Música e outras coisas
TODAS AS CORES DO CAMALEÃO
Lou Donaldson, não sei por que cargas d’água, me lembra aqueles sujeitos gaiatos, que estão sempre com uma piada na ponta da língua e um sorriso no rosto. Se fosse um sambista, tenho certeza, estaria mais para a malandragem bem humorada de um Bezerra da Silva que para a fidalguia discreta de um Paulinho da Viola. A razão de tal associação talvez seja porque Donaldson é o protagonista de uma das capas mais cafajestes da história do jazz: no álbum “Good Gracious”, o saxofonista olha, pra lá de indiscretamente, o avantajado “derriére” de uma opulenta senhora que passa por ele.
Contudo, é necessário reconhecer que não foi por essa pitoresca razão que ele inscreveu seu nome entre os maiores jazzistas de todos os tempos. Pelo contrário. Apesar do jeitão moleque e irreverente, esse aplicado discípulo de Charlie Parker e Johnny Hodges tem uma trajetória musical tão rica quanto a sua alentada discografia, que chega facilmente a algumas boas centenas – entre as gravações como líder e como sideman. E é por elas, e não pela capinha pra lá de safada, que ele merece ser lembrado.
Nascido no dia 1º de novembro de 1926, em Badin, Carolina do Norte, Donaldson começou a tocar aos 15 anos. Embora sua mãe fosse professora de piano, nunca se interessou por esse instrumento, dedicando-se primeiramente à clarineta, que logo foi trocada pelo sax alto (um acidente durante um jogo de baseball, que ocasionou uma lesão em um dos dedos da mão esquerda, acelerou essa permuta).
Entrou para a marinha em 1945 e teve a oportunidade de aperfeiçoar seu estilo na banda da armada, ao lado cobras criadas como Clark Terry e Willie Smith. Em 1952 mudou-se para Nova York, tendo tocado com estrelas do porte de Milt Jackson, Charles Mingus, Blue Mitchell, Thelonious Monk, Jimmy Smith e Horace Silver. Seu fraseado inventivo e cheio de groove chamou a atenção de Art Blakey, que o convidou para integrar os seus Jazz Messengers em 1954, tendo participado da gravação do soberbo “A Night At Birdland”, ao lado de ninguém menos que Clifford Brown.
No início da década de 50 assinou contrato com a Blue Note, selo para o qual gravou algumas dezenas de discos, nos mais diversos contextos, embora a ligação com a gravadora tenha sofrido um breve hiato entre 64 e 67. Dentre seus colaboradores mais habituais, destacam-se o pianista Horace Parlan, o organista John Patton, o guitarrista Grant Green, o percussionista Ray Barreto e o baterista Ben Dixon.
Além da influência confessa de Parker e Hodges, Donaldson também tem uma fortíssima ligação com o blues e foi um dos primeiros e mais bem-sucedidos criadores do chamado soul jazz. Também ajudou a descobrir diversos talentos, como o saxofonista Stanley Turrentine e o pianista Gene Harris. Entre seus álbuns mais badalados, estão os excelentes “Lou Takes Off”, ao lado do excepcional Sonny Clark, de 1957 e “Blues Walk”, de 1958.
Gravado no dia 27 de abril de 1961, “Gravy Train” é outro ponto alto na discografia de Donaldson. Neste álbum, ele divide o estúdio com o pianista Herman Foster (mais um regular colaborador), o baixista Ben Tucker, o baterista Dave Bailey e o percussionista Alec Dorsey, em uma sessão bastante relaxada, calcada em diversos standards e em duas composições do próprio líder. Trata-se de um disco de transição, fazendo a ponte entre o bebop que caracterizava os seus primeiros álbuns e o soul jazz que iria marcar a sua produção a partir do terço final da década de 60.
A música que dá nome ao disco paga tributo à tradição do blues, destacando-se o delicioso aproach percussivo e o solo irrepreensível do líder. “South Of The Border”, popular na voz de Frank Sinatra, merece um delicioso arranjo que acentua sua levada latina. Grande solo de Herman Foster, com o saxofonista demonstrando seu característico poder de adaptação a qualquer contexto rítmico.
Esse flerte com os ritmos latinos volta a se evidenciar, agora de maneira mais contida, na bela interpretação de “Candy”. Mais uma vez é digno de nota o piano impecável de Foster, que além de excelente acompanhante também é um solista de grande personalidade. “Avalon” recebe um belíssimo arranjo bopper, com Donaldson pagando tributo à sua influência maior – podem-se perceber ecos de Bird, sobretudo nos registros mais agudos. A percussão de Dorsey, cheia de swing, ajuda a fazer dessa canção uma das mais marcantes do disco.
“Twist Time” é um hard bop tocado em um andamento mais cadenciado, com uma discreta tonalidade de blues. O trabalho do baixo e da bateria dignificam a excepcional abordagem de Donaldson, que conta também com as preciosas intervenções do pianista para criar o clima bluesy. “The Glory Of Love”, um clássico eternizado pela orquestra de Benny Goodman, ganha uma leitura menos ortodoxa, quase soul, calcada no ótimo entrosamento da sessão rítmica e na sonoridade quente e viril do líder.
O destaque absoluto do álbum é a fabulosa versão de “Polka Dots And Moonbeans”, com Donaldson mostrando que poderia soar tão pungente e lírico quanto Ike Quebec e Stanley Turrentine, dois dos mais célebres baladeiros que pontuavam na Blue Note à época. Um arranjo insinuante, que privilegia as delicadas texturas sonoras da canção de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen, com absoluto destaque para o sopro melífluo e cristalino do saxofonista. Ouvindo essa arrebatadora versão é que se percebe, de forma incontestável, que mesmo um standard tão gravado como esse pode adquirir novas nuances e ser reinventado, quando os músicos que fazem a sua releitura possuem os predicados dos envolvidos nesta gravação.
Com um domínio absoluto de todos os dialetos que compõem o idioma jazzístico, Lou Donaldson sempre foi um músico capaz de atuar, com habilidade incomum, em qualquer contexto, embora alguns críticos não o vejam com bons olhos, sobretudo a partir do final da década de 60, quando lançou vários discos com uma abordagem pop e de grande apelo comercial.
Para além dessa discussão, o mais importante é percebê-lo como um autêntico camaleão, capaz de transitar, sem maiores problemas, do swing ao soul jazz, do cool ao bebop, do blues ao hard bop, como se fosse um verdadeiro fundador de cada um desses estilos – o que é absolutamente verdadeiro no caso do soul jazz.
Para a felicidade dos amantes do jazz, esse bem humorado octogenário continua em intensa atividade, tocando regularmente em clubes e festivais mundo afora. Tanto é que “recentemente, aos 84 anos, ele foi requisitado para tocar nos principais clubes de Nova Iorque, numa maratona de shows em comemoração aos 70 anos da gravadora que o lançou, a Blue Note”, conforme nos faz saber o antenado Vagner Pitta (do blog Farofa Moderna). Que suas cores vivas continuem brilhando ao sol por incontáveis verões!
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