O “MR. T” ORIGINAL
Música e outras coisas

O “MR. T” ORIGINAL



O cabelo moicano, a cara de poucos amigos, a disposição de resolver nos punhos qualquer parada e a proeza de ter sido o único boxeador da história a nocautear Rocky Balboa fizeram do ator Laurence Tureaud, o popular Mr. T, um ícone dos anos 80. A fama foi guindada a proporções estratosféricas quando o ator estrelou, ao lado de George Peppard, o seriado Esquadrão Classe A (onde fazia o Sargento B. A.), produzido pela NBC entre 1983 e 1987 e exibido ad nauseum pelo SBT. Todavia, o apelido não é nem um pouco original. A rigor, o primeiro Mr. T é um talentoso saxofonista (fontes muito bem informadas contam que o ator ganhou, no braço, o direito de usar o apelido), que também se orgulhava de ser chamado de “Sugar Man”.

Stanley Turrentine – esse sim, o Mr. T original – nasceu no dia 05 de abril de 1934, em Pittsburgh. O gene musical integrava o DNA da família já de há muito. Seu pai, Thomas Turrentine, tocava saxofone na orquestra de Al Cooper e sua mãe era professora de piano. O irmão mais velho, Tommy Turrentine, também se tornaria um requisitado músico, tendo optado pelo trompete e acompanhado, entre outros, Benny Carter, Earl Bostic, Charles Mingus, Billy Eckstine, Dizzy Gillespie, Count Basie, Sonny Clark e Lou Donaldson.

Aos 11 anos, incentivado pelo pai, Stanley começou os estudos musicais e suas primeiras influências foram Don Byas, Ben Webster e Illinois Jacquet (que chegou a conhecer pessoalmente, aos 12 anos, e que lhe incentivou a perseverar nos estudos musicais). Sua primeira experiência profissional, no início dos anos 50, foi na banda do guitarrista Lowell Fulson, onde também tocava um certo pianista cego, que entraria para a história do jazz, do blues, do R&B, do soul, do pop, do country, do... bem, deixa prá lá. Enfim, o nome do sujeito era Ray Charles! Os dois ficaram amigos e Turrentine costumava fazer a transcrição, para partitura, das composições de Charles.

Após sua saída da banda de Fulson, Stanley estudou algum tempo com Carl Arter. Em 1953, mudou-se para Cleveland, onde tocou com o pianista Tadd Dameron. Em seguida, integrou a orquestra de Earl Bostic, substituindo ninguém menos que John Coltrane. Ali permaneceu até sua convocação para o exército, tendo servido entre 1956 e 1958. Na corporação, integrava uma orquestra que ficou conhecida como “The Uncle Sam's All Stars”.

De volta à vida civil, o saxofonista estabeleceu-se em Filadélfia e foi convidado por Max Roach a juntar-se à sua banda, em março de 1959, permanecendo ali por mais de um ano e chamando a atenção do mundo do jazz para o seu sopro musculoso e cheio de groove, profundamente arraigado no blues. Turrentine também participou das gravações do elogiado álbum “Abbey Is Blue” (Riverside, 1959), da cantora Abbey Lincoln, então casada com Roach.

Nessa época, conheceu a organista Shirley Scott, com quem se casaria em agosto de 1960. A sociedade conjugal também renderia uma prolífica parceria musical, com diversos discos lançados pela Blue Note. Turrentine chegou à gravadora por intermédio de Lou Donaldson e ali permaneceria até o final dos anos 60, com um pequeno intervalo em 1966, quando lançou o álbum “Let It Go”, pela Impulse.

Além de diversos álbuns como líder, o saxofonista, que se tornaria um dos mais bem-sucedidos artistas do catálogo da Blue Note, atuaria em dezenas de sessões, acompanhando gente da estatura de Horace Parlan, Dizzy Reece, Art Taylor, Ike Quebec, Jimmy Smith, Duke Jordan, Donald Byrd, Horace Silver, Duke Pearson, Kenny Burrell, Thad Jones, McCoy Tyner e muitos outros.

O primeiro disco de Turrentine para a Blue Note, como líder, foi gravado em 18 de junho de 1960, nos estúdios Van Gelder, em Englewood Cliffs. Para acompanhar o saxofonista, foram recrutados o pianista Horace Parlan, velho amigo de Turrentine desde os tempos de escola, em Pittsburgh, o baixista George Tucker, precocemente falecido em 1965, com apenas 38 anos, e o baterista Al Harewood, cuja quilométrica folha de serviços inclui atuações ao lado de Art Farmer, Dexter Gordon, Gigi Gryce, Benny Golson, Yusef Lateef, Grant Green, Curtis Fuller, Lou Donaldson e outros.

O tema que dá nome ao álbum é um blues acelerado, e abre os trabalhos de maneira bastante animada, evidenciando o alto grau de entrosamento do quarteto. “Journey Into Melody” é uma balada altamente sentimental, composta pelo inglês Robert Farnon e marcou a juventude do saxofonista, pois era o tema de abertura de um dos seus programas de rádio favoritos, em Pittsburgh. Turrentine é um mestre nesse tipo de interpretação, com seu sopro adocicado e envolvente. A atmosfera romântica é reforçada pelo piano econômico de Parlan.

“Return Engagement” é um título bastante apropriado para celebrar a volta ao clima festivo. Composto por Parlan, que dá uma aula de swing em seu solo, o tema é um bebop leve, sem grandes elucubrações harmônicas e altamente assobiável. Extraordinárias atuações de Harewood e de Turrentine, ambos exibindo uma elevada capacidade de improvisação.

Composta por Stanley em homenagem à filha, “Little Sheri” é um blues em andamento mais rápido que o usual, mas bastante sincopado, e o solo do líder é vigoroso, áspero e groovy até não mais poder. Parlan usa sua técnica refinada, com um toque quase metálico, para dar profundidade ao tema, enquanto a cozinha Tucker-Harewood marcha em uníssono, de maneira equilibrada e quase solene.

Uma das mais conhecidas composições de Clifford Brown, “Tiny Capers” ganha um arranjo alegre e relaxado, com destaque absoluto para os solos de Turrentine, sempre muito fluentes e criativos. Em outra investida do líder pela seara do blues, “Minor Chant” tem como pontos altos uma elevada dose de swing, uma linha de baixo inspirada e uma discreta sensualidade.

“Tin Tin Deo”, de Chano Pozo, é, talvez, o tema mais conhecido e gravado do jazz latino. A competência do quarteto, em especial de Parlan e Turrentine, injeta sangue novo e imprime ao tema uma vitalidade surpreendente, tirando qualquer ranço de obviedade que pudesse contaminá-lo. Os solos do saxofonista são fabulosos e altamente desafiadores.

Outro tema bastante conhecido, “Yesterdays”(de Jerome Kern e Otto Harbach) recebe um arranjo calcado no blues, que a rejuvenesce e a torna bastante estimulante. O piano de Parlan e o baixo de Tucker realçam as características dramáticas da composição, enquanto as intervenções de Turrentine e Harewood são ensolaradas, fazendo uma espécie de contraponto sonoro entre sombra e luz. Um take alternativo de “Little Sheri” completa o set deste disco obrigatório, considerado pela crítica especializada como uma verdadeira obra-prima.

A partir de meados dos anos 60, sua produção foi, maciçamente, direcionada ao chamado soul-jazz. Álbuns como “Hustlin’”, “Rough 'N' Tumble” (que trazia covers de composições de Ray Charles, Burt Bacharach e Sam Cooke), “Common Touch” e “The Look Of Love” (com direito a “Here, There And Everywhere”, dos Fab Four) alcançaram ótimas posições nas paradas de R&B e asseguravam a Turrentine uma posição de destaque no cast da Blue Note.

O sucesso comercial encaminhou-o para o selo CTI, de Creed Taylor, por onde lançou alguns álbuns que ultrapassaram a casa do milhão de cópias vendidas. “Sugar”, de 1970 (que contava com um elenco estelar, incluindo, entre outros, George Benson, Freddie Hubbard Ron Carter, Airto Moreira, Hubert Laws e Billy Cobham), permaneceu nas paradas de sucesso por vários meses e rendeu a Turrentine, além do ódio dos puristas, alguns milhões de dólares no bolso. Além das excelentes vendagens de seus discos, o saxofonista era uma das principais atrações da “CTI All Stars”, banda formada por músicos da gravadora e que fazia turnês regularmente.

Separado de Shirley Scott no início da década de 70, Turrentine, apesar do sucesso comercial, não se negava a acompanhar gente como Milt Jackson, Bob James, Richard Tee, Idris Muhammad, Eric Gale, Cedar Walton, David “Fathead” Newman, Billy Taylor e Ahmad Jamal, velho amigo dos tempos de Pittsburgh e que foi aluno da mãe de Stanley, na cidade natal de ambos.

Também acumulou diversas indicações ao prêmio Grammy e continuou a vender discos em profusão, como o badalado “Don't Mess With Mr. T”, de 1973, também lançado pela CTI. Na Fantasy, para onde foi em meados dos anos 70, repetiu o sucesso comercial, mantendo a velha estratégia de interpretar músicas de astros pop, como Michel Legrand, Stevie Wonder, Laura Nyro, Bob Dylan e Marvin Gaye, com arranjos espertos, a cargo de Gene Page ou de Wade Marcus.

Com as mudanças do mercado fonográfico e a perda de apelo comercial do soul-jazz, Turrentine gravou de forma bastante esporádica nos anos 80. Manteve-se ativo, contudo, na rotina de apresentações em pequenos clubes e festivais de jazz. A partir dos anos 80, Turrentine abandonou a linha fusion, passando a se dedicar ao chamado smooth jazz, lançando álbuns por selos como Prestige, Concord e Elektra.

De qualquer modo, mesmo em contextos mais comerciais, o saxofonista manteve intacta a sua personalíssima identidade musical e o seu fraseado flexível e doce. Além disso, sempre foi considerado um excepcional acompanhante de vocalistas. Astrud Gilberto, Dianne Reeves, Diana Krall, Lou Rawls, Marlene Shaw e Oscar Brown Jr., por exemplo, foram alguns dos que tiveram a honra de vê-lo tocar em seus discos.

Em 1984 retornou à Blue Note, tendo gravado alguns discos, ao lado de velhos conhecidos como Jimmy Smith e George Benson, mas sem o mesmo impacto comercial de outrora. Talvez o seu melhor momento nessa década tenha sido o álbum “The Gene Harris Trio Plus One” (lançado em 1985 pela Concord), sob a liderança do pianista Gene Harris e que contava com a excelsa participação de Ray Brown no baixo e Mickey Roker na bateria.

Os anos 90 foram um pouco melhores, do ponto de vista da produção essencialmente jazzística, destacando-se os álbuns “More Than A Mood” (Musicmasters, 1992), onde toca com feras como Freddie Hubbard, Cedar Walton, Ron Carter e Billy Higgins, e “If I Could” (também da Musicmasters, de 1993), onde atua ao lado de Hubert Laws, Roland Hanna, Ron Carter e Grady Tate, com arranjos de Don Sebesky.

Ele então já havia se mudado, juntamente com a esposa Judith, para a cidade de Fort Washington, no estado de Maryland, e tocava com freqüência em clubes de Washington D. C., especialmente no Blues Alley. Para tristeza dos fãs do jazz, Turrentine faleceu no dia 12 de setembro de 2000, após sofrer um AVC devastador, em Nova Iorque. Seu corpo foi enterrado no Pittsburgh's Allegheny Cemetery, em sua cidade natal.

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