CHARLIE PARKER, O MAIOR IMPROVISADOR DA HISTÓRIA DO JAZZ (um texto de José Domingos Raffaelli)
Música e outras coisas

CHARLIE PARKER, O MAIOR IMPROVISADOR DA HISTÓRIA DO JAZZ (um texto de José Domingos Raffaelli)




“Charlie Parker? Charlie Parker é Deus”. Essa afirmação do saxofonista Gigi Gryce, publicada na extinta revista Metronome, em 1960, dimensiona devidamente a estatura de Parker, o músico que revolucionou o jazz nos anos 40, quando criou o bebop ao lado de Dizzy Gillespie e outros luminares, dando-lhe novas formas e estruturas como nenhum outro jamais contribuiu para a chamada música dos músicos. A revolução do bebop foi total em termos de melodia, harmonia, ritmo, fraseado, timbres, sonoridade, composição, arranjo, concepção orquestral e de pequeno conjunto. Parker também introduziu no jazz a troca de quatro compassos entre os solistas – que logo tornou-se lugar-comum – e popularizou as gravações de um solista à frente de uma orquestra de cordas.

Parker foi um genial saxofonista-alto e compositor, criador de uma linguagem totalmente original, um autêntico gigante do jazz, um fenômeno musical que até hoje intriga e desafia análises, estudos e debates entre musicólogos, pesquisadores e  historiadores. Além de Parker, somente outros revolucionários como Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Art Tatum, Lester Young e John Coltrane provocaram um grande impacto sobre os demais músicos de suas respectivas épocas.

As novas gerações pouco conhecem a respeito de Parker e pouca atenção dão à sua obra, que figura entre as maiores realizações estéticas da história da música, independente de épocas, estilos ou escolas. As opiniões dos músicos, críticos e historiadores deram a Parker a quase unanimidade pelas realizações de uma carreira que não foi longa, porém suficiente para deixar a marca indelével de sua genialidade como o maior improvisador da história do jazz.

Sua trajetória foi pontilhada de realizações excepcionalmente criativas, desde os primeiros discos com a orquestra de Jay McShann, denotando um potencial raro, até tornar-se o companheiro ideal do trompetista Dizzy Gillespie ao traçarem as diretrizes da escola bebop, que deu início à Era Moderna do jazz.

A vida e obra de Parker foi contada e romanceada em livros, artigos em revistas e jornais de todo o mundo e no filme "Bird", depois da sua morte. Até então, fora do círculo jazzístico, poucos se interessavam por ele e sua obra. Tal como ocorreu com a cantora Billie Holiday, sua personalidade despertou o interesse de pessoas que pouco ou nunca ouviram seus discos, vislumbrando ganhar dinheiro explorando sua vida e obra tumultuada. Como quase sempre acontece, quanto mais escândalos amorosos, prisões, problemas existenciais e envolvimento com drogas, mais interesse despertam em certo tipo de pessoas para as quais o valor do artista fica relegado ao segundo plano. A vida de Parker foi um prato cheio, repleta de episódios envolvendo casamentos, drogas, ligações com várias mulheres, tentativa de suicídio e outras ocorrências ao gosto dos sensacionalistas. Mas, o que interessa é a sua música genial, revolucionária e única.

A obra de Parker é uma das maiores realizações estéticas da história do música do Século 20. Extremamente criativa - dos primeiros discos com a orquestra de Jay McShann até a prolífica associação com Dizzy Gillespie, com quem definiu as diretrizes da escola bebop, culminou na sua rica produção a partir dos discos com seu quinteto, especialmente entre 1947 e 1949. Sua contribuição foi das mais notáveis. Seu estilo absolutamente original foi revolucionário em todos os sentidos. O fraseado de técnica incomparável, a descontinuidade rítmica, a substituição e extensão de acordes, a riqueza melódico-harmônica das improvisações sedimentaram um estilo novo e completamente original no jazz.

Charlie Christopher Parker Jr., cujo apelido era Bird, abreviação de Yardbird, nasceu em 29 de Agosto de 1920, em Kansas City, Missouri. Seu pai abandonou o lar muito cedo, cabendo à sua mãe, Addie Parker, criá-lo e estimular seu gosto pela música. Aos 11 anos ganhou um sax-alto, mas começou tocando tuba na bandinha da sua escola. Logo ficou claro que ele possuía uma imensa vocação musical, e aos 15 anos mostrava suas habilidades no sax-alto, participando de jam sessions com músicos mais experientes que ele, embora sua presença não fosse bem-vinda. Ele referiu-se a isso com certa amargura: "Lembro da primeira vez que toquei numa jam session. Estava me saindo bem até que tentei dobrar o andamento em Body and Soul. O pessoal caiu na gargalhada e retirei-me na mesma hora. Fui para casa, chorei bastante e durante três meses não peguei no meu instrumento".

As primeiras influências de Parker foram Rudy Vallee, que também foi ator de cinema, e Buster Smith, um músico de Kansas City. Mais tarde, também foi influenciado por Lester Young, um dos maiores saxofonistas do jazz.

A habilidade instrumental de Parker possibilitou-lhe conseguir seu primeiro trabalho profissional aos 16 anos na orquestra do pianista Lawrence Keyes. A essa altura, já casado e pai, tornou-se um escravo das drogas, vício que jamais conseguiu livrar-se, levando-o à auto destruição. Depois integrou a orquestra do pianista Jay McShann, teve uma passagem pela orquestra de Harlan Leonard e atuou na banda do seu ídolo Buster Smith.

Parker resolveu tentar a sorte em New York, em 1939, quando conheceu Dizzy Gillespie. Como era desconhecido, foi-lhe difícil conseguir trabalho, ganhando a vida como lavador de pratos, mas nas horas vagas dava canjas em clubes de jazz para manter a forma. Voltou a tocar com McShann, em 1940, com quem gravou seus primeiros discos no ano seguinte: “Hootie Blues” e “Swingmatism”. Seus solos em “Sepian Bounce” e “The Jumpin' Blues”, ainda com McShann, em 1942, intrigaram sobremaneira os músicos da época.

Um grupo de pioneiros do bebop reunia-se no clube Minton's Playhouse, na Rua 118, no Harlem, em New York, em 1941, entre eles os trompetistas Dizzy Gillespie, Joe Guy e Vic Coulsen, pianistas Bud Powell, Thelonious Monk e Kenny Kersey, bateristas Kenny Clarke e Max Roach, aos quais Parker passou a unir-se compartilhando as descobertas do novo idioma desenvolvendo as novas idéias que germinaram o bebop. Entre outras, naquelas noitadas desenvolveram novas idéias em contraposição à música da Era do Swing. Durante o dia, Gillespie e Monk preparavam uma série de acordes complexos para assustar os indesejáveis que apareciam à noite para tocar. Segundo o crítico Leonard Feather, sempre que um estranho subia ao palco, o grupo tocava as frases e ritmos mais difíceis para fazer o "invasor" bater em retirada. A contribuição desses pioneiros foi decisiva para plantar as sementes do bebop, que cristalizou-se a partir de 1943/44, mas Parker e Gillespie foram os mais importantes para o desenvolvimento e a influência do estilo.

Deixando a orquestra de McShann, em 1942, Parker passou pelas fileiras de Noble Sissle, além de tocar brevemente com Andy Kirk e Cootie Williams. Em 1943 integrou a banda do pianista Earl Hines ao lado de Gillespie e Benny Harris (trompetes), Benny Green (trombone), Wardell Gray (sax-tenor) e Shadow Wilson (bateria), além dos cantores Billy Eckstine e Sarah Vaughan. Quando Eckstine formou sua orquestra, em 1944, que foi um celeiro de músicos bebop, levou Parker e Gillespie para suas fileiras, além de recrutar Fats Navarro, Miles Davis e Howard McGhee (trompetes), Benny Green e Jerry Valentine (trombones), Sonny Stitt, Dexter Gordon, Lucky Thompson, Gene Ammons e Leo Parker (saxes), John Malachi (piano), Tommy Potter (baixo) e Art Blakey (bateria). Deixando Eckstine, Parker passou a integrar alguns conjuntos da Rua 52, depois oficialmente denominada Swing Street, que abrigava muitos clubes de jazz em seus dois  quarteirões.

O ano de 1944 foi importante para Parker, que gravou quatro músicas com o guitarrista Tiny Grimes, das quais “Red Cross” e “Tiny’s Tempo” abrigam o embrião do seu estilo pioneiro. A essa altura, ele e Gillespie tocavam juntos constantemente, causando verdadeiro furor pelas suas inúmeras inovações. Em Fevereiro e Maio de 1945, eles gravaram para o selo Guild (mais tarde reeditadas pela Savoy) as faixas que sedimentaram o bebop: “Groovin' High”, “Dizzy Atmosphere”, “All the Things You Are”, “Hot House”, “Salt Peanuts” e “Shaw Nuff”, ainda que as seções rítmicas não tivessem afinidades com suas inovações. Uma faixa complementar – “Lover Man” - foi o veículo para Sarah Vaughan, que também despontava como uma das grandes vozes do jazz.

Anteriormente, em Janeiro de 1945, Parker e Gillespie participaram de uma sessão liderada pelo pianista Clyde Hart, com o cantor Rubberleg Williams, Trummy Young (trombone), Don Byas (sax-tenor) e outros; Parker e Gillespie tocam pequenos solos nos quais seus lampejos de gênio aparecem em doses homeopáticas. Em Maio, eles participaram de gravações com Sarah Vaughan para o selo Continental, e, no mês seguinte, de uma sessão com o vibrafonista Red Norvo para a Comet, com solos cintilantes de Parker e Gillespie em “Slam Slam Blues” e “Congo Blues”, na companhia de Teddy Wilson (piano), Flip Phillips (sax-tenor), Slam Stewart (baixo) e Specs Powell (bateria), músicos da Era do Swing. Todavia, foram os discos para a Guild que definiram a temática bebop, estabelecendo as regras fundamentais para a improvisação do então novo jazz. Esses discos tiveram impacto fulminante sobre a confraria jazzística, especialmente os jovens músicos, que viam em Parker e Gillespie os ídolos e arautos do bebop que desencadearam as inovações sonora, melódica, harmônica e rítmica. Nascia uma nova era. Jamais o jazz fora transfigurado em todos os seus elementos e aspectos.

A partir desses discos, a influência de Parker e Gillespie alastrou-se ainda mais. Foi quando Parker decidiu formar seu próprio quinteto com Miles Davis, Curley Russell (baixo), Max Roach e alguns músicos revezando-se no piano.

Em 26 de novembro de 1945, foi perpetuada a sessão definitiva do bebop, produzida por Herman Lubinsky para a Savoy. A formação do quinteto nessa sessão suscitou inúmeras controvérsias. Tudo ficou esclarecido quando o pianista Sadik Hakim (então usando seu verdadeiro nome Argonne Thornton) declarou ter participado da sessão. Foram perpetuados os clássicos “Ko-Ko”, “Now's the Time” e “Billie's Bounce”, além de “Thriving From A Riff”, “Warming Up A Riff” e “Meandering”. A fabulosa atuação de Parker selou definitivamente sua influência. Raras vezes sua força inventiva foi tão prolífica. Nos três choruses de “Now’s the Time”, um blues de 12 compassos, Parker toca um dos três ou quatro melhores solos de blues de toda história do jazz, que foi transcrito várias vezes para seções de saxofones completas, pois são considerados perfeitos em construção, inspiração e execução, tão perfeitos quanto a falibilidade humana pode ser. “Billie's Bounce”, outro blues, possui uma linha melódica intrincada de difícil execução, cujas características rítmicas são altamente sincopadas, mas que ele domina com espantosa facilidade.

“Ko-Ko”, baseado nas harmonias de “Cherokee”, é virtualmente inenarrável porque seu solo de 127 compassos desafia a análise: a descontinuidade rítmica, a fertilidade imaginativa pela sucessão avassaladora de idéias num andamento supersônico, as acentuações deslocadas precisamente colocadas e a cascata de notas alinhavadas com sua proverbial lógica deram à peça a inequívoca conotação de uma suprema obra-prima. “Ko-Ko” inscreveu-se ao lado de “West End Blues” (de Louis Armstrong), “Body and Soul” (de Coleman Hawkins), “Concerto for Cootie” (de Duke Ellington), “These Foolish Things” e “I Can’t Get Started” (de Lester Young) e “Round Midnight” (de Thelonious Monk) entre as maiores realizações da história do jazz de todos os tempos.

Devido às deficiências da execução de Miles Davis, desprovido da técnica indispensável exigida para um músico bebop, além da sua embocadura deficiente, sem conseguir tocar a dificílima linha melódica de “Ko-Ko”, obrigou Dizzy Gillespie (que estava no estúdio) a executá-la em uníssono com Parker.

A partir dessas gravações, a importância de Parker foi definitivamente estabelecida, mas seus problemas pessoais e a indisciplina da sua vida particular, inteiramente oposta à sua rígida disciplina musical, foram minando sua saúde. A vida desregrada, o abuso do álcool, as noitadas em companhia de mulheres e toda sorte de extravagâncias minaram suas resistências, acumulando inexoravelmente um desgaste que trouxe conseqüências tragicamente desastrosas.

Em dezembro de 1945, Parker foi para a Califórnia com o sexteto de Dizzy Gillespie, mas a receptividade à sua música foi mínima. Desanimados, Parker e Gillespie conseguiram algum trabalho com o grupo Jazz At the Philarmonic, mas o trompetista logo regressou a New York. Parker ficou em Los Angeles e, em Março de 1946, iniciou uma associação com Ross Russell, dono da gravadora Dial, para a qual gravou uma série de discos históricos com Miles Davis, Lucky Thompson (sax-tenor), Dodo Marmarosa (piano) e outros, originando jóias do quilate de “A Night in Tunisia”, “Moose the Mooche”, “Ornithology” e “Yardbird Suíte”; as três últimas, de autoria de Parker, tornaram-se clássicas.

Em “A Night in Tunisia”, Parker realizou o “impossível” no primeiro break do tema, inserindo uma torrente de 64 notas em apenas quatro compassos, colocadas com total sentido musical, abrigando a centelha fulgurante do seu gênio; como a gravação foi rejeitada, Parker lamentou-se: "Nunca mais tocarei aquele break de quatro compassos". Por esse motivo, e reconhecendo o que Parker fizera, Russell editou aqueles quatro compassos separadamente com o título "Famous Alto Break".

Ainda em Los Angeles, Parker organizou um quinteto com o trompetista Howard McGhee, gravando outra sessão para a Dial, em Julho de 1946. Durante a sessão, Parker teve um colapso nervoso logo depois de gravar “Lover Man”, sendo removido para o Hospital Camarillo, onde ficou internado sete meses. O solo de Parker em “Lover Man” é o retrato de um homem doente, inteiramente perturbado. Segundo alguns historiadores, Parker jamais perdoou Russell por haver editado esse disco.

Liberado do hospital em perfeita forma física, otimista e de bem com a vida, Parker estava preparado para novas façanhas. Voltou ao estúdio para gravar com o trio do pianista Erroll Garner, em 19 de Fevereiro de 1947, nascendo o clássico “Cool Blues”; apesar das diferenças de estilo entre Parker e Garner, o entendimento entre eles foi notável. Por insistência de Parker, mas contra a vontade de Russell, no mesmo dia um cantor chamado Earl Coleman gravou duas músicas com eles: “This Is Always” e “Dark Shadows” (o solo de Parker neste último foi transcrito para a seção de saxes da orquestra de Woody Herman no arranjo de “I’ve Got News For You”). Por ironia do destino, “This Is Always” foi um sucesso instantâneo, rendendo bom dinheiro a Parker, Garner e Coleman.

Uma semana depois, em 26 de Fevereiro de 1947, Parker voltou ao estúdio, desta vez com um hepteto extraordinário integrado por McGhee, Wardell Gray (sax-tenor), Dodo Marmarosa, Barney Kessel (guitarra), Red Callender (baixo) e Don Lamond (bateria). Dos quatro números, “Relaxin' At Camarillo” (alusão ao hospital onde foi internado), um blues ritmicamente intrincado, tornou-se outro clássico de Parker. O baterista Kenny Clarke assim o definiu: "Relaxin' At Camarillo” diz tudo, mostra exatamente como Bird sentia os blues e a original colocação das suas acentuações rítmicas provam que ele conhece mais sobre os blues do que qualquer outro músico".

Mesmo com o apoio de Ross Russell e dos músicos com quem tocava, Parker queria regressar a New York. Logo juntou algum dinheiro e voltou ao seu habitat musical formando o quinteto que ficou para a história do jazz com Miles Davis (trompete), Duke Jordan (piano), Tommy Potter (baixo) e Max Roach (bateria). Os solos superiormente construídos de Parker e a afirmação de Duke Jordan como pianista original, criando introduções que foram exaustivamente copiadas e improvisações com maravilhosas frases melódicas altamente inventivas, aliadas a uma execução repleta de swing, embora sempre bastante relax, além dos progressos de Miles Davis em relação a dois anos antes, mais o apoio rítmico impecável de Tommy Potter e Max Roach, contribuiram para o quinteto gravar uma legião de obras-primas, ganhando um status que poucos combos alcançaram em toda a história do jazz.

Entre outras, ficaram para a posteridade “Donna Lee”, “Chasing the Bird”, “Cheryl”, “Dewey Square”, “Bird of Paradise”, “Scrapple from the Apple” (com solos soberbos de Parker e Duke Jordan), “Embraceable You” (obra maestra de Parker em balada, cujo solo supera em beleza e graça melódica a célebre composição de George Gershwin), “My Old Flame”, “Out of Nowhere” e “Don’t Blame Me”. Nas quatro últimas, Miles Davis preconiza uma nova direção pela frieza das suas linhas melódicas improvisadas, embora extremamente líricas, mais tarde definida nas gravações da série The Birth of the Cool, que estabeleceram a linguagem do cool jazz. Outras obras importantes foram “Blue Bird”, “Parker’s Mood”, “Steeplechase”, “Half Nelson” e “Milestones”; nas duas últimas, originalmente editadas em nome de Miles Davis, Parker toca sax-tenor. Em algumas gravações desse período, foi agregado ao quinteto o trombonista J. J. Johnson.

O ano de 1948 trouxe mudanças para o grupo. Jordan deixou o quinteto no início do ano, sendo substituído por Bud Powell e John Lewis em algumas sessões. No fim do ano, Miles Davis decide tentar a sorte como líder, sendo substituído por Kenny Dorham, Max Roach deu lugar a Roy Haynes e Al Haig ocupou a vaga de Jordan. Parker tocou com essa formação no I Salon du Jazz, em Paris, em 1949, mas logo Red Rodney substituiu Dorham.

Contratado pelo empresário e produtor Norman Granz, Parker gravou uma série de canções standards acompanhado por uma seção de cordas, um contexto que foi copiado à exaustão, cujos discos alcançaram surpreendente sucesso de vendas. Ainda em 1949 foi fundado o clube Birdland, na Rua 52, em sua homenagem, onde ele tocou com freqüência, tornando-se o grande point jazzístico de New York. No ano seguinte, Parker apresentou-se nos países escandinavos e no seu regresso grava outra sessão acompanhado por cordas, cujo sucesso tornou seu nome conhecido por um público alheio ao jazz.

Parker decide começar a segunda metade do Século XX sem liderar um conjunto regular. Sua saúde fica mais abalada, especialmente após o falecimento de sua filha Kim, de dois anos, entregando-se novamente à bebida e aos tóxicos. Ele realizou turnês pelos Estados Unidos, tocando com seções rítmicas das cidades onde se apresentava, mas sempre convocando Duke Jordan, Tommy Potter e Roy Haynes quando tocava em New York.

Em Maio de 1953, o baixista Charles Mingus forma um quinteto de astros para tocar no Massey Hall, em Toronto, no Canadá, reunindo Parker, Gillespie, Bud Powell e Max Roach. O histórico concerto foi brilhante, com todos em forma excepcional. Lançado originalmente pelo selo Debut, foi reeditado inúmeras vezes, marcando o último encontro de Parker e Gillespie em disco. Parece que os dois compadres musicais sabiam ser a última vez que gravavam juntos, deixando para a posteridade atuações  inesquecível. Segundo a grande maioria de conhecedores, Jazz at the Massey Hall é um dos 20 discos para a ilha deserta. Ainda em 1953, Parker gravou para a Prestige tocando sax-tenor ao lado de Miles Davis e Sonny Rollins, este iniciando sua marcha para o estrelato.

Em 1954, um pouco mais animado, Parker tentava levar uma vida normal, porém seu estado físico era precário. Em Julho realizou-se o primeiro Festival de Jazz de Newport (mais tarde sucessivamente denominado Newport-New York Jazz Festival, Kool Jazz Festival e finalmente JVC Jazz Festival), mas ele não foi convidado, uma omissão imperdoável por parte dos organizadores. Enquanto isso, suas apresentações no Birdland eram o ponto alto da vida jazzística nova-iorquina.

Em Agosto daquele ano ouvi Charlie Parker no Birdland, e dessas noites guardo a mais grata das recordações. Chegando a New York, soube que dois dias depois ele iniciaria uma semana no Birdland, dividindo a programação com o quinteto de Dizzy Gillespie (integrado por Hank Mobley no sax-tenor, Wade Legge no piano, Lou Hackney no baixo e Charlie Persip na bateria) e com a cantora Dinah Washington (com Junior Mance no piano, Keeter Betts no baixo e Ed Thigpen na bateria). Foi com certa apreensão que desci as escadas do Birdland, pois lera sobre sua propalada decadência. Após os sets de Gillespie e Dinah Washington, aguardava ansioso o momento de ouvir o grande monstro sagrado do jazz moderno, acompanhado por Duke Jordan, Tommy Potter e Roy Haynes e uma seção de cordas.

Recebido calorosamente pelo público, recordo-me que Bird tinha excelente aspecto. Bastante sorridente e alegre, brincava com a platéia, que não lhe regateava aplausos. Era evidente sua satisfação pela acolhida que recebia. Quando começou a tocar, imediatamente notei que ele estava na plena posse das suas faculdades criativas com a fluência, continuidade e inventividade que marcou o seu gênio. Entretanto, mesmo com a seção de cordas fornecendo o background ideal para aquele contexto, não era exatamente o que o público queria. No início do segundo set, percebendo que o público não aprovava as cordas, ele interrompeu “What Is This Thing Called Love” para indagar se desejavam ouví-lo somente com a seção rítmica. Uma vibração indescritível tomou conta da platéia e imediatamente Bird dispensou as cordas, atacando em andamento avassalador sua composição “Kim”, deixando atônitos os que acreditavam na sua decadência. Seguiram-se, entre muitos outros, “Scrapple From the Apple”, “Au Privave”, “The Song Is You” (em andamento supersônico), “Red Cross”, “Bird Lore”, culminando com o inenarrável “She Rote” (baseado nas harmonias de “Beyond the Blue Horizon”), com Bird a todo vapor num andamento talvez ainda mais rápido que o de “Ko-Ko”, gravado para a Savoy). Em estado de graça, eu me deliciava com os vôos inacreditáveis de Parker, em forma exuberante.

Não era para menos. Seus discos não passavam dos 3 minutos de duração, mas ao vivo, as interpretações se estendiam entre 8 e 12 minutos. Em vários números, ele e Roy Haynes trocaram infindáveis quatro compassos repletos de idéias e interação mágica. Nunca ouvira nada parecido e o público gritava mais alto a cada troca de quatro compassos. O impacto dessa primeira noite foi tão grande que, ao regressar ao hotel sob o efeito daquela experiência única e fantástica, não consegui dormir. Aquela e as cinco noites seguintes ficaram gravadas para sempre na minha memória. Foram os melhores e mais inolvidáveis momentos da minha vida de jazzófilo inveterado, e, acreditem, ouvi centenas dos melhores músicos de jazz do mundo, mas nenhum outro igualou-se a Parker. Naquela semana, eu era o primeiro a chegar ao Birdland, ocupando um cadeira na primeira fila em frente ao palco. Ao chegar para o que seria a noite de encerramento daquela semana memorável, fui informado que Parker tentara o suicídio injetando iodo na veia e estava hospitalizado em estado crítico. Chocado e muito triste, voltei ao hotel. Nunca mais o vi.

Parker reapareceu num concerto no Town Hall, em 30 de Outubro de 1954. Gravou pela última vez, em Dezembro daquele ano, uma sessão com músicas de Cole Porter. Essas gravações inspiraram Norman Granz a realizar a série de songbooks com Ella Fitzgerald interpretando canções dos grandes compositores americanos. Ele fez sua última apresentação no Birdland em 5 de Março de 1955.

Parker morreu em 12 de Março de 1955 enquanto assistia televisão no apartamento da Baronesa Pannonica de Koenigswarter, vitima de congestão e pneumonia, segundo a autópsia. Tinha 34 anos, mas o médico que assinou seu atestado de óbito declarou que "o falecido teria presumivelmente 53 anos". Sua vida agitada, febril, repleta de angústia e tragédia foi romanceada pelo escritor Elliott Grennard num conto intitulado "Sparrow's Last Jump". Nos anos 80, sua vida foi focalizada no filme "Bird", em que muitos fatos foram aleatoriamente fantasiados, como acontece na maioria das produções de Hollywood.

Parker casou e viveu com várias mulheres, teve diversos filhos, foi amigo dos seus amigos, mas não ganhou dinheiro. A época dos festivais ainda não começara e ele não se beneficiou da publicidade e da projeção que esses eventos proporcionam. Tudo que ganhava ia embora com bebidas, mulheres e drogas.

A contribuição de Parker ao jazz foi das mais notáveis. Seu estilo foi revolucionário em todos os sentidos; sua técnica, incomparável; suas idéias, inesgotáveis. Suas frases vertiginosas, a descontinuidade rítmica, a substituição e extensão dos acordes e a riqueza melódico-harmônica das suas improvisações sedimentaram uma nova linguagem rica e original. Sua concepção ousada abriu as portas para as inovações que ele criou. Sua execução nos andamentos rápidos incluía acordes de passagem disseminados entre fragmentos melódicos. Nas baladas incluía frases de notas abundantes com sua harmonia implícita, realizando a sublimação da melodia.

Sua influência sobre milhares de músicos e seus discípulos - do obscuro Dean Benedetti (que o seguiu por todos os Estados Unidos gravando suas apresentações) aos mais famosos, entre eles Sonny Stitt, Jackie McLean, Cannonball Adderley e Phil Woods, além dos cinco saxofonistas que organizaram o conjunto Supersax com o objetivo de recriarem a sua música e os seus solos – espargiu a sua grandeza.

O jazz percorreu longos caminhos desde a morte de Charlie Parker, conheceu outra revolução - a do free jazz -, cambaleou nos anos 60 com o advento do rock - nascendo uma inexpressiva fusão híbrida do chamado indevidamente jazz-rock (com muito de rock e quase nada de jazz), que nada acrescentou em termos artísticos -, mas revigorou-se a partir da década de 80 com o renascimento da sua linguagem mais autêntica, atravessando desde então uma fase de amplo fastio em todo o mundo. Mas, a despeito de haver mudado tanto desde os tempos de Parker, sua influência continua inspirando músicos das novas gerações, e sua música é ouvida em todo o mundo. Até hoje o jazz não conheceu um músico que o tenha superado ou sequer igualado.

Dizzy Gillespie declarou, em 1963: "Bird era como meu irmão gêmeo. É um gênio do nosso século. No futuro, será citado ao lado de Beethoven, Bach e outros como um dos melhores músicos de todos os tempos". O saxofonista Ornette Coleman, um dos arautos do free jazz, declarou: "Penso que somente a cada 100 anos nasce um gênio como Charlie Parker. Ele foi o melhor de todos".

O crítico Ben Caldwell escreveu em 1990: "Não existe nada melhor no jazz do que foi tocado pelos inovadores da revolução do bebop. Até que um saxofonista supere Charlie Parker, um trompetista supere Dizzy Gillespie ou um pianista supere Bud Powell, nada melhor existirá no jazz".

E eu assino embaixo.

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José Domingos Raffaelli (crítico, professor, escritor e autor de mais de 35.000 artigos sobre jazz e música instrumental em jornais e revistas nacionais e estrangeiros).

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É com muita honra que o Jazz + Bossa publica o texto acima, escrito pelo mais importante crítico de jazz em atividade no país. Sobre José Domingos Raffaelli, qualquer coisa que se diga poderá resvalar no óbvio: sua importância para a evolução do jazz no Brasil é capital. Não apenas por seus escritos e relatos. Não apenas porque assistiu, ao vivo, a todos os grandes nomes do jazz. Não apenas porque seu conhecimento do idioma jazzístico é virtualmente ilimitado. Mas, sobretudo, por causa do grande ser humano que é:  generoso, bem-humorado e dono de uma simplicidade comovente, Raffaelli é querido pelo meio musical como poucos.

Sua postura serena faz com que todos à sua volta prestem a mais absoluta atenção a tudo quanto diga. Raffaelli se assemelha a um homem da Renascença ou a um filósofo grego, a distribuir pelo mundo afora doses generosas de candura, humildade e conhecimento. Conhecimento sobre os mistérios do jazz... Conhecimento sobre os mistérios da vida... Ler seus textos ou conversar com ele - como pude fazê-lo na semana passada - é uma experiência marcante e duradoura. Jamais esquecerei a sua elegância ao falar, a sua memória prodigiosa, a sua absoluta cordialidade no trato com as pessoas. 

A meu lado, naquela noite encantada, meus amigos Sérgio Sônico e Maurício Einhorn. Juntaram-se a nos, ainda, a cantora Áurea Martins (que tinha outros compromissos e não pôde ficar muito tempo) e meus queridos tios Têca e Faria (que chegaram depois mas que puderam se emocionar com as palavras do Mestre Raffaelli). Por tudo o quanto ele nos tem dado ao longo de sua brilhante trajetória, José Domingos Raffaelli faz parte daquele seletíssimo grupo de pessoas que, pelo simples fato de existir torna melhor esse mundo tão cheio de violência, ganância e insensibilidade. Parafraseando Tom e Vinícius: Mestre, se todos fossem iguais a você, que maravilha seria viver...

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