O MESTRE-SALA DOS MARES
Música e outras coisas

O MESTRE-SALA DOS MARES




Há muito tempo, nas águas da Guanabara, um homem ousou combater as humilhantes práticas vigentes na marinha brasileira. Pelas regras de então, era permitido aos oficiais aplicar castigos físicos e torturas aos seus subordinados. Era uma prática ancestral e que jamais havia sido questionada pelos escalões superiores, que não só toleravam como estimulavam essa selvageria.

João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, tinha a dignidade de um mestre-sala e, nos primórdios do século XX, liderou a Revolta da Chibata, que contrapôs os marinheiros de baixa patente àquele sistema cruel e obscurantista. Ele e seus homens tomaram de assalto o encouraçado Minas Gerais e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro, se o decreto que permitia os castigos físicos na marinha não fosse revogado.

Logo em suas primeiras horas, marinheiros de outras embarcações, como os encouraçados São Paulo e Deodoro e o cruzador Bahia, aderiram ao movimento. A população mais pobre do Rio de Janeiro ficou ao lado dos revoltosos e quando circulou a notícia de que os amotinados estavam ficando sem mantimentos, foi feita uma grande arrecadação de víveres, onde as maiores contribuições vieram, exatamente, das camadas mais modestas.  

O movimento perdurou de 22 a 27 de novembro de 1910, quando houve a promessa de que o Presidente Hermes da Fonseca aboliria os castigos físicos e anistiaria os revoltosos. Os amotinados depuseram as armas, mas foram traídos pelo Governo Federal, que imediatamente mandou prender os líderes do movimento. Haveria uma segunda revolta, reprimida com violência e na qual perderam a vida cerca de 200 marinheiros, massacrados pelas tropas federais. Ao final do episódio, mais 2.000 revoltosos seriam expulsos da marinha e cerca de 150 foram desterrados para o Amazonas, a fim de trabalhar nos seringais.

João Cândido e outros dezoito companheiros foram levados para a Fortaleza de São José, da Ilha das Cobras, e recolhidos a uma cela escavada na rocha. Poucos dias depois da prisão, a cela foi revestida de cal virgem e, em 24 horas, estavam todos mortos, exceto João Cândido e um soldado conhecido como Pau de Lira. Durante o longo período no cárcere, o líder da rebelião foi expulso da marinha e seu julgamento somente ocorreu em dezembro de 1912. Ele foi absolvido das acusações, mas nunca foi reintegrado à corporação.

O Almirante Negro teve que sobreviver como vendedor de peixes, no Rio de Janeiro. No fim da vida, foi morar em São João de Meriti, onde faleceu de câncer, completamente esquecido, no dia 06 de dezembro de 1969. Somente em 2008, 39 anos depois de sua morte, João Cândido Felisberto e seus companheiros foram anistiados pelos incidentes ocorridos durante a Revolta da Chibata, nos termos da Lei Nº 11.756/2008.

Poucos músicos foram tão importantes na luta contra o racismo e o preconceito quanto William Marcel Collette. Saxofonista, flautista, clarinetista, compositor, arranjador e educador musical, ele é considerado o mentor de músicos como Eric Dolphy e Charles Lloyd. Ele também foi um dos desbravadores no cobiçado mercado das trilhas sonoras para o cinema e televisão, território majoritariamente reservado aos músicos brancos.

Incansável defensor dos direitos civis, seu ativismo não se resumia à causa dos músicos negros e seus embates junto aos sindicatos dos músicos da Califórnia redundaram no fim das práticas segregacionistas e em melhores condições de trabalho para todos, independentemente de raça, credo ou nacionalidade. Por sua coragem e por sua dignidade, ele certamente mereceria um apelido tão nobre quanto “Mestre-sala dos mares” e sua luta o torna, de certa forma, um irmão espiritual do nosso João Cândido.

Mais conhecido como Buddy Collette, ele nasceu no dia 06 de agosto de 1921, em Watts, distrito de Los Angeles, na Califórnia, em uma família bastante musical. A mãe, Goldie Marie, cantava no coral da igreja freqüentada pela família e o pai era pianista e saxofonista amador. Aos dez anos ele iniciou os estudos de piano com a avó, mas pouco depois de assistir a uma apresentação da banda de Louis Armstrong, optou pelo saxofone tenor.

Com apenas 12 anos, Buddy já era um músico habilidoso e, mais que isso, tinha bastante atitude. Umas de suas primeiras providências naquele tempo foi formar, em 1933, uma banda com alguns garotos do bairro. Entre eles, um jovem violoncelista de 11 anos chamado Charles Mingus. A amizade entre os dois duraria por toda a vida e o temperamento explosivo de Charlie encontrava na personalidade afável e tranqüila de Collette uma espécie de alma gêmea.

A influência de Collete sobre Mingus era tamanha que o saxofonista foi o grande responsável por Charlie ter desistido do violoncelo para se concentrar no contrabaixo. Na banda formada pelos dois, havia espaço, ainda, para outra futura estrela do jazz: o trombonista Britt Woodman, então com 13 anos e que, no futuro, brilharia ao lado da orquestra de Duke Ellington.

Collete passou a adolescência dividido entre o estudo formal na Jordan High School e a música, até abraçar esta última, profissionalmente, em 1939. Ele era um assíduo participante das jams realizadas na região da Central Avenue, com a sua enorme quantidade de clubes, boates, salões de dança e casas noturnas. Ali era possível esbarrar com os então jovens Dexter Gordon, Chico Hamilton e Gerald Wilson, figuras que, juntamente com Buddy, ajudaram a moldar as feições do jazz californiano e que plantaram as sementes do chamado West Coast Jazz.

Em 1941, depois de tocar em diversas orquestras locais, como as de Al Adams e Les Hite, Collette foi contratado pelo baterista Cee Pee Johnson, cuja banda era uma das mais populares da região de Los Angeles e que costumava participar de trilhas sonoras dos filmes da RKO, uma das mais importantes companhias cinematográficas daquela época. Buddy ganhava então assombrosos 65 dólares semanais, quase o triplo do que o pai, motorista de caminhão, fazia no mesmo período – apenas 25 dólares.

Após cerca de um ano de parceria com o bandleader, o Collette foi recrutado pela marinha, sendo lotado primeiramente em Oakland e, em seguida, em San Francisco. No mesmo destacamento, também servia o saxofonista Marshall Royal, que havia sido membro da orquestra de Cee Pee, e os dois se tornaram amigos e parceiros, atuando em uma gama de bandas da corporação.

Foi durante o seu período na marinha que Collette aprendeu a elaborar arranjos e também pôde estudar teoria musical mais profundamente. Dispensado em 1946, formou uma banda com o amigo Royal, chamada The Stars of Swing, onde também atuava o formidável Lucky Thompson, além dos velhos amigos de infância Charlie Mingus e Britt Woodman. Infelizmante, o grupo, que era atração fixa do clube Downbeat, não deixou gravações e foi desfeito em 1947.

No ano seguinte, o saxofonista gravou pela primeira vez em seu próprio nome, um compacto contendo “It’s April” e “Collette”. As gravações foram feitas nos estúdios de John Dolphin e, assim como acontecia com outros músicos da época, chegaram a tocar em rádio e a vender uma boa quantidade de cópias.

Ocorre que o malsinado cidadão, foi um dos primeiros negros a comandar um selo independente na Califórnia e que fez gravações históricas na área do jazz, do blues e do R&B, tinha um problema sério: não costumava pagar seus músicos. Decidido a evitar um conflito desgastante, Collette, que já havia feito alguns trabalhos como freelancer no estúdio, deixou de prestar serviços ali e acabou no prejuízo. Mas a prática do calote iria custar caro a Dolphin, que seria assassinado a tiros, dentro do seu escritório, em 1958, pelo compositor Percy Ivy, um dos muitos a quem trapaceou.

No mesmo período em que fez as gravações para Dolphin, Buddy começou a ter uma atuação mais destacada como acompanhante, tocando com Louis Jordan, Benny Carter, Edgar Hayes e Gerald Wilson. Ele também decidiu mergulhar com extrema seriedade nos estudos musicais, tendo freqüentado instituições como o os Angeles Conservatory of Music, a California Academy of Music e o American Operatic Laboratory.

Outra referência bastante significativa, no campo dos estudos musicais, foi o bandleader e arranjador Lyle “Spud” Murphy, com quem Collette estudou arranjo e composição. Nascido na Sérvia, Murphy emigrou para os Estados Unidos e ali construiu uma sólida carreira, sendo considerado um inovador no campo da teoria musical. Buddy pode ser ouvido em vários de seus discos, bastante avançados para a época.  

Ainda em 1948, Buddy e o saxofonista Bill Green comandavam as gigs do Crystal Tea Room, que aconteciam nas tardes de domingo. Na época, embora músicos brancos e negros pudessem tocar juntos, não podiam se filiar ao mesmo sindicato. Para ajudar a combater o racismo, Buddy criou a Comunity Simphony Orchestra, que congregava negros e brancos no mesmo espaço. Após uma intensa e exasperante luta que durou quase três anos, finalmente as leis segregacionistas foram revogadas e a sonhada integração racial pode se desenvolver.

Buddy foi um dos primeiros músicos californianos a assimilar a sintaxe do bebop e exerceu uma forte influência sobre o cenário jazzístico local, onde pontuavam jovens talentos como Eric Dolphy, Hampton Hawes, Leroy Vinnegar, Frank Morgan, Wardell Gray, Sonny Criss, Teddy Edwards, Art Pepper e uma infinidade de outros. Chegou a tocar com Charlie Parker em uma das temporadas californianas de Bird – aliás, Charles Mingus chegou a declarar em uma entrevista: “meu amigo Buddy Collette consegue tocar tão bem quanto Bird”.

Em 1950, impressionado com as habilidades de Collette, Jerry Fielding, então diretor musical do show televisivo de Groucho Marx, convidou o saxofonista para fazer parte da orquestra do programa, chamado “You Bet Your Life”. Fielding chegou a receber ameaças por ter contratado o saxofonista negro, mas não enfrentou as adversidades e, pouco depois, levaria outros músicos negros para a TV, como o baixista Red Callender e o pianista Gerry Wiggins.

Collette era o único negro da orquestra e empreendeu os maiores esforços para modificar essa situação opressiva. Suas iniciativas encontraram resistência nos segmentos mais conservadores e ele enfrentou até mesmo o tenebroso macarthismo que obscurecia a sociedade norte-americana da época. Nesse embate, encontrou o apoio em alguns dos mais sólidos pilares da cultura americana, como Paul Robeson, Gerald Wilson, Frank Sinatra, Nat King Cole, Elmer Bernstein, Benny Carter e Mickey Rooney.

Ele relembra esses tempos difíceis: “Eu sabia que era preciso fazer alguma coisa. Eu havia servido na marinha e ali as bandas eram integradas. A escola em que eu estudei também era integrada. Na verdade, até então eu pouco sabia a respeito do racismo, mas era claro que aquilo não era correto. Músicos devem ser julgados por aquilo que eles tocam e não pela cor de sua pele”.

Em 1952 o mesmo Jerry Fielding resolveu montar uma orquestra de bailes e Buddy se juntou ao empreendimento. A banda fez bastante sucesso na região de Los Angeles e chegou a gravar alguns álbuns para os selos Radio Recorders e Discovery Records, com produção de Albert Marx, produtor que ficou famoso por ter gravado o lendário concerto de Benny Goodman no Carnegie Hall, em 1938. Buddy deixou a orquestra em 1954, a fim de liderar seu próprio grupo, onde atuavam o pianista Ernie Freeman, o baixista Buddy Woodson e o baterista Larry Bunker.

Embora tivesse tido algum reconhecimento local, o trabalho do quarteto não teve maior repercussão e ele foi desfeito alguns meses depois. No ano seguinte, veio a grande oportunidade que Collette estava aguardando: um quinteto com o baterista Chico Hamilton, com uma formação pouco usual, que incluía o violoncelista Fred Katz, o contrabaixista Carson Smith e o guitarrista Jim Hall. Nessa época, Collette já havia acrescentado ao seu portfólio, além do saxofone tenor, o sax alto, o sax barítono, a flauta e a clarineta e o grupo se tornou um dos mais prestigiados por público.

As apresentações no Stroller’s Club, em Long Beach, eram sempre muito concorridas e os álbuns do quinteto, gravados para a Pacific Jazz, conseguiram ótimas posições nas paradas de jazz. Em 1956, Buddy arrebatou o prêmio de “New Star on Clarinet”, concedido pela revista Down Beat e apesar de não ser tão novo assim – afinal, já estava com trinta e cinco anos – somente então começou a ganhar a visibilidade merecida no mundo do jazz.

Ainda naquele ano, gravou seu primeiro álbum como líder, “Man of Many Parts”, para a Contemporary. Apesar do sucesso, Collette queria explorar outras sonoridades e deixou o quinteto de Hamilton em 1956. Logo montou um quarteto, que se tornou atração fixa do clube Haig’s e por onde passariam os pianistas Don Friedman e Dick Shreve, os baixistas John Goodman e Gene Wright e os bateristas Larry Bunker, Joe Peter e Bill Richmond.

Durante esse período, ele começou uma auspiciosa carreira como educador musical e teve entre seus alunos figuras do calibre de Frank Morgan, Sonny Criss, James Newton, Charles Lloyd e Eric Dolphy, que seria seu substituto no quinteto de Hamilton. No final da década de 50, vários dos ex-companheiros ou ex-alunos de Collette se transferiram para Nova Iorque, em busca de novas oportunidades profissionais, mas ele preferiu continuar na Califórnia.

Talvez por isso sua carreira jamais tenha tido uma receptividade, por parte do público, proporcional ao seu talento, pois tirando o período no quinteto de Hamilton, onde teve uma exposição pública mais intensa, Collette sempre se pautou por uma enorme discrição. Isso não o impediu de participar, como acompanhante, de álbuns de gente como Barney Kessel, Buddy Rich, Red Norvo, Peggy Lee, Herbie Mann, Red Callender, Shorty Rogers, Benny Carter, Duke Ellington, Count Basie, Stan Kenton, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Louie Bellson, Thelonious Monk, Gil Evans, Al Hibbler e outros.

Ele jamais deixou de trabalhar em scores de filmes e programas de televisão, como os de Flip Wilson, Danny Kaye e Joey Bishop, e passou os anos seguintes dividindo-se entre concertos, gravações e salas de aula. Aperfeiçoou seu lado compositor, tendo atuado, inclusive, na área da música erudita. Também se manteve como um dos mais requisitados arranjadores da Costa Oeste.

Buddy liderou o curioso projeto “The Swinging Shepherds”, composto por quarto flautistas, sendo os outros três Bud Shank, Paul Horn e Harry Klee. O grupo deixou apenas um album gravado, “Buddy Collette's Swinging Shepherds”, para a Mercury (1958) e a sessão rítmica era composta por Bil Miller no piano, Joe Comfort no contrabaixo e Bill Richmond na bateria.

Antes disso, Buddy gravaria para a Contemporary aquele que é considerado por muitos o seu trabalho mais significativo: “Nice Day With Buddy Collette”. As sessões foram realizadas nos dias 06 e 29 de novembro de 1956 e 18 de fevereiro de 1957. No álbum, Buddy toca sax alto, tenor, flauta e clarinete, na companhia dos pianistas Don Friedman, Dick Shreve e Calvin Jackson, dos baixistas John Goodman e Leroy Vinnegar e dos bateristas Shelly Manne e Bill Dolney.

Tema composto por Collette, “A Nice Day” foi a faixa escolhida para abrir o disco.Com uma levada irresistível e um swing a toda prova, a canção tem uma estrutura melódica assobiável e um fabuloso trabalho do líder ao clarinete. O baixista Goodman faz intervenções muito consistentes e seu breve solo possui um acento de blues bem pronunciado. Friedman, ao piano, e Peters, na bateria, completam o time.

“There Will Never Be Another You”, composição de Harry Warren e Mack Gordon, recebe um arranjo mais acelerado que o habitual. O pianista Calvin Jackson, originalmente um músico mais ligado ao swing, se revela um notável discípulo de Bud Powell, com um ataque nervoso e veloz. Conduzindo o baixo, Vinnegar é sempre sinônimo de robustez e inventividade. A bordo do sax alto, Collette tem grande espaço para improvisar e sua abordagem, por vezes assimétrica e ondulante, indica um músico sempre disposto a explorar novos caminhos. Shelly Manne, com a habitual competência, pilota as baquetas.

O pianista Shreve comparece com “Minor Deviation”, um blues de tinturas Monkianas, dissonante e introspectivo. O tema cairia como uma luva em uma trilha sonora de um filme de mistério e o clarinete irrequieto do líder realça ainda mais essa atmosfera cinematográfica. Além de Collette e Shreve, o baixista Goodman e o baterista Dolney marcam presença.

Logo em seguida, o quarteto emenda uma encantadora versão de “Over The Rainbow”, clássico de Yip Harburg e Harold Arlen. Buddy exprime sua versatilidade, fazendo um ótimo uso da flauta. Sua execução é sutil e inebriante, e o som do seu instrumento constrói um diálogo adorável com o piano cheio de enlevo e doçura conduzido por Friedman. Baixo e bateria, respectivamente, a cargo de Goodman e Peters.

“Change It” é outra composição do líder, que costumava ser usada na abertura de seus concertos. Produto típico do jazz californiano, conjuga velocidade e leveza, sem a mesma urgência e fúria que caracterizam o bebop da Costa Oeste. O líder mais uma vez manipula o sax alto com maestria e uma inquestionável autoridade. Ótimas atuações de Shreve e Goodman, cujo solo prima pela virilidade e pela enorme disposição física. Na bateria, o discreto Dolney garante o aparato rítmico.

“Moten Swing”, um dos temas mais representativos da Era do Swing, recebe um arranjo ousado, que reelabora a melodia, tornando-a irreconhecível em alguns momentos. Excepcional atuação de Jackson, que faz o piano soar como um vibrafone e faz um uso formidável das notas agudas. Mais uma vez a bordo do clarinete, Collette . A performance de Manne, irrepreensível com as escovas, também é merecedora de uma audição atenta e sua interação telepática com Vinnegar é exemplar.

A bossa nova ainda nem tinha nascido, mas a interpretação de “I'll Remember April” antecipa algumas soluções harmônicas criadas por João Gilberto e Tom Jobim. Collette era muito amigo de Laurindo de Almeida e certamente absorveu alguns elementos do violonista brasileiro, imprimindo ao tema um discretíssimo tempero de samba. O líder se faz acompanhar por Shreve, Goodman e Dolney, e extrai do sax alto uma sonoridade arredondada e macia, que lembra em algumas passagens a do inimitável Paul Desmond.

As três últimas faixas são de autoria do líder. “Blues for Howard” é uma homenagem ao fotógrafo Howard Morehead, seu amigo pessoal e, como o título antecipa, é um blues em tempo médio. A clarineta ajuda a criar uma atmosfera menos densa e os discretos elementos do swing incorporados ao tema o aproximam do trabalho de um Edmond Hall. O solo de Goodman é primoroso e a performance de Shreve, que se vale da técnica do stride piano são os outros destaques. A bateria fica sob a responsabilidade de Bill Dolney.

A hipnótica “Fall Winds” conduz o ouvinte a uma viagem sombria e desafiadora. Com uma percussão tribal e uma estrutura que navega pelas ondas do jazz modal e da Third Stream – certamente por conta da influência de Lyle “Spud” Murphy – a faixa aponta os caminhos que o discípulo de Buddy, Eric Dolphy, trilharia, de maneira mais radical, no futuro. Experimentalismo que exige do ouvinte atenção e cumplicidade e que traz Collete na flauta, secundado por Shreve, Goodman e Dolney.

“Buddy Boo” traz o líder ao tenor, acompanhado por Jackson, Vinnegar e Manne, e remonta aos tempos do quinteto de Chico Hamilton. Buddy consegue amaciar a sonoridade vigorosa do tenor, mantendo a grande expressividade do seu toque. A sessão rítmica traz Vinnegar, soberbo, e os não menos inspirados Manne e Jackson. Um disco arrebatador que, como vaticina o crítico Scott Yanow, serve como “uma ótima vitrine para exibir os talentos de Collette, como executante e compositor”.

Os esforços de Collette para eliminar o racismo do meio musical lhe deram uma recompensa cujo valor simbólico é extraordinário. Em 1963, quando o negro Sidney Poitier ganhou o Oscar de melhor ator, por sua atuação no filme “Lilies of the Fields” (“Uma voz nas sombras”), Buddy estava presente na cerimônia de entrega do prêmio, tocando na orquestra da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. A seu lado outros músicos negros, como o saxofonista Bill Green e a harpista Toni Robinson-Bogart.

A carreira de educador musical se prolongaria por décadas, em instituições como a Loyola Marymount University, a Cal Poly Pomona e a Cal State Long Beach. Collette participou decisivamente do projeto “Central Avenue Sounds”, desenvolvido pela UCLA, através do seu Departamento de História, o qual busca registrar e resgatar a história do jazz na Califórnia.

Em 1995, Buddy participou do elogiado “Conversation Peace”, de Stevie Wonder. No ano seguinte, foi homenageado pela Biblioteca do Congresso e, na ocasião, regeu e uma big band que interpretou diversas de suas composições. Dentre os músicos que participaram do evento, velhos companheiros do cenário de Los Angeles, como Jackie Kelson, Britt Woodman e Chico Hamilton. O concerto foi lançado em disco em 2000, com o título “Live From The Nation’s Capital” (Bridge) e recebeu uma indicação ao Grammy do ano seguinte, na categoria “Best Large Jazz Ensemble Album”.

Buddy sofreu um sério derrame em 1998, que o deixou com sérias restrições motoras e o impediu de tocar. Não obstante, a doença não afetou sua capacidade de escrever arranjos e ele continuou a trabalhar, embora não mais pudesse tocar e naquele ano recebeu da prefeitura de Los Angeles o título de “Living Los Angeles Cultural Treasure”. Em 1999 ele produziu e dirigiu uma série de concertos em comemoração ao centésimo aniversário de nascimento de Duke Ellington. No ano seguinte, publicou sua autobiografia, intitulada “Jazz Generations: A Life in American Music and Society”, escrita com a colaboração do jornalista Steven Isoardi.

Collette faleceu no dia 19 de setembro de 2010, no Cedars-Sinai Medical Center, Los Angeles, em decorrência de uma insuficiência respiratória. Deixou uma obra que transcende as fronteiras da música e que constituiu um marco na conquista da cidadania e da igualdade por parte dos músicos negros da Califórnia. Nas palavras do escritor e jornalista Ermory Holmes II: “se eu tivesse que escolher um herói, cuja história seja emblemática da herança musical deixada pelo West Coast Jazz, tão subestimada em seu brilho, originalidade e tradição, dificilmente poderia encontrar um nome mais espetacular que o de Buddy Collette”.

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