INIMIGOS: UMA PEQUENA HISTÓRIA DE AMOR AO JAZZ
Música e outras coisas

INIMIGOS: UMA PEQUENA HISTÓRIA DE AMOR AO JAZZ



A música que os ocupantes do pequeno palco tocavam era alegre, exuberante como a bela vocalista que os acompanhava. Mas as poucas pessoas que ousavam permanecer naquele enfumaçado recinto não pareciam nada felizes. Estavam silenciosas, indiferentes. Os rostos taciturnos denunciavam os tempos difíceis por que passavam. Alguns tomavam cerveja, outros, vinho barato. Ninguém cantava ou dançava. Alguns acompanhavam aquele ritmo inebriante com um sóbrio manear de cabeça ou um discreto estalar de dedos, mas não pronunciavam palavra alguma.


Embora as músicas soassem familiares, ao final de cada uma delas a cantora anunciava o respectivo título em francês mas, curiosamente, parecia que alguma coisa não se encaixava. No meio do set, alguns homens entraram com estrépito no bar. Vestiam uniformes impecavelmente alinhados. As botas, muito bem engraxadas, brilhavam. Muitos exibiam, com indisfarçável orgulho, incontáveis medalhas e galardões. Nos coldres, todos portavam mortíferas pistolas Luger, das quais somente se podiam ver os cabos. Nas cabeças, os quepes tornavam os integrantes daquele grupo insuportavelmente arrogantes.


Alguns gargalhavam acintosamente, outros cantavam em um idioma incompreensível. Pediram cerveja e o melhor vinho do lugar. Sentaram-se em uma mesa bem afastada do tablado, expulsando dali um homem franzino e de aparência humilde que até então tomava, apático, uma minúscula taça de vinho, e continuaram a sua ruidosa algaravia. Nenhum deles parecia prestar atenção aos demais fregueses do bar, menos ainda à música que enchia o ambiente com uma injustificável alegria. Exceto dois.


Um deles era exatamente aquele que parecia ser o líder do grupo e o mais engalanado deles. O outro era um oficial de patente visivelmente inferior. O olhar do primeiro era severo, cortante, de um azul tão intenso que parecia entranhar-se na alma da pessoa a quem se dirigia. O segundo, que ostentava poucos galardões e era, por certo, o menos graduado daqueles oficiais, observava o desempenho dos músicos com um olhar embevecido, como se quisesse manter com cada um deles uma proibida cumplicidade.


O violinista sentiu enregelar a espinha, mas continuou tocando, tentando ignorar o terror que o olhar do oficial mais graduado lhe incutia. Quanto mais os músicos exibiam a sua técnica refinada e se esmeravam em dar suporte ao canto hipnótico da vocalista, mais intensa era a força daquele olhar inquisidor. Tocaram ainda por uma hora, quando o espetáculo, finalmente, se encerrou. Desceram do palco e o líder do grupo fez um sinal – discreto, porém enérgico – ao assustado violinista. Perguntou, em francês e com um tom que denunciava alguém acostumado a dar ordens e, certamente, jamais vê-las desobedecidas:


- Qual o nome da música com que vocês encerraram a apresentação?


O violinista, hesitante, respondeu:


- É “Tristesse De Louis XV”, senhor.


O tom de voz do jovem instrumentista, entre assustado e ansioso, denunciava que algo estava errado. De fato, vivia-se o tenebroso período da invasão alemã à França, durante a Segunda Guerra Mundial. Aos franceses era terminantemente proibido tocar música americana. O estratagema usado para enganar os alemães era simples, mas um tanto quanto perigoso: os músicos tocavam canções americanas com letras em francês, modificando, inclusive, os seus respectivos títulos. “Tristesse De Louis XV” não era outra senão a clássica “Saint Louis Blues”, de W. C. Handy, e caso fossem descobertos, os músicos poderiam até mesmo ser presos.


Em todo caso, o oficial balançou a cabeça levemente e pareceu satisfeito, pois a letra falava dos amores do célebre monarca francês. Pouco tempo depois o grupo se levantou da mesa e se dirigiu à saída. Ninguém pagou um único centavo pela comida ou pela bebida ali consumidas. Todos saíram do recinto, exceto o oficial menos graduado, aquele que permanecera o tempo inteiro a observar com atenção o espetáculo. Calmamente, dirigiu-se ao violinista e disse, também em francês:


- Parabéns pelo espetáculo. A que mais gostei foi “Saint Louis Blues".


O violinista ficou petrificado, imaginando que ele e os demais músicos sairiam dali diretamente para a cadeia. O terror congelou-lhe a fala e ele permaneceu calado. Com um discreto sorriso, o oficial completou:


- Não tema, só queria cumprimentá-lo. Eu sou pianista de jazz e de forma alguma iria denunciar um colega de profissão.



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Jamais se saberá quem foi aquele oficial alemão que preservou o segredo dos assustados músicos, evitando que eles passassem uma temporada nas terríveis prisões alemãs. Mas o violinista passou à posteridade como um dos três maiores nomes do instrumento no jazz e o mais longevo deles: Stéphane Grappelli (os outros dois são Stuff Smith e Joe Venuti). Fundador do célebre Hot Club de France, ao lado do fenomenal guitarrista Django Reinhardt, Grappelli foi um dos mais importantes nomes do jazz europeu e viveu de perto as agruras da Segunda Guerra Mundial, quando os alemães tomaram a sua adorada Paris.


Em sua monumental carreira, tocou alguns dos maiores jazzistas, em uma relação que inclui Duke Ellington, Oscar Peterson, Joe Pass, Kenny Clarke, Coleman Hawkins, Mel Lewis, Gary Burton e McCoy Tyner. Em 1969 gravou, pela primeira e única vez, ao lado de outro mestre do instrumento, Joe Venuti, o excelente “Venupelli Blues”, para a Charly. O repertório do disco é composto por seis standards, recriados com a elegância e o bom gosto típicos dos líderes da sessão. Como um charme a mais, o disco foi gravado em Paris, onde se passou a história acima.


Acompanhando estes dois gigantes, um outro músico da mesma estatura, o notável Barney Kessel, assume a guitarra. Os demais integrantes do combo são o pianista George Wein (o lendário criador do Festival de Newport), o baixista Larry Ridley (um habilidoso sideman, cujo talento pode ser apreciado em discos de Lee Morgan, Freddie Hubbard, Roy Haynes e Red Garland) e o baterista Don Lamond (outro músico pouco conhecido, egresso da orquestra de Woody Herman mas com um currículo fenomenal, que inclui gravações com Charlie Parker, Stan Getz, George Russell e Zoot Sims).


Todas as faixas primam pela excelência, mas há pelo menos dois destaques absolutos: “After You’ve Gone” e “Tea for Two”. A primeira começa bem relaxada e depois vai evoluindo para um diexeland bastante acelerado – além do belíssimo trabalho dos líderes, o piano stride de Wein e o delicado fraseado de Kessel exigem do ouvinte uma atenção redobrada. Na segunda, o maravilhoso duelo de violinos, com cada um dos líderes tocando como se fosse a última gravação da qual participariam. Sob todos os aspectos, uma gravação notável, que dignifica as biografias de todos os envolvidos e que deve figurar com destaque nas estantes de qualquer jazzófilo.



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PS.: Post dedicado ao querido mestre José Domingos Raffaelli, que contou aqui mesmo no JAZZ + BOSSA, a deliciosa história que inicia esta resenha, em um comentário feito sobre o disco “Afternoon In Paris”, de John Lewis e Sacha Distel.



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