CONVERSANDO COM AS BALEIAS
Música e outras coisas

CONVERSANDO COM AS BALEIAS



17 de março de 1930. O mundo vivia as agruras da Grande Depressão quando Paul Horn nasceu, em Nova Iorque. Pouco depois, sua família se mudou para Washington, D. C., a capital dos Estados Unidos, em busca de melhores condições de vida. Com apenas 4 anos, o pequeno Horn começou os estudos de piano clássico, por influência da mãe, a cantora e pianista Francis Sper, que abandonou a carreira profissional por causa do casamento. Francis chegou a ter alguma notoriedade na década de 20, apresentando seus próprios programas de rádio e chegou a trabalhar com o compositor Irving Berlin.

Com a música em seu DNA, aos 12 anos Paul descobriu a clarineta e o sax alto, instrumentos que o acompanhariam pelo resto da vida, assim como a flauta. Ele deixou o piano de lado e, pouco tempo depois, já se apresentava em gigs no circuito de clubes de Washington. Tendo como primeiros ídolos os astros do swing Benny Goodman e Artie Shaw, estes logo foram substituídos, em sua preferência, pelos revolucionários Charlie Parker e Dizzy Gillespie, pais do bebop.

Embora o jazz o atraísse de forma bastante intensa e sua família apoiasse incondicionalmente a sua carreira musical, Horn preferiu investir, primeiramente, na carreira acadêmica. Graduou-se em flauta, no famoso Oberlin Conservatory of Music, em Ohio, onde entrou em 1952. Após a graduação, Horn obteria o título de Mestre na prestigiosa Manhattan School of Music.

Em 1956, após uma breve passagem pelo exército, onde tocou flauta na orquestra da corporação, Horn se mudou para Los Angeles, agregando-se à Sauter–Finegan Big Band, naquele que seria o seu primeiro vínculo profissional. Pouco tempo depois, seria chamado pelo baterista Chico Hamilton para integrar o seu quinteto, um dos mais prestigiosos do período, substituindo ninguém menos que o grande Buddy Collette. Paul permaneceu ali de 1956 até 1958, tocando sax alto, tenor, clarineta e flauta.

Foi nesse período que conheceu o arranjador Fred Katz, a primeira pessoa a lhe falar sobre os mistérios da filosofia oriental e sobre o budismo, temas que, pouco mais de uma década depois seriam de fundamental importância em sua vida. Depois de tocar com Hamilton, o saxofonista co-liderou um grupo com o vibrafonista Cal Tjader, além de se firmar como um renomado músico de estúdio, fazendo trabalhos para o cinema e a televisão. Estabelecido em Hollywood, Horn montou seus próprios grupos e rapidamente se tornou uma estrela em ascensão no mundo do jazz. Foi várias vezes indicados para prêmios em revistas especializadas, como a Downbeat e a Metronome, além de ter sido objeto do documentário “The Story of a Jazz Musician”, dirigido por David Wolper.

Como músico, acompanhou June Christy, Frank Sinatra, Mongo Santamaría, Stan Getz, Nat King Cole, Tony Bennett, Ray Brown, Mel Tormé, George Shearing, Nancy Wilson, Shorty Rogers, Henry Mancini, Manny Albam, Peggy Lee, Miles Davis, Shelly Manne, Modern Jazz Quartet, Buddy Rich, Pete Rugolo, entre muitos outros. Também integrou a orquestra da rede de TV NBC e fez pontas em filmes como o suspense “The Sweet Smell of Success”, de 1957, estrelado por Burt Lancaster e Tony Curtis, e a comédia “The Rat Race”, também estrelado por Tony Curtis.

A estampa de galã, as roupas sempre muito alinhadas, o charme, a inteligência e a desenvoltura faziam de Horn uma figura querida em Hollywood. Sempre ao lado de celebridades da música, como Miles Davis e Tony Bennett, do cinema, como Tony Curtis, ou dos dois, como Frank Sinatra, Horn era também um dos mais disputados galãs do pedaço.

Em 1960, Horn realizou o sonho de gravar com Duke Ellington, no album “Three Suites”, onde a orquestra do maestro interpreta composições eruditas de Tchaikovsky e Grieg. Alguns anos mais tarde, em 1964, ele seria o vencedor do Grammy pelo álbum “Jazz Suite On The Mass Texts”, outro crossover entre o jazz e a música clássica, no qual interpreta composições do pianista argentino Lalo Schifrin, responsável pelos arranjos e pela condução da orquestra que acompanha o saxofonista, composta por grandes nomes do jazz, como Conte Candoli, Al Porcino, Larry Bunker, Red Callender, Frank Rosolino e outros. Como líder, gravou para selos como Epic, Prestige, Fantasy, Impulse!, World Pacific, Hi-Fi Jazz, Columbia e RCA.

Voltando a 1960, Horn lança, pela pequena Hi-Fi Jazz, aquele que é tido como o seu mais importante trabalho eminentemente jazzístico: “Something Blue”. Profundamente inspirado pelo trabalho do amigo Miles Davis, especialmente por “Kind Of Blue”, lançado no ano anterior, Horn apresenta um dos trabalhos mais instigantes e desafiadores da década. Sem fazer concessões ao experimentalismo free, o álbum flerta com as experiências estético-musicais mais ousadas da época – e nem por isso é um trabalho árido ou de difícil audição, embora requeira do ouvinte uma certa dose de cumplicidade.

As gravações ocorreram nos estúdios da Fantasy, com produção de Dave Axelrod. Ao lado de Horn, que toca sax alto, flauta e clarinete, estão o pianista Paul Moer, o baixista Jimmy Bond, o vibrafonista Emil Richards e o então jovem baterista Billy Higgins, que apesar de ter apenas 24 anos já despontava como um dos mais promissores daquele período, com trabalhos ao lado de Lucky Tompson, Red Mitchell, Stan Getz, Paul Blay, Ornette Coleman e John Coltrane. No repertório, quatro composições do líder, uma de Moer e uma de Richards.

O disco abre com “Dunn-Dunnee”, de Horn, um bebop estilizado e rápido. Usando a flauta, o líder mostra o quanto a música erudita influenciou e orientou a sua abordagem no jazz. Há ecos do Modern Jazz Quartet, sobretudo por conta do vibrafone de Richards, um vigoroso discípulo de Milt Jackson. Higgins funciona como um verdadeiro dínamo, catalisando a energia criativa do grupo, absorvendo as contribuições harmônicas de cada um deles e devolvendo esse estímulo sob a forma de uma atuação criativamente explosiva.

Em seguida, “Tall Polynesian” é um bebop impressionista, que mostra que outros pontos de convergência entre o trabalho de Horn e o do MJQ, sobretudo quando o quinteto adota uma postura mais reflexiva. Manuseando a flauta com extrema desenvoltura e precisão, o líder se mostra um improvisador vigoroso, capaz de ombrear-se aos grandes flautistas do jazz, como Jerome Richerdson, Bobby Jaspar ou Herbie Mann. Bond e Higgins formam uma sessão rítmica inspirada, o que permite que os solos de Horn e Richards soem especialmente fluentes.

A sinuosa “Mr. Bond” prenuncia a futura devoção de Horn por ritmos considerados exóticos. Com seu andamento quebradiço e sua repetição de riffs, a referência mais próxima é o trabalho de Gil Evans, especialmente em “Out Of The Cool”, curiosamente um álbum gravado naquele mesmo ano. A bordo do sax alto, Horn demonstra enorme versatilidade e perícia e seus solos não negam a enorme influência de Charlie Parker. O piano Moer elabora um sofisticado colorido harmônico, que em alguns momentos chega a ser verdadeiramente perturbador, no sentido de desafiar a sensibilidade do ouvinte e de exigir-lhe atenção.

Mais uma vez utilizando o sax alto, o líder é o grande destaque de “Fremptz”, um petardo sonoro repleto de variações. A composição de Richards traz alguns sutis elementos da música japonesa e aqui é o Brubeck de “Jazz Impressions From Japan” quem primeiro vem à mente. Essa referência à música japonesa não é mera coincidência, pois o autor do tema serviu à marinha em uma base no Japão e tocou com a pianista Toshiko Akiyoshi em meados dos anos 50.

Construído sobre uma estrutura de blues, “Something Blue” aos poucos vai subvertendo essa estrutura harmônica, impregnando-a de elementos contemporâneos. Nessa que é uma das faixas mais sofisticadas do álbum, Horn apresenta-se ao clarinete e também nesse instrumento revela ser um músico diferenciado. O peso do blues pode ser sentido na pulsação do baixo de Bond e na robusta atuação de Higgins, mas há aqui uma nítida intenção de retirar uma certa aspereza e de dar uma roupagem moderna ao velho estilo nascido às margens do Mississipi. Sem soar arrogante ou pretensioso, o quinteto consegue lograr seu intento de maneira magistral.

“Half And Half” pode ser descrita como um bebop progressivo e divagante, uma conjugação de audácia e vitalidade. A estrutura complexa e as variações harmônicas são um exercício de imprevisibilidade e os instrumentos se articula, primeiramente, como uma algaravia de vozes falando simultaneamente. Aos poucos, aquelas vozes começam a fazer sentido e a coesão do arranjo se mostra por inteiro. Ao final dos seus quase oito minutos de inquietude e ousadia, o ouvinte sai com uma única certeza: a música é uma das mais especiais formas de manifestação da inteligência humana. Destaque absoluto para Moer, originalíssimo e sempre muito instigante em sua abordagem. Uma gema rara e preciosa, para ser descoberta e admirada como a obra-prima que é.

Além da elogiada carreira jazzística, Horn era bastante requisitado por grupos e cantores do pop e do rock. Ele esteve nas gravações do aclamado “Pet Sounds”, dos Beach Boys, de 1966, album que é considerado um dos mais importantes de todos os tempos e capaz de rivalizar com obras-primas dos Beatles, como “Sgt. Pepers” ou “Abbey Road”. Também gravou com o citarista Ravi Shankar, que lhe abriu os olhos para a riqueza da cultura indiana, em 1964.

No entanto, nem todo o glamour da vida em Hollywood ou o sucesso profissional eram capazes de acalmar a inqietude natural de Paul. Com o primeiro casamento indo a pique e insatisfeito com os rumos de sua vida, Horn, tomou uma decisão radical. Influenciado pelo espírito da contracultura e pelas referências às religiões orientais, o saxofonista embarcou para a Índia em dezembro de 1966, em uma viagem que mudaria completamente o rumo de sua vida e carreira, inscreveu-se em um curso de meditação com o guru da moda, Maharishi Mahesh Yogi, famoso por sua proximidade com os Beatles.

Sobre as dificuldades da vida de músico, Paul declarou certa vez: “Ser músico de jazz não é fácil. Psicologicamente, aquilo pode te destruir. Se você toca em clubes seis noites por semana, deixa muita coisa sua ali – e quaisquer que sejam os seus sentimentos, eles se refletem na música que você faz. Depois de algum tempo, você fica tão exausto, que já não tem mais nada a oferecer ao público. Aí você começa a soar falso”. A Índia foi o catalisador dessa busca por um outro sentido à sua existência.

Durante quatro meses, Horn permaneceu em absoluto isolamento, apenas aprendendo os fundamentos da ioga e da meditação transcendental. Ainda que os céticos possam torcer o nariz, o certo é que a experiência foi transformadora para o músico e ele mergulhou de cabeça naquele universo místico. Tornou-se professor de meditação, gravou um álbum solo de flauta no Taj Mahal (“Inside Taj Mahal”, de 1968), que vendeu horrores, e criou um novo estilo musical, que passaria à história, para o bem ou para o mal, como “New Age”.

A aproximação com Maharishi permitiu a Paul fazer amizade com os Beatles, que em 1968 fizeram uma viagem espiritual semelhante à Índia, com uma trupe que incluía a atriz Shirley McLaine e o cantor Donovan, com quem Horn excursionou no início da década de 70. O dinheiro ganho nesse período, sobretudo por conta das vendas de “Inside Taj Mahal”, permitiu a Paul comprar uma casa em Victoria, na Columbia Britânica, para onde se mudou, em 1970, com a segunda esposa, a designar alemã Tryntje Horn, e os dois filhos do primeiro casamento.

No Canadá, Horn afastou-se do mainstream musical, mas não abandonou a carreira. Continuou a gravar seus álbuns e a fazer shows pelo mundo – na então União Soviética e na China, por exemplo – mas em ritmo mais lento. Também compôs trilhas sonoras para a NFB - National Film Board, uma das mais conceituadas produtoras canadenses de filmes de animação e documentários.

Uma de suas experiências mais extraordinárias foi ao lado de biólogos e pesquisadores do Sealand of The Pacific, o aquário público de Victoria, estudando as formas de comunicação entre as orcas. Consta que uma delas, chamada Haida, entristecida pela perda de uma companheira do grupo, recusava-se a comer e Horn, com a sua flauta, conseguiu recuperar o ânimo da baleia e faze-la voltar a se alimentar.

Vieram outros discos gravados em construções históricas, como “Inside the Great Pyramid”, gravado dentro da Pirâmide de Quéops, em 1976, e “Inside The Cathedral”, este gravado na Cathedral de Kazamierus, na Lituânia, em 1983. Para além das experiências místicas, Horn também demonstrou um excelente tino para os negócios. Em 1982, fundou a sua própria gravadora, a Golden Flute Records, responsável pela produção de seus próprios álbuns, desde então. Sua associação com o também flautista R. Carlos Nakai rendeu albums bastante elogiados pela crítica especializada, como “Inside Canyon de Chelly” (1997) e “Inside Monument Valley” (1999).

Seu álbum “Traveler”, de 1986, foi indicado ao prêmio Grammy de melhor album de New Age de 1987. Cidadão do mundo, seja no Tibet, no Brasil, na Escócia, na Rússia, no Egito, na China ou na África, Horn continua a sua infinita jornada musical, movida a enormes doses de espiritualidade e contemplação. Em 1990, lançou “Inside Paul Horn: The Spiritual Odyssey of a Universal Traveler”, autobiografia escrita a quarto mãos com o jornalista Lee Underwood. Continua a gravar discos, ministrar oficinas, realizar concertos e a morar em Victoria, agora ao lado da terceira esposa, a cantora Ann Mortifee. Não se sabe se ainda costuma a conversar com as orcas, mas é bem provável que sim.

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