FEELING THE SPIRIT: A GUITARRA ESPIRITUALIZADA DE GRANT GREEN
Música e outras coisas

FEELING THE SPIRIT: A GUITARRA ESPIRITUALIZADA DE GRANT GREEN



Wes Montgomery foi o guitarrista mais badalado dos anos 60. Sua revolucionária maneira de tocar, abolindo a palheta e usando o polegar, causou uma revolução comparável à que Charlie Christian provocou a tornar a guitarra, até então condenada à sessão rítmica, um instrumento da linha de frente dos combos e orquestras dos anos 40. Seus discos pela Riverside e, sobretudo, pela Verve, fizeram um enorme sucesso, alcançando vendas bastante expressivas, mesmo para um mercado restrito como o do jazz.


Bem menos conhecido que o colega de Indianápolis, Grant Green, um guitarrista nascido no dia 06 de junho de 1935, em St. Louis, também pode ser considerado um revolucionário à sua própria maneira. Seu fraseado é absolutamente inconfundível – basta um único acorde para que o ouvinte tenha certeza de quem está tocando. Suas origens musicais estão impregnadas de blues, mas outros estilos da música negra americana também fazem parte de sua formação musical, como o gospel, os spirituals, o soul e o R&B. Enveredou pelo boogie-woogie, pelo funk e até pelo rock, sempre com muita competência e maestria.

Filho de um guitarrista, Green começou a tocar bastante cedo, conciliando as aulas de música na escola com as dicas dadas pelo pai músico. Com inacreditáveis treze anos iniciou a carreira profissional, acompanhando um grupo gospel na cidade natal e arredores. Nos anos 50, tocou em diversas bandas de R&B e acompanhou jazzistas do porte de Jimmy Forrest (com quem fez as suas primeiras gravações, os ótimos “Black Forrest” e “All The Gin Is Gone”, ambos de 1959), Harry Edison e Lou Donaldson (que o viu tocar em um bar de St. Louis, acompanhando o cantor Leo Gooden).

Donaldson, aliás, foi de suma importância na carreira de Green, pois não apenas o levou para Nova Iorque em 1960 como o apresentou a Alfred Lion, fundador e comandante em chefe da Blue Note. Encantado com o talento do guitarrista, Lion providenciou, de imediato, a gravação do primeiro álbum de Green, já na condição de líder da sessão – fato raro na história da companhia, em se tratando de um músico em início de carreira, pois, geralmente, a gravadora punha seus potenciais talentos para gravar como acompanhantes, até que estes tivessem uma boa rodagem no estúdio.

Green não decepcionou o big boss. Em janeiro de 1961 gravou “Grant’s First Stand”, ao lado de Baby Face Willette (org) e Ben Dixon (bt), bastante calcado no blues e a partir daí tornou-se um dos mais prolíficos músicos do cast da Blue Note. A associação com a gravadora renderia dezenas de discos como líder (muitos deles com a formação guitarra-órgão-bateria), centenas de gravações como sideman e perduraria até meados dos anos 70, com uma breve interrupção entre 66 e 68, quando gravou para selos como Verve e Savoy.

Em 1962, Grant recebeu o prêmio de “Best New Star”, concedido pela revista Down Beat. Ele era “o guitarrista” da Blue Note (embora Kenny Burrell também tivesse gravado alguns discos por lá nos anos 60) e durante os anos 60 acompanhou ou foi acompanhado por Jimmy Smith, Larry Young, Brother Jack McDuff, Stanley Turrentine, Sonny Clark, Dave Bailey, Kenny Drew, Yusef Lateef, Wilbur Ware, Ike Quebec, Joe Henderson, John Patton, Hank Mobley, James Spaulding,Herbie Hancock, McCoy Tyner, Elvin Jones, Lou Donaldson e Bobby Hutcherson, entre incontáveis outros.

Embora admitisse ter sofrido alguma influência de Jimmy Raney em seu estilo de tocar, Green sempre fez questão de dizer que sua maior referência era Charlie Parker. Como o ídolo, Grant também teve sérios problemas com as drogas, sobretudo a heroína, fato que atrapalhou bastante a sua carreira – entre 1967 e 1969, Green permaneceu semi-inativo, fazendo poucos shows e gravações, e chegou a ser preso por um breve período, tudo por conta do vício.

Não obstante os problemas pessoais, Green merece estar ao lado dos grandes nomes da guitarra jazzística e para dissipar qualquer dúvidas sobre a sua excepcional musicalidade, basta uma audição de “Idle Moments”, indiscutivelmente um dos melhores álbuns lançados pela Blue Note nos anos 60. Liderando um sexteto sensacional, o guitarrista conta com a preciosa assistência de Joe Henderson (ts), Bobby Hutcherson (vib), Duke Pearson (p), Bob Cranshaw (b) e Al Harewood (bt).

Gravado em duas sessões, nos dias 04 e 15 de novembro de 1963, “Idle Moments” mostra um guitarrista no auge de sua criatividade. Seu toque é sutil, fluido, orgânico, intuitivo, vital. Ao mesmo tempo em que transpira a visceralidade do blues, Green também consegue imprimir às suas gravações aquela espécie de elegância que muitos chamam de perfeição, pois que decorre da simplicidade em estado puro. Não há arestas em seu fraseado, apenas limpidez e graça.

A primeira faixa, que dá título ao álbum, é um monumento sonoro de 14min52s, de autoria de Pearson. Trata-se de um blues impressionista, complexo e de rara beleza, que exige de todos os seis músicos uma conjunção de habilidade, técnica, coesão e sentimento. Hutcherson, com suas divagações harmônicas, perpetra solos inesquecíveis e a guitarra de Green é uma mistura de dolência e fluidez, lamentosa como os cantos dos escravos que sofriam nas plantações de algodão do sul dos Estados Unidos.

Em seguida, “Jean de Fleur”, composição de Green, é a tradução mais que expressiva da influência de Parker em seu modo de tocar. Destaque para o líder, com seus solos devastadores, e para a pujança percussiva de Harewood, com viradas surpreendentes e um trabalho de pratos bastante criativo. O inspirado Pearson contribui ainda com a vibrante “Nomad”, na qual o sax de Henderson é o ponto culminante, com um solo climático, nervoso, que remete às enfumaçadas noites dos clubes de Nova Iorque. A hipnótica guitarra do líder e o refinamento comedido de Pearson também merecem redobrada atenção.

A clássica “Django”, de John Lewis, recebe um arranjo tão sofisticado quanto o seu autor. Green imprime um lirismo comovente ao seu fraseado – é quase como se o próprio Django Reinhardt estivesse executando a música feita em sua homenagem. Henderson executa um dos mais belos solos do álbum e Hutcherson demonstra possuir todas as qualidades para ombrear-se a Milt Jackson como um dos maiores vibrafonistas do jazz. No cd relançado em 1999, pela impecável série “The Rudy Van Gelder Edition”, há takes alternativos de “Jean de Fleur” e “Django”.

Em 1969 Grant voltou à Blue Note e seus álbuns desse período são extremamente calcados no funk e na soul music. O álbum “Green is Beautiful”, de 1970, alcançou um razoável posto nas paradas de R&B e ele foi convidado para compor a trilha sonora do filme “The Final Comedown” (1971). Em 1974, saiu definitivamente da gravadora que o projetou e lançou mais alguns poucos álbuns, por selos como Verve, Muse e CTI. Em 1978, quando passou por diversas internações, Grant já estava bastante debilitado mas, contrariando ordens médicas, continuou a fazer shows e gravações. No dia 31 de janeiro de 1979, sofreu um ataque cardíaco fulminante dentro do próprio carro. Tinha apenas 43 anos e se dirigia à festa de lançamento do disco “Breezin”, do amigo e discípulo George Benson.

Curiosamente, os discos de Green dos anos 70 voltaram a ser procurados, por conta da utilização de suas músicas por DJ’s europeus. Nos anos 90, alguns grupos de R&B e de rap, como Us3 e A Tribe Called Quest samplearam trechos de suas gravações e assim, quase vinte anos após sua morte, os holofotes voltaram a brilhar sobre esse músico genial mas muito pouco reconhecido. A Blue Note reeditou boa parte de sua discografia original e ainda faturou em cima dessa inesperada notoriedade, lançando coletâneas como “Street Funk & Jazz Grooves” e “For The Funk Of It”, cujo repertório é baseado em suas gravações do final dos anos 60 e início dos anos 70.

Após assistir a uma apresentação do guitarrista em um bar, o crítico Dan Morgenstern comentou: “A primeira coisa que o ouvinte percebe na forma que Grant Green toca é o seu notável relaxamento. Sentado no palco, de olhos fechados e pernas cruzadas, Grant parece tão completamente concentrado em sua música que não se perturba com a conversa e os risos dos freqüentadores do bar”. “Idle Moments” traduz de forma perfeita essa relação quase espiritual que Green tinha com a música.



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