homem para quem Adolphe Sax inventou o saxofone”. Precisa dizer mais alguma coisa?

Hawkins nasceu no dia 21 de novembro de 1904, em Saint Joseph, no estado do Missouri. Sua família, ao contrário do que sucedia com a maioria dos negros da época, tinha uma ótima situação financeira e o garoto jamais passou necessidade. Pôde estudar em boas escolas, como a Topeka High School, e, um luxo para um jovem negro naquele tempo, também freqüentou uma escola de música, o Washburn College, em Topeka, no estado do Kansas.

Dono de uma musicalidade inata, Hawkins era capaz de ler partituras e tocava piano (começou aos cinco anos), violoncelo (aos sete) e, aos nove, saxofone C-Melody, uma espécie de híbrido entre o alto e o tenor. Apesar de desejar que o filho se direcionasse para uma carreira menos instável que a de músico profissional, os pais de Hawkins sempre o apoiaram em suas decisões. Inclusive quando ele, aos 17 anos, decidiu ingressar na orquestra de Jesse Stone.

Pouco depois, chamaria a atenção da cantora Mamie Smith, que o contratou para tocar no seu grupo, chamado “Jazz Hounds”. Ali, Hawkins trabalharia ao lado de outro gigante do jazz, o clarinetista e saxofonista soprano Sidney Bechet. Na banda de Smith, onde permaneceu até meados de 1923, o jovem participou de suas primeiras gravações e adotou, em caráter definitivo, o saxofone tenor, em substituição ao C-Melody. Seu próximo emprego foi na orquestra de Wilbur Sweatman, mas a permanência ali foi breve.

Em janeiro de 1924 o saxofonista foi contratado pelo bandleader Fletcher Henderson e se mudou para Nova Iorque. Um dos seus companheiros na big band era ninguém menos que Louis Armstrng, outra figura seminal na história do jazz. “Bean” e “Satchmo”, mais velho e bem mais experiente, se tornariam amigos e o jovem saxofonista aprendeu bastante com o parceiro trompetista. Outra influência bastante importante para a depuração da sonoridade de Hawkins foi o pianista Art Tatum, que conheceu no final daquela década.

Coleman se tornaria, com o passar dos anos, um dos esteios sonoros da orquestra de Henderson e, depois da saída de Armstrong, seu solista mais notável. Foram dez anos de vivência conjunta e durante aquele período ele ajudou a tornar o saxofone popular no universo jazzístico, a ponto de “rivalizar e, posteriormente, superar o trompete como o mais iconográfico dos instrumentos do jazz”, conforme ensina o respeitado Gary Giddins.

Embora fosse um músico respeitado, Hawkins pouco se arriscava fora da big band de Henderson. Entre suas raríssimas gravações feitas sem a orquestra, destacam-se as realizadas em 1929, ao lado dos “Mound City Blue Blowers”, onde tocavam craques como Eddie Condon, Gene Krupa e Jack Teagarden. Outro grupo paralelo, onde o saxofonista também atuou com alguma constância, foi o “McKinney Cotton Pickers”, liderado pelo baterista William McKinney e que tinha em sua formação o pianista James P. Johnson, o saxofonista Benny Carter e o trompetista Sidney De Paris.

Com a chegada dos anos 30, ele consolidou-se como “a voz dominante do saxofone e, apesar do surgimento de contemporâneos como Charlie Holmes, Johnny Hodges, Frank Trumbauer e Jimmy Dorsey, todos seguiam Hawkins”, nas certeiras palavras do crítico inglês Richard Cook. Como músico de apoio, Hawk, outro dos seus apelidos, fez algumas gravações com Henry “Red” Allen, para o selo ARC, e Benny Goodman, para a Columbia.

Roberto Muggiati explica que a partir do início da nova década Coleman “evoluiu para o estilo que se tornaria típico do sax tenor: um timbre robusto, cheio de vibrato, notas em cascata, mais ligadas, praticamente soldadas uma à outra – dentro da característica mais elástica do instrumento – e uma tendência de improvisar menos dentro da melodia (como um Louis Armstrong) e mais sobre os acordes, a seqüência harmônica do tema, antecipando o bebop”. Até o aparecimento de Lester Young, que surgiu com um estilo mais aveludado e uma abordagem menos incisiva, Hawkins era o principal paradigma dos tenoristas do jazz.

A parceria com Fletcher seria rompida em 1934, quando o saxofonista recebeu uma excelente oferta de trabalho. O problema é que ele teria que se mudar para Londres. O ano era 1934 e Hawkins não titubeou ao aceitar o convite para se juntar à orquestra de Jack Hylton. No Velho Continente, Coleman dividiu os palcos com grndes músicos europeus, como Django Reinhardt e Stephane Grappelli, e compatriotas residentes ou de passagem por lá, como Benny Carter e Bill Coleman.

Hawkins era tratado como um astro na Europa e percorreu o continente realizando concertos durante os cinco anos em que viveu por lá. Somente em 1939, face à iminência da III Guerra Mundial, ele voltou aos Estados Unidos. Não demorou a causar uma pequena revolução no jazz, com a sua célebre gravação de “Body and Soul”, feita para a Bluebird naquele mesmo ano e que apresenta um dos  mais belos solos de saxofone da história do jazz. O sucesso da gravação foi tão grande, que lhe rendeu o título de “Saxofonista do ano” da revista Downbeat e o inspirou a tentar novos vôos.

No ano seguinte, com a popularidade em alta, Coleman arriscou-se na complicada tarefa de comandar a própria big band, mas o resultado, do ponto de vista financeiro, foi ruinoso. Ele então decidiu liderar apenas grupos pequenos e estabeleceu-se como atração fixa em vários clubes da Rua 52, em Nova Iorque. O jazz passava por sua mais importante revolução, que começaria silenciosamente em um pequeno clube do Harlem chamado Minton’s Playhouse.

Coleman percebeu a força criativa dessa nova música, chamada bebop, e o extraordinário talento dos seus inventores, notadamente Charlie Parker e Dizzy Gillespie. “Bean” foi um dos primeiros músicos da velha escola a assimilar as inovações harmônicas e rítmicas provocadas pelo bebop e atuou e gravou com muitos dos seus expoentes. Inclusive com Parker e Dizzy, naquela que é considerada a primeira gravação oficial do bebop, em 1944.

Por seus grupos passaram, entre outros, portentos como Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Don Byas, Oscar Pettiford, Miles Davis, Max Roach, Howard McGhee, J. J. Johnson, Idrees Sulieman e Fats Navarro, todos intimamente ligados ao bebop. O saxofonista também foi um dos participantes mais assíduos dos concertos promovidos por Norman Granz no projeto “Jazz at the Philharmonic”, entre 1946 e 1950.

Transitando entre a modernidade e a tradição, Coleman realizou concertos e gravações históricas ao lado de músicos que, como ele, eram oriundos do swing. Foi o caso de suas apresentações ao lado de Henry “Red” Allen e Roy Eldridge na edição de 1957 do Newport Jazz Festival. Outro momento soberbo naquela década é o album “Coleman Hawkins Encounters Ben Webster”, também de 1957 e gravado para a Verve, que conta com as participações de Oscar Peterson (piano), Herb Ellis (guitarra), Ray Brown (contrabaixo) e Alvin Stoller (bateria).

Na sua extensa discografia, um álbum merece todos os encômios e mostra, melhor que qualquer outro, as qualidades que fizeram dele um ídolo tanto para os fãs do swing quanto do bebop e do hardbop. Produzido por Orrin Keepnews e gravado nos dias 12 e 15 de março de 1957, para a Riverside, “The Hawk Flies High” traz o veterano o saxofonista à frente de um hepteto formidável: J. J. Johnson no trombone, Idees Sulieman no trompete, Hank Jones no piano, Barry Galbraith na guitarra, Oscar Pettiford no contrabaixo e Jo Jones na bateria.

“Chant” abre o disco com uma energia furiosa. Composta por Hank Jones, é bebop de primeiríssima qualidade, com solos empolgantes, improvisos desafiadores e carradas de swing. O líder mostra as qualidades que fizeram dele a principal influência de Dexter Gordon, John Coltrane e Sonny Rollins, alguns dos seus mais legítimos herdeiros musicais. Outro que tem uma atuação infernal é Pettiford, que extrai do contrabaixo, um instrumento eminentemente rítmico e de uma sonoridade limitada pelos tons graves, harmonias e timbres repletos de texturas.

A fogosa “Juicy Fruit” é um blues acelerado de autoria de Sulieman, cuja performance aqui é uma das mais notáveis em toda a sua carreira. Ele consegue sustentar uma nota por quase dois minutoa, sem claudicar ou sair do tom, numa fabulosa exibição de fôlego e técnica. Johnson também tem momentos fulgurantes e o seguro Jo Jones é um poderoso sustentáculo rítmico. O sopro de Hawk é viril, incisivo, rascante, impetuoso e, virtualmente, arrebatador. Destaque também para o dedilhado fleumático e para as notas impecáveis do sempre elegante Hank Jones.

Composta por William Smith, a balada em tempo médio “Think Deep” possui um portentoso alicerce de blues. A sonoridade volumosa de Hawk e sua tonalidade imponente são uma espécie de conclamação. Impossível deixar de ouvir os seu majestoso chamado e Johnson e Galbraith respondem da maneira mais garbosa possível. O volátil Sulieman, excelente intérprete de blues, acrescenta um pouco de pimenta a essa mistura fascinante e suas intervenções são realmente explosivas.

Único standard do álbum, “Laura” é fruto da parceria entre David Raksin e Johnny Mercer e a versão do grupo é simplesmente grandiosa! Com uma abordagem plácida e uma sonoridade que não perde a eloqüência, Hawkins é a imagem da doçura. Como já havia feito com “Body and Soul”, também aqui a versão do saxofonista se sobrepõe em um novo patamar de excelência. Destaque também para a impactante participação de Johnson, outro formidável intérprete de baladas, com seu discurso melódico aveludado e citações emocionantes de “Tenderly”.

Hardbop de ótima procedência, “Blue Lights” foi composta pelo grande – e subestimado – Gigi Gryce. A introdução fica a cargo do eletrizante Galbraith, logo seguido por um solo de enorme riqueza tonal do sempre surpreendente Sulieman. Tingida de blues e com uma levada infecciosa, a faixa ainda apresenta um Pettiford devastador, não apenas como esteio rítmico, mas também como solista de raro talento. O líder e Johnson trocam frases enérgicas, serpenteantes e inesperadas, dentro da melhor tradição bop.

“Sancticity” é a única composição de autoria do líder incluída no disco e resgata a espontaneidade dos heróicos tempos do swing. Rápido e vibrante, o tema poderia facilmente figurar no repertório de Count Basie. A pulsação é ininterrupta, com uma seqüência de solos – Johnson, Hawkins, Sulieman e Hank Jones – de tirar o fôlego e deixar extasiado qualquer amante do jazz. Se existe um álbum indispensável na longa discografia de Hawkins (e, para dizer a verdade, bem poucos não o são) é este!

No terço final da década de 50, Coleman assinou com a Prestige, por onde lançou uma série de ótimos álbuns, como “Hawk Eyes” (1959), “At Ease with Coleman Hawkins” (1960) e “The Hawk Relaxes” (1961). Sempre atento às novas linguagens do jazz, Hawk, às vésperas de completar 60 anos, também se rendeu às dolentes harmonias da bossa nova, tendo gravado o ótimo “Desafinado” para a Impulse, em 1962, com direito a versões de “O pato”, “Um abraço no Bonfá” e “Samba de uma nota só”. Seu lado mais tradicional o impeliu a gravar com os contemporâneos Pee Wee Russell (“Jam Session in Swingville”, Prestige, 1961) e Duke Ellington (“Ellington”, Impulse, 1962).

O intrépido Hawkins jamais temeu desafios, razão pela qual aceitou dividir os créditos do fantástico “Sonny Meets Hawk” com o discípulo Sonny Rollins, que, juntamente com John Coltrane, era o mais importante e influente tenorista dos anos 60. O encontro histórico foi gravado em 1963, para a RCA Victor, e a sessão rítmica era composta por músicos bem mais jovens que “Bean”, alguns deles bem conhecidos por suas ligações com o jazz de vanguarda: o pianista Paul Bley, os baixistas Henry Grimes e Bob Cranshaw e o baterista Roy McCurdy.

Os problemas com o álcool, todavia, começaram a cobrar-lhe um alto preço e, a partir de 1965 ele praticamente se viu obrigado uma aposentadoria compulsória. Seus últimos anos foram de solitária reclusão, uma terrível ironia do destino para o homem que compôs “Stuffy”, um dos temas mais alegres do jazz. O sopro forte e voluptuoso de Hawkins se calaria para sempre no dia 19 de maio de 1969, por conta de complicações decorrentes de uma pneumonia e da cirrose hepática. Seu corpo foi enterrado no Woodlawn Cemetery, no Bronx, em Nova Iorque.

Os críticos não hesitam em louvar o talento de Hawkins e nem em reconhecer o seu gênio criador. Mas as melhores e mais apropriadas palavras sobre ele não foram proferidas por um crítico e sim por um músico, o saxofonista francês Alix Combelle: “Era como uma catedral. Saía uma tal potência daquele instrumento, uma qualidade, um veludo, um volume... A gente tinha a impressão de que Hawkins estava lá dentro! Geralmente, há uma separação entre o solista e o instrumento, mas, no caso dele, parecia que o som saía do próprio homem”.

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