O baterista Chico Hamilton possui uma longa folha de ótimos serviços prestados ao jazz. Surgido nos anos 50, pode ser considerado um dos principais nomes do chamado West Coast Jazz, tendo participado do histórico quarteto pienoless de Gerry Mulligan, além de ter liderado alguns dos melhores pequenos grupos a atuar no cenário californiano. Todavia, nomes como Shelly Manne ou Stan Levey são bem mais lembrados, quando se fala no jazz feito na Costa Oeste.
Hamilton também foi um emérito descobridor de talentos e, nesse quesito, pode se orgulhar de ser um dos poucos músicos a rivalizar com Art Blakey. Passaram por seus conjuntos, em início de carreira, músicos hoje tidos como monstros sagrados, como Eric Dolphy, Jim Hall, Charles Lloyd, Gabor Szabo, Ron Carter, Steve Turre, Larry Coryell, John Pisano, Arthur Blythe, Paul Horn, Dennis Budimir e muitos outros.
Não obstante, embora tenha vivenciado todos os momentos mais importantes do jazz, a partir dos anos 30 até hoje, e testemunhado o surgimento e a evolução de muitas escolas e tendências, como o bebop, o cool, o West Coast, o free ou o fusion, dificilmente seu nome é mencionado como um dos grandes nomes do seu instrumento. As pessoas geralmente se referem a Art Blakey, Kenny Clarke ou Max Roach como as principais forças motrizes da percussão jazzística, mas são poucos os que se lembram de Hamilton.
As décadas de 50 e 60 também consagraram uma espécie bastante singular de bateristas, aqueles dotados de enorme vigor físico e de uma energia vital aparentemente inesgotável. Enquadram-se nesse rol os explosivos Philly Joe Jones e Elvin Jones, que mandaram para o quinto dos infernos a antiga concepção de que os bateristas deveriam recolher-se “com humildade e senso de conjunto à sua significantíssima insignificância, que equivalia a nada mais nada menos do que a grande honra de manter acesa a sagrada e essencial chama do ritmo”.
Hamilton representa a antítese dos bateristas vulcânicos, e embora sua abordagem seja, no mais das vezes, refinada e charmosa, é absolutamente impregnada de swing e dinamismo. Dono de uma trajetória peculiar e querido como poucos no meio jazzístico, ele nasceu no dia 21 de setembro de 1921, com o portentoso nome de Foreststorn Hamilton, em Los Angeles, Califórnia.
Filho de Jesse e Pearl Lee Hamilton, o garoto cresceu em um ambiente extremamente propício às artes, pois embora fossem metodistas praticantes, os pais sempre incentivaram as inclinações artísticas dos filhos. Um de seus irmãos, Bernard, se tornou ator e obteve alguma notoriedade no cinema, onde atuou ao lado de Frank Sinatra e Spencer Tracey (no filme “Devil at Four O'Clock, de 1961 e que no Brasil recebeu o título de “A hora do diabo”) e na TV (participou da série “Starksy & Hutch”).
Chico, apelido ganho ainda na infância, desde cedo mostrou interesse pela música e seu contato com o jazz não poderia ter sido mais arrebatador: aos oito anos, levado pela mãe, assistiu, extasiado, a uma apresentação da orquestra de Duke Ellington. Na escola, seu primeiro instrumento foi o clerinete, mas em pouco tempo, por influência do irmão mais velho Tommy, decidiu-se pela bateria. Seus primeiros ídolos foram Lionel Hampton e Jo Jones, a usina rítmica por trás da orquestra de Count Basie.
Alguns de seus colegas da época se tornariam músicos renomados, como o trompetista Ernie Royal, o baixista Charles Mingus, os saxofonistas Dexter Gordon e Illinois Jacquet e o multiinstrumentista Buddy Collette. Com eles, inclusive, Hamilton montou o seu primeiro grupo, que costumava tocar em festas e bailes de formatura. Os ensaios ocorriam na casa do trombonista da banda, James Henry, irmão da futura esposa do baterista, Helen. Aliás, o casamento, que ocorreria em 1943, foi animado por ninguém menos que Nat King Cole, então um dos mais aclamado pianistas do jazz e grande amigo de Hamilton.
Os ensaios e apresentações foram afiando os talentos do baterista, que se orgulha de ter tocado, aos 14 anos, com o ídolo Count Basie, durante uma excursão da orquestra deste à Califórnia. Aos 18, teve a honra de acompanhar outro ídolo de infância, o maestro Duke Ellington. Na época, Hamilton já dava os primeiros passos na carreira profissional, tocando em grupos liderados por Lionel Hampton, Lorenzo Flennoy e Slim Gaillard, com quem entrou, pela primeira vez, em um estúdio de gravação, em 1941.
Naquele mesmo ano, Chico participou, brevemente, de dois filmes produzidos em Hollywood. Em “You'll Never Get Rich”, aparece nas telas como membro da orquestra que acompanha Fred Astaire, e em “Road to Bali”, estrelado por Bing Crosby e Bob Hope, atuou apenas na retaguarda, como membro da banda responsável pela trilha sonora. Em 1942, foi recrutado pelo exército e lá ficou até 1946. Durante o período nas forças armadas, pôde estudar com Jo Jones e Billy Exner.
Logo após deixar a corporação, travou o primeiro contato com o bebop. O baterista fazia parte da banda de Floyd Ray que durante uma temporada em Oakland, na Califórnia, fazia a abertura para a orquestra de Billy Eckstine, onde tocava Art Blakey. A sonoridade de Blakey era algo completamente novo e desconhecido para Hamilton, que ficou fascinado. Além disso, a orquestra de Eckstine era replete de grandes nomes, como o seu velho amigo Dexter Gordon e um saxofonista de sopro devastador chamado Gene Ammons.
No dia seguinte, Hamilton, que também tocava com outra atração fixa do programa, o Will Mastin Trio (onde pontuava o futuro astro Sammy Davis Jr.), tentou pôr em prática as lições que havia aprendido na noite anterior com Blakey e tocou tão alto e tão forte que o chefe da trupe, Old Man Mastin, perguntou: “Que diabo você está fazendo, rapaz”? Após o show, Mastin chamou Hamilton ao camarim e lhe fez mais uma pergunta, agora em tom de conselho: “Meu filho, você não vai querer tocar como aquele maluco, vai”?
De qualquer forma, a influência de Blakey se tornou definitiva e Chico foi, progressivamente, adicionando à sua forma de tocar as inovações rítmicas possibilitadas pelo bebop. Após um breve período com a cantora Helen Humes, Chico foi surpreendido pelo convite de Lester Young para acompanhá-lo, sendo que seu trabalho pode ser conferido no álbum “The Complete Aladdin Sessions”. Sobre Pres, as palavras do baterista são sempre muito carinhosas: “Como pessoa, ele era maravilhoso, não era capaz de machucar uma mosca. Nunca xingava, não falava palavrão, era um verdadeiro gentleman”.
Em 1947, Chico fez parte da orquestra de Buddy Tate e trabalhou como baterista fixo dos clubes Capri e Billy Berg's (onde , em Los Angeles. Em 1949, após um curto período integrando o trio do pianista Gerald Wiggins, o baterista foi contratado pela cantora Lena Horne e com ela permaneceu por cerca de quatro anos, com direito a diversas excursões pela Europa. O trabalho com Horne obrigou-o a se mudar para Nova Iorque e um dos seus primeiros amigos ali foi Miles Davis, com quem passava horas conversando sobre carros ou praticando boxe.
Apesar da amizade profunda, os dois jamais gravariam juntos, mas até hoje Hamilton reserva ao trompetista uma enorme deferência: “Falam um monte de bobagem sobre ele, mas o Miles ajudou muita gente. Isso ninguém fala. Mas também não é preciso, sua música é amada no mundo inteiro e isso basta”. De qualquer forma, foi Hamilton quem sugeriu a Davis o nome Ron Carter, que seria o baixista oficial de seu célebre quinteto dos anos 60.
O período com Lena Horne é recheado de histórias pitorescas. Durante uma excursão à Europa, os jornais da França noticiaram que a cantora se apresentaria acompanhada de um baterista francês. Só que, ao chegar no país, a recepção não foi das mais calorosas. Bem-humorado, ele relembra: “Para todo lugar que nós íamos eu tinha que andar com o meu passaporte na mão. Na França pensavam que eu era da Martinica e os franceses odeiam os habitantes de lá. Então nós fomos para a Inglaterra e lá pensaram que eu era um baterista indiano, só que os ingleses odeiam os indianos. Na Europa eu sempre parecia ser de um lugar que as pessoas odiavam”.
Em Nova Iorque, tornou-se um dos mais requisitados acompanhantes de cantores e cantoras. Tony Bennett, Billy Eckstine, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Nat King Cole, Sammy Davis Jr., Billie Holiday foram alguns dos astros com quem Hamilton tocou. Em 1952, saudoso da cidade natal, ele voltou a morar em Los Angeles, a convite do bandleader Charlie Barnet. No ano seguinte, montou uma grupo fabuloso, ao lado do pianista Hampton Hawes, que além de amigo próximo era casado com uma prima da sua mulher, o baixista Curtis Counce e o saxofonista Wardell Gray, mas a banda, infelizmente, não obteve maior reconhecimento.
Na ocasião, Chico foi um dos primeiros a apoiar o saxofonista Gerry Mulligan, que estava em uma fase pessoal e profissional das mais tenebrosas. Com a ajuda do baterista, Gerry superou – pelo menos em parte – o problema com as drogas e criou um dos pequenos grupos mais inventivos e empolgantes dos anos 50, o célebre quarteto sem piano. O saxofonista chamou, além do amigo Hamilton, o trompetista Chet Baker e o baixista Bob Withlock e causou furor entre público e crítica, com apresentações sempre lotadas e diversas gravações para a Pacific Jazz.
A experiência com Mulligan estimulou Hamilton a montar seus próprios grupos e em 1955 o baterista montou um combo que, à sua maneira, também era bastante inovador. A começar pela formação pouco usual, com Jim Hall na guitarra, Buddy Collette nos sopros, o violoncelista Fred Katz e o contrabaixista Carson Smith. Na verdade, ao invés do violoncelo, o líder gostaria de contar com uma trompa em seu grupo, mas o músico sondado, John Graas, não estava disponível.
Após algumas conversas com Katz, com quem já havia tocado diversas vezes, Chico resolveu adicionar o instrumento ao seu quinteto. O grupo fez uma série de álbuns para a Pacific e era um dos mais respeitados da Costa Oeste. Logo nos primeiros concertos, a resposta do público foi das mais calorosas e uma temporada prevista para durar apenas uma semana, no clube The Strollers, em Long Beach, acabou se estendendo por três meses.
Em 1957 Hamilton vivenciou uma nova experiência no cinema, ao trabalhar na trilha sonora do filme “Sweet Smell of Success”, composta por Elmer Bernstein. A película era estrelada por Martin Milner, que vive um guitarrista acusado de tráfico de entorpecentes, e Burt Lancaster. O baterista e seu grupo fazem uma rápida ponta no filme, sendo que nas cenas em que Milner aparece tocando guitarra, quem efetivamente toca o instrumento é John Pisano, que havia substituído Jim Hall no quinteto do baterista.
Com a saída de Collette, em 1956, Hamilton chamou para o seu lugar o talentoso Paul Horn, que em 1958 sairia para a carreira solo. Algum tempo depois, o saxofonista e flautista Horn foi substituído por um talentoso – embora, na época, já mal compreendido – multiinstrumentista chamado Eric Dolphy, a quem foi apresentado por seu irmão Bernie.
Dono de uma sonoridade absolutamente pessoal, Dolphy se profissionalizou no final dos anos 40 e passou uma temporada no exército, mas até então não havia feito nenhuma gravação, seja como acompanhante e muito menos como líder. Até aquele momento havia tido poucas chances de mostrar seu talento e marcava passo em grupos obscuros da região de Los Angeles. A primeira grande oportunidade veio no quinteto de Hamilton e inclui uma participação no elogiado “With Strings Attached”, de 1958.
Contudo, o álbum que melhor ilustra a excelência da parceria, curiosamente, passou mais de 30 anos para chegar às prateleiras das lojas. A história desse disco é das mais surpreendentes e intrigantes, pois durante muito tempo supôs-se que esse disco, intitulado “The Original Ellington Suite”, estivesse irremediavelmente perdido. A gravação foi feita para a Pacific, no dia 22 de agosto de 1958, mas por um desses mistérios insondáveis, o disco jamais foi lançado.
Além do líder e de Dolphy, que se reveza no sax alto, flauta e clarinete, o quinteto era, então, integrado por Nate Gershwin no violoncelo, John Pisano na guitarra e Hal Gaylor no contrabaixo. Alguns críticos acreditam que o produtor Richard Bock, sócio da gravadora, não gostou do resultado final, especialmente por conta das ousadias harmônicas engendradas por Dolphy e simplesmente arquivou o projeto.
De qualquer forma, no ano seguinte Hamilton voltaria a gravar outro tributo à obra de Duke Ellington, denominado apenas “Ellington Suite”, também para a Pacific, no qual o baterista reúne os integrantes do seu quinteto original – Buddy Collette, Jim Hall, Fred Katz e Carson Smith – além de Paul Horn, que dobra no sax alto e na flauta. Mas o disco gravado com Dolphy permaneceu no limbo.
E assim ficaria por toda a eternidade e além, não fosse a sorte e a argúcia de um jazzófilo inglês chamado John Cobley. Colecionador compulsivo, em 1995 ele estava em um sebo garimpando preciosidades, quando topou com um LP chamado “Ellington Suite”. Ao chegar em casa, deparou-se com a seguinte inscrição no selo do álbum: “Unreleased takes – Chico Hamilton Ellington Suíte – 8-22-58”.
Cobley imaginou que se tratasse de takes alternativos do álbum “Ellington Suite” gravados pelo quinteto original e, depois de algum tempo, esqueceu o assunto. Alguns anos mais tarde, ao ouvir uma gravação do quinteto com Dolphy, lançada em uma coletânea da Mosaic, teve um estalo. Consultou o amigo Terry Finch, outro colecionador, que não teve dúvidas: o sax alto era mesmo de Dolphy. Somente então o nosso garimpeiro percebeu que estava diante de uma raridade absoluta.
Ele então entrou em contato com o biógrafo de Dolphy, Vladmir Simosko, e com o próprio Chico Hamilton, que cuidou de esclarecer todo o mistério. Também contatou o produtor Michael Cuscuna, que desde meados dos anos 70 vem se dedicando a restaurar a memória do jazz, estando à frente de inúmeros relançamentos, em cd, de álbuns históricos da Blue Note. Cuscuna tomou um susto com o que viu e ouviu: um disco gravado há mais de 30 anos e que havia permanecido inédito por todo esse tempo.
Ele não hesitou um milésimo de segundo e, pouco tempo depois, o álbum ganhava uma luxuosa versão em cd (pela velha Pacific, que hoje faz parte da poderosa EMI), com direito a transposição, para o formato digital, a cargo de Malcolm Addey, o que garantiu ao disco uma sonoridade cristalina e sem qualquer imperfeição. Como se fosse, de fato, uma suíte, não há intervalos entre as músicas, que se sucedem como se tivessem sido gravadas em um único take.
O resultado é um dos mais encantadores álbuns dos anos 50 e que conserva tamanha vitalidade e frescor que parece ter sido gravado ontem. O repertório é nada menos que magistral, com uma soberba abertura a cargo de “In A Mellow Tone”, na qual Dolphy manuseia a flauta com dolência e sensibilidade. A guitarra hipnótica de Pisano e a delicada percussão de Hamilton, um verdadeiro ás quando se trata de empunhar as escovas, tornam a audição das mais prazerosas. Uma interpretação refinada de um dos temas mais swingantes do maestro.
Não há palavras para descrever a beleza e a emotividade com que Dolphy extrai as notas do seu saxofone na fabulosa versão de “In A Sentimental Mood”. O diálogo travado pelo saxofonista com o parceiro Gershman é um momento mágico, desses que apenas o jazz pode proporcionar. A atmosfera é camerística e pungente e toda a paixão que Dolphy imprime a seu sopro se consuma em um verdadeiro tributo ao lirismo.
Em “I'm Just a Lucky So and So” a elegância do arranjo deve muito ao cello de Gershman, que permeia o tema com sobriedade e fluidez. O lirismo recatado de Pisano contrasta brilhantemente com a interpretação ardente e incontida de Dolphy, que aqui se utiliza da flauta com volúpia e sagacidade. Na “cozinha”, Gaylor e Hamilton agem com discrição e solidez, garantindo as sutilezas harmônicas engendradas pelo violoncelista e pelo guitarrista, e dão ao tema um ar introspectivo.
A cadenciada “Just A-Sittin’ And A Rockin’” apresenta uma das mais incisivas atuações do líder, que demonstra total domínio rítmico, perícia técnica e versatilidade. Outra vez empunhando o saxofone, Dolphy não nega a enorme influência de Charlie Parker em sua forma de tocar, embora sua abordagem pouco convencional soe arrojada até mesmo para os intrincados parâmetros harmônicos do bebop. Seus solos são fragmentários, sinuosos, explorando os agudos e rechaçando qualquer contato com a obviedade. A atuação de Pisano, luminosa e encharcada de swing, também merece ser louvada.
Executada em tempo médio e com um trabalho notável de Dolphy na flauta, “Everything But You” tem uma levada contagiante, flertando com o blues, muito por conta da percussão sincopada de Hamilton e pela atuação quase sombria de Gaylor. Pisano é um guitarrista econômico, capaz de articular frases musicais eloqüentes, mesmo sem usar uma quantidade muito grande de acordes. Sua abordagem equilibra-se entre o minimalismo circunspecto de um Jim Hall e a expansividade sorridente de um Barney Kessell e ele trafega pelo tema com autoridade e bom gosto.
“Day Dream” é uma das mais belas composições de Duke Ellington e Billy Strayhorn. A abertura, a cargo de Gershman, é das mais arrebatadoras. O cello vai se insinuando por entre as frestas da melodia, ao mesmo tempo em que os demais instrumentos vão, pouco a pouco, se fazendo perceber. Aqui Dolphy se usa do clarinete e o diálogo que mantém com Gershman é simplesmente primoroso. A sonoridade do quinteto tangencia pelos solenes recantos da música erudita, mas de maneira muito natural, sem qualquer afetação ou arrogância.
Quase sem perceber, o ouvinte é compelido a estalar os dedos e sacudir a cabeça ao som inebriante de “I'm Beginning to See the Light”. O sax de Dolphy reverbera pelos alto-falantes, com uma mescla de reverência e iconoclastia. O velho e o novo se encontram em sua dicção certeira e ousada – ele é Parker e é Hodges ao mesmo tempo. Mas, sobretudo, é Dolphy, um portento criativo e inquieto, cuja influência no mundo do jazz é cada vez maior e se espraia até os dias de hoje. Digna de nota também é a formidável capacidade improvisativa de Pisano, cujo solo é dos mais criativos do disco.
Na balada “Azure”, o quinteto estreita a aproximação com a música de câmera, graças ao trabalho do violoncelo e do contrabaixo. Os elementos da música barroca são facilmente perceptíveis e a primeira lembrança que vem à mente é a obra do italiano Antonio Vivaldi. Optando por uma percussão minimalista, Hamilton prepara o terreno para que Pisano e Dolphy, cujo clarinete não soa tão agressivo como viria a ser nos anos vindouros, improvisem com bastante liberdade e imaginação.
“It Don't Mean a Thing (If ItAin't Got That Swing)” recebe um arranjo que a torna quase irreconhecível. Flertando com o atonalismo e exibindo uma personalidade invejável, Dolphy subverte a estrutura melódica da canção, sinaliza novos e desafiadores caminhos e, mais que isso, mostra que a obra de Ellington é eterna, pois traz consigo um universo de referências tão abrangente quanto o próprio jazz. O líder tem aqui a sua performance mais visceral, esmurrando sem piedade a bateria, enquanto o fiel escudeiro Pisano elabora um solo dos mais exuberantes. Um tesouro sonoro, que apenas dignifica as carreiras de todos os envolvidos no projeto e ressalta a figura majestática do maestro soberano Edward Kennedy Ellington.
Dando continuidade à movimentada carreira, Hamilton liderou vários outros pequenos grupos ao longo dos anos 60. Gravou com regularidade para selos como Columbia, Reprise, Soul Note, Atlantic, Blue Note e Impulse ajudou a revelar os talentos de Charles Lloyd e Larry Coryell, que substituíram, respectivamente, Eric Dolphy e Jim Hall. Ele criou a trilha sonora para o documentário “Litho”, de 1962, que foi o primeiro filme norte-americano rodado na chamada Cortina de Ferro.
Outra experiência inesquecível foi a autoria da trilha sonora do suspense “Repulsion” (que no Brasil, recebeu o curioso título de “Repulsa ao sexo”), de Roman Polanski, em 1965. Ao mesmo tempo, continuou a ser um dos mais requisitados músicos do período. Além de gravar discos em seu próprio nome, com habitualidade, Chico exibe um currículo invejável como sideman, assinalando atuações ao lado de Dexter Gordon, Tal Farlow, Stan Getz, Bill Perkins, Albert King, Chet Baker, Toots Thielemans, Buddy Tate, Buck Clayton, Gerald Wilson, Jimmy Witherspoon, Lee Konitz, Shorty Rogers, Andrew Hill, e muitos outros.
Além das incursões no cinema, ele também compôs diversas trilhas para seriados e desenhos animados na TV e para comerciais, tornando-se um dos músicos preferidos do concorrido mercado publicitário dos Estados Unidos. À frente de uma banda formada por Larry Coryell, pelo baixista Richard Davis e pelo saxofonista Arnie Lawrence, gravou, em 1966, o ótimo “The Dealer”, com uma sonoridade mais pesada e fortemente influenciada pelo soul jazz.
Ao longo das últimas décadas, tem se apresentado nos mais importantes festivais do mundo, como Montreux, North Sea Jazz, Montreal, Nice, Erie Art Museum Blues & Jazz Festival, Bell Atlantic Jazz Festival, Drew Festival (Los Angeles), Jazz Alive Festival (San Antonio), Brecon Jazz Festival e muitos outros. Em 1987 passou a dar aulas na Parsons New School of Jazz, em Nova Iorque. Na qualidade de educador musical, Chico deu aulas para gente como Charlie Watts, dos Rolling Stones, Eric Schenkman, guitarrista da banda Spin Doctors, e John Popper, gaitista do Blues Traveler.
Ainda na década de 80, formou o grupo Euphoria, ao lado de Eric Person, Cary DeNigris e Reggie Washington, com quem excursionou exaustivamente, incluindo apresentações na Grécia, em Portugal e no Uruguai. Em 1989 reuniu-se novamente aos antigos parceiros Buddy Collette, Fred Katz, John Pisano e Carson Smith, para uma série de concertos na Europa. Sua vida e sua carreira foram objeto do documentário “Dancing To A Different Drummer”, produção franco-alemã dirigida por Julian Benedikt e que foi vista por mais de 150.000 pessoas na Europa.
A década seguinte encontrou Hamilton esbanjando vitalidade e mais atarefado do que nunca, com apresentações em festivais e em clubes como o Wild Rose Cafe e o Birdland, além de concertos em casas de prestígio como o Town Hall e o Lincoln Center, todos em Nova Iorque. Em 1993, seu álbum “Arroyo” foi eleito pelos leitores da revista Down Beat como “Jazz Album of the Year”. A mesma revista elegeria o Euphoria como “Best Electric Jazz Group” nos anos de 1995 e 1997.
Muitas foram as homenagens amealhadas ao longo de quase 70 anos como músico profissional. Foi capa do jornal Black Issues in Higher Education, por conta de sua atuação como educador musical e trabalhou como artista residente em importantes instituições européias e norte-americanas. Entre 1996 e 1997 fez longas temporadas na França e na Grã-Bretanha, no comando do grupo Euphoria. Em 1998, Chico foi agraciado pela Mannes New School com o prêmio “Beacons of Jazz”, por conta de sua “significante contribuição para a evolução do jazz”.
Em 2001 gravou para a Koch Jazz o elogiado “Forestorn”, contando com a participação de nomes como Arthur Blythe, Steve Turre, Akua Dixon, Eric Person e Charlie Watts. No mesmo ano, o Lincoln Center recebeu mais de 2000 pessoas para um concerto em sua homenagem, intitulado “My Funny Valentine: A Tribute to Chico Hamilton”, onde o baterista se apresentou ladeado pelo Euphoria e por convidados como Joe Beck, Arthur Blythe, Larry Coryell, Akua Dixon e Rodney Jones, entre outros.
2003 foi marcado por um grande susto: o baterista precisou passar por uma delicada cirurgia no coração. Ao cabo de alguns meses de repouso, voltou à ativa com o ânimo redobrado. No ano seguinte, recebeu da National Endowment for the Arts o título de Jazz Master. De bem com a vida, realizado profissionalmente e sumamente respeitado por seus pares, o sábio Hamilton faz a leitura da própria vida musical, longa, produtiva e, sobretudo, íntegra: “Você não vai conseguir agradar todo mundo. Mas eu me sinto abençoado por poder fazer música da maneira como faço. A música exige dedicação, para que possa ser criada e executada, e eu creio que ela é um presente de Deus”.
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