Já houve quem dissesse que se Bach tocasse jazz, ele soaria como Dave McKenna. Também já foi dito que ouvi-lo improvisar é como receber uma lição de história sobre o piano jazzístico. No caso, dada por um dos maiores virtuoses do piano de todos os tempos, capaz de conjugar no mesmo cadinho de influências representantes de escolas cronológica e estilisticamente distintas, como James P. Johnson, Fats Waller, Art Tatum, Nat King Cole ou Bud Powell.
Dono de uma personalidade modesta, McKenna sempre recusou o papel de astro do jazz, preferindo se identificar como um pianista de salão, muito mais afeito a explorar as possibilidades da melodia que propriamente a criar harmonias. Em que pese a modéstia, teve a honra de ouvir do próprio Art Tatum, que o considerava uma espécie de sucessor, rasgados elogios à sua técnica refinada.
Nascido em Woonsocket, Rhode Island, no dia 30 de maio de 1930, ele construiu uma carreira discreta e pouco badalada – muito parecida com a sua própria maneira de ser. Seu senso melódico apurado e seu estilo vibrante fizeram dele um acompanhante dos mais requisitados, embora seu nome não mereça maior destaque nos compêndios e enciclopédias de jazz. Mas bastam poucos acordes para que o ouvinte perceba que McKenna é dono de um estilo peculiar e que sua técnica soberba é capaz de ombrear-se à dos maiores pianistas de qualquer época.
O amor pela música veio do berço. O pai, William McKenna, ganhava a vida como carteiro e empregava o tempo livre como baterista amador. A mãe, Catherine Reilly McKenna, tocava piano e violino. Foi ela quem deu as primeiras lições de piano ao pequeno Dave, quando ele ainda era criança. No final da década de 30, a família se mudou para Boston, onde Dave continuou os estudos, pelas mãos do professor Preston Sandiford.
As ondas do rádio invadiam a casa dos McKenna trazendo a música de Duke Ellington e Count Basie e o jovem Dave desenvolveu um amor incondicional pelo estilo. Nat King Cole é apontado pelo pianista como a sua principal influência, mas ele também reconhece a importância que músicos como Benny Goodman, Artie Shaw, Louis Armstrong, Charlie Parker e Dizzy Gillespie tiveram em sua formação. Torcedor do Boston Red Sox, o basebol é outra paixão que McKenna traz consigo desde a infância.
Com apenas 15 anos, Dave se filiou ao sindicato dos músicos e iniciou sua carreira profissional tocando em clubes da região de Boston. Sua primeira associação relevante foi com a banda do saxofonista Boots Mussulli, com quem tocou durante o ano de 1947. Algum tempo depois, foi contratado por Charlie Ventura para integrar-se à sua orquestra. Em 1950, foi a vez de se juntar à badalada orquestra de Woody Herman, o que o obrigou a se mudar para Nova Iorque. Alguns dos seus companheiros na big band foram Kai Winding, Ernie Royal, Bill Harris, Red Mitchell, Nilt Jackson, Carl Fontana e Shorty Rogers.
No ano seguinte, McKenna se viu obrigado a interromper a carreira profissional para servir o exército. Mas não abandonou a música, pois continuou tocando em diversas orquestras e bandas da corporação, inclusive na Coréia, onde os Estados Unidos estavam mergulhados em uma guerra sangrenta. Após cumprir o serviço militar, o pianista voltou a trabalhar na orquestra de Charlie Ventura, entre 1953 e 1954. Em seguida, realizou trabalhos com Gene Krupa, Stan Getz, Urbie Green, Zoot Sims, Al Cohn, Charlie Parker, Teddy Charles, Eddie Condon, Benny Goodman, Ruby Braff, Osie Johnson, Jimmy Raney, Bob Wilber, Phil Woods, Rosemary Clooney, Tony Bennett, Anita O’Day, Chuck Wayne e outros.
Apesar de bastante ocupado por causa dos compromissos profissionais, McKenna não esquecia a grande paixão da infância: o baseball. Seu amor pelo esporte era tamanho que ele integrava o time amador chamado “The Al Thomson’s Drunks”, organizado pelo saxofonista Al Thomson e integrado, entre outros, por Zoot Sims. O time costumava disputar animadas partidas no Central Park e seu feito mais relevante foi uma vitória sobre os integrantes da orquestra de Harry James – que provavelmente eram tão chegados a uma bebida quanto os Drunks.
No final dos anos 50, comandou o piano na banda do trompetista Bobby Hackett, que o considerava o maior pianista do mundo. A parceria durou quase uma década e, além da amizade, rendeu mais uma mudança de endereço a McKenna, que trocou a feérica Nova Iorque pela bucólica Cape Cod, no estado do Massachusetts. Refletindo a vida menos agitada que passou a levar, Dave se afastou dos estúdios e reduziu sensivelmente a atuação como sideman.
McKenna acompanhou ninguém menos que Louis Armstrong na edição do Newport Jazz Festival de 1970. A nova década injetou outro ânimo à carreira do pianista e sua agenda voltou a ser das mais requisitadas. A partir daí, tocou com novos valores, como Scott Hamilton, Warren Vaché, Gray Sargent, Marshall Wood, Daryl Sherman, Kenny Davern e Ed Bickert, e com veteranos como Joe Venuti, Red Norvo, Flip Philips, Dick Johnson, George Duvivier, Lou Colombo, Bucky Pizzarelli e Buddy Rich.
Dave desenvolveu uma técnica singular, na qual a mão esquerda desempenha um papel rítmico importantíssimo, usando toda a extensão do teclado e fazendo com que o piano soe como um pequeno conjunto. Nas palavras do crítico Howard Reich, do Chicago Tribune, “o que outros pianistas dizem com um rugido, McKenna consegue expressar com um sussurro. E enquanto outros virtuoses deleitam-se com o brilhantismo de sua própria técnica, McKenna quase que se esforça para disfarçar sua. Ele é Chopin em um mundo que reverencia Liszt. Ele é Mozart em uma era que cultua Mahler.”
A carreira fonográfica inclui álbuns por selos como ABC-Paramount Records, Epic, Bethlehem, Realm, Chiaroscuro, Arbors e Concord Jazz. Por esta gravadora, lançou o espetacular “No Bass Hit”, gravado em março de 1979. Tendo a seu lado os sensacionais Scott Hamilton, no sax tenor, e Jake Hanna, na bateria, McKenna brinda o ouvinte com performances espetaculares, altamente representativas do seu estilo personalíssimo.
A faixa de abertura é “But Not for Me”, dos Irmãos Gershwin, que começa em ritmo dolente, com o sax e o piano dialogando lentamente. À medida em que a bateria vai se agregando aos outros dois instrumentos, a canção acelera progressivamente e ganha ritmo. McKenna revela aqui toda a importância do swing em sua formação e Hamilton, melodista de recursos aparentemente ilimitados, faz jus à fama de saxofonista da velha escola, cujo estilo se aproxima muito mais de um Coleman Hawkins que de um John Coltrane.
“If Dreams Come True” é fruto da parceria entre Benny Goodman, Irving Mills e Edgar Sampson. Também calcada no swing, salta aos olhos aqui a capacidade técnica do pianista, cuja mão esquerda substitui o contrabaixo na estruturação rítmica do tema. Impressionante como ele consegue improvisar com destreza e intensidade, sem se afastar tanto da melodia. Hanna está muito à vontade e apresenta um solo verdadeiramente explosivo.
“Long Ago (And Far Away)”, de autoria de Ira Gershwin e Jerome Kern, é uma das baladas prediletas dos jazzistas e o trio a interpreta de maneira reverente, exalando romantismo. A atuação de Hamilton lembra o Stan Getz dos anos 50. “Drum Boogie”, de Roy Eldridge e Gene Krupa, volta a eletrizar o ouvinte, com sua batida irresistível e seu ritmo infeccioso. McKenna trafega pelo teclado com a agilidade de um bailarino, enquanto Hanna, bom discípulo de Krupa, elabora um verdadeiro tratado percussivo, exibindo um domínio absoluto do instrumento naquele que é, provavelmente, o solo mais empolgante do disco.
“I Love You, Samantha” é uma obscura balada de Cole Porter. Embora pouco conhecida, traz a sofisticação típica do compositor e sua execução em tempo médio abre espaço para que todos os três músicos brilhem igualmente. A performance de Hamilton é notável, com direito a solos lesterianos e um lirismo de levar o ouvinte às lágrimas. O pianista responde à altura, imprimindo uma belíssima tintura de blues ao tema.
“I'm Gonna Sit Right Down (And Write Myself a Letter)”, de Fred Ahlert e Joe Young foi imortalizada na voz de Nat King Cole. A interpretação do trio é deliciosa, com Hamilton em estado de graça. A técnica orquestral de McKenna pode ser ouvida em sua inteireza, merecendo destaque o exuberante duelo entre o saxofone e piano, no estilo pergunta-e-resposta. Embora tenha uma estrutura melódica mais convencional, o trio impõe ao tema referências explícitas ao bebop, desenvolvendo harmonias extremamente intrincadas.
Mais uma vez, Cole Porter está presente, agora com “Easy to Love”, uma de suas mais emblemáticas composições. A sonoridade encorpada de Hamilton, quase rude, contrasta com o toque refinado de McKenna. O disco encerra com uma vibrante interpretação de “Get Happy”, de Harold Arlen e Ted Koehler, que faz uma releitura modernizada do swing e explora o tema de maneira ousada, com direito a inflexões tipicamente boppers.
“No Bass Hit” marcou o início da prolífica associação do pianista com a gravadora e que se estenderia pelos 20 anos seguintes. O trio voltaria a atuar junto no também ótimo “Major League”, gravado em 1986. Ambos os discos foram reunidos em “Double Play”, cd duplo lançado em 2002 que é indispensável nas estantes e players de qualquer jazzófilo.
Durante o período em que esteve na Concord, Dave demonstrou um especial apreço pelo formato solo, tendo gravado diversos álbuns sem qualquer acompanhamento, inclusive para a série Mayback Recital. Também foi, durante boa parte dos anos 80, o pianista oficial do clube Oak Bar, localizado no Copley Plaza Hotel, em Boston. Os pianistas Oscar Peterson e George Shearing, os cantores Frank Sinatra e Tony Bennett, o maestro Kurt Masur, o jogador de baseball Ted Williams e a atriz Faye Dunaway eram algumas das muitas celebridades que costumavam prestigiar seus concertos.
Em janeiro de 1985, McKenna e os amigos Al Cohn, Zoot Sims e Gerry Mulligan brindaram os moradores de Nova York com uma memorável apresentação na Church Of The Heavenly Rest, igreja de arquitetura gótica plantada em plena 5ª Avenida. Desfiando um repertório que misturava standards consagrados, como “Willow Weep For Me”, e clássicos da época dos Four Brothers, como “Broadway”, o quarteto encantou os quase mil espectadores e demonstrou que o jazz – que já havia sido apelidado de “Música do Diabo” – podia, certamente, ser considerado um estilo musical verdadeiramente celestial.
A década de 90 viu McKenna atingir a plenitude de sua arte. Reverenciado por músicos de todas as gerações, lançou álbuns primorosos, como “Sunbean And Thundercloud”, em duo com o saxofonista Joe Temperley, e “Do Nothing Till You Hear From Us” e “You Must Believe In Swing”, no qual divide o estúdio com outro grande virtuose, o clarinetista Buddy DeFranco. Todos os três discos foram lançados pela Concord.
Em 1995, quando comemorava 50 anos de carreira, McKenna foi o grande homenageado do New England Jazz Festival. O ponto alto do festival foi a leitura, pelo Senador Edward Kennedy, de uma carta escrita por ninguém menos que o Presidente Bill Clinton, fã de jazz e admirador confesso do pianista.
Apreciador dos prazeres do copo e da mesa, Dave era considerado um ótimo garfo e capaz de beber hectolitros de álcool. Quando os médicos lhe recomendaram moderar os hábitos, teria comentado com a amiga Louise Choo, esposa do saxofonista Zoot Sims: “Se eu fizer o que os médicos mandam, provavelmente vou viver mais. Mas quem garante que eles estão certos?”.
Em 2000, o pianista foi uma das atrações do concerto comemorativo dos 85 anos do saxofonista e velho parceiro Flip Philips, tocando ao lado de craques de diversas gerações, como Jack Sheldon, Clark Terry, Joe Wilder, Kenny Davern, Ken Peplowski, Phil Woods, Howard Alden, Billy Bauer, Milt Hinton e muitos outros. Mas já naquela época apresentava graves problemas de saúde.
O desregramento à mesa haveria de cobrar um alto preço e o novo século trouxe consigo o agravamento de seu estado. O diabetes foi implacável e tornou dificultosa a locomoção do músico, que precisava de muletas para andar. Além disso, McKenna desenvolveu uma doença chamada síndrome do túnel carpal, que limitava-lhe os movimentos das mãos e que o obrigou a abandonar os concertos. Ele se recolheu ao pequeno apartamento em Providence, Rhode Island, onde costumava receber a visita de alguns poucos amigos, como o pianista Hod O’Brien e o crítico Nat Hentoff.
Seu último disco foi “An Intimate Evening With Dave McKenna”, álbum de piano solo gravado ao vivo no clube Sarasota Opera House, em Sarasota, Flórida, que foi lançado pelo pequeno selo Arbors Records em 2002. Ele faleceu no dia 18 de outubro de 2008, em conseqüência de um câncer no fígado. Deixou uma obra de fôlego e inúmeros herdeiros musicais, como o próprio Hod O’Brien, e Bill Charlap.
O pesquisador Sylvio Lago resume bem a importância e a originalidade do pianista. Segundo ele: “McKenna foi um dos mais rítmicos e completos estilistas do piano moderno, impressionando quando improvisa com absoluta independência das mãos, com a esquerda imensamente rica e a direita explorando todas as possibilidades técnicas do improviso e do próprio piano. Rica também é a dinâmica que imprime aos improvisos, conhecidos pela fluência e desembaraço excepcionais”.
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