A DISCRETA ELOQÜÊNCIA DE UM MESTRE DA GUITARRA
Música e outras coisas

A DISCRETA ELOQÜÊNCIA DE UM MESTRE DA GUITARRA



Poucas vezes na história do jazz a capa de um disco disse tão pouco acerca de seu conteúdo quanto a deste extraordinário “A”. Um emaranhado de arame farpado paira, ameaçador, diante de um fundo azul celeste. Talvez a imagem, sombria ao extremo, fosse mais adequada a estampar a capa de um disco de heavy metal. Ou, talvez, a idéia por trás do uso de tão emblemático ícone, que de imediato se associa a prisões ou campos de concentração, seja alertar o ouvinte: cuidado! Por trás do fraseado sutil e relaxado do líder da gravação se esconde um dos músicos mais versáteis e bem dotados, do ponto de vista técnico, que já caminharam pela face da terra. Um verdadeiro lobo em pele de cordeiro ou um ferocíssimo tubarão branco fantasiado de afável golfinho. A se observar a capa por essa perspectiva, então talvez ela diga bastante acerca do álbum e do músico em questão.


Se é certo que a guitarra jazzística tem em Barney Kessel, Wes Montgomery e Joe Pass a sua Santíssima Trindade, não é menos verdade que Jimmy Raney, Jim Hall e Tal Farlow estão bem ali, coladinhos aos três primeiros, disputando cabeça a cabeça uma vaga nesse Olimpo. Aplicadíssimo discípulo do pai fundador Charlie Christian, Raney é um virtuose na mais completa acepção do termo, com total autoridade e absoluto domínio de todas as nuances do seu instrumento, tendo se consagrado como o mais completo dos guitarristas ligados ao cool jazz. De quebra, ainda é um compositor de grande inventividade, com uma obra bastante significativa, que inclui “Minor”, “The Flag Is Up”, “Jim’s Tune”, entre outras.


Da linhagem a que pertencem alguns dos músicos mais melodiosos do jazz, como os saxofonistas Paul Desmond e Lester Young, os pianistas Tommy Flanagan e Hank Jones e os trompetistas Art Farmer e Enrico Rava, Raney agrega a seu fraseado lírico e fluente uma agilidade incomum. Sobre sua maneira de tocar, é necessário que se diga que o guitarrista nunca soube o que é extrair uma nota áspera do seu instrumento. Transitando do mais feérico bebop à mais lânguida das baladas, há uma doçura natural em seu fraseado, que envolve a música tão ternamente quanto um macio chumaço de algodão envolve um precioso conjunto de cristais da Boêmia. Outra característica marcante é a eloqüência de suas frases, calcada em uma aparentemente contraditória economia de notas: Raney é daqueles músicos que privilegia os substantivos e dispensa os adjetivos inúteis, conseguindo, com isso, dizer muito falando bem pouco.


Nascido em 20 de agosto de 1927 em Louisville, Kentucky, James Elbert Raney começou a tocar profissionalmente bastante cedo. Aos 19 anos pontuava no combo do pianista e vibrafonista Max Miller, em Chicago. Em seguida, breves passagens por orquestras de swing – Woody Herman e Artie Shaw – e colaborações com artistas como Buddy DeFranco, Terry Gibbs, Al Haig e Jimmy Lyon. Permaneceu alguns anos com Stan Getz (de 1951 a 1952 e, novamente, de 1962 a 1963) e substituiu Tal Farlow no trio de Red Norvo (de 1953 a 1955). Ao mesmo tempo, desenvolveu uma carreira solo primorosa, com direito a ótimos álbuns, como “2 Guitars” (no qual divide o estúdio com o não menos talentoso Kenny Burrell) e “Jimmy Raney Featuring Bob Brookmeyer”, ao lado do trombonista preferido de dez entre dez músicos do West Coast jazz. De semelhante estirpe, “A” se inscreve com galhardia entre os melhores trabalhos de Raney.


Nas gravações do álbum, Raney contou com a preciosa participação de Hall Overton (piano), Teddy Kotick (baixo) e Art Mardigan (bateria) nas faixas “Minor”, “Some Other Spring”, “Double Image” e “On The Square”. As demais sessões contam com o eficiente trompete de John Wilson, sendo que Nick Stabulas substitui Mardigan na bateria. No repertório, algumas composições do líder e vários standards, que ganham versões que variam do soberbo ao sublime. O disco foi gravado nos dias 28 de maio de 1954 (faixas 1 a 4), 18 de fevereiro de 1955 (faixas 5 a 8) e 08 de março de 1955 (faixas 9 a 12) e é considerado um dos pontos culminantes da carreira do guitarrista.


Não é para menos. Bebop de excelente safra pode ser ouvido nas faixas “Minor” (de autoria do próprio Raney, mas baseada na incandescente “Bernie’s Tune”, de Bernie Miller, Jerry Lieber e Mike Stoler), “Double Image” (que evoca “There Will Never Be Another You” em alguns momentos) e “On The Square”. O guitarrista dedilha seu instrumento com precisão e criatividade, elaborando solos que encantam tanto pela velocidade quanto pela articulação das frases e o diálogo que mantém com Overton, pianista de formação clássica e de grandes recursos técnicos (chegou a elaborar arranjos para ninguém menos que Thelonious Monk), é dos mais fluentes.


Emérito baladeiro, em “You Dont Know What Love Is”, “Whats New” e “Someone To Watch Over Me”, quem dá as caras é o lado romântico de Raney, que extravasa lirismo e delicadeza a cada acorde. Nessas três músicas o diálogo mais veemente é travado com o trompetista Wilson, egresso da orquestra de Les Elgart, que exibe um elevado senso melódico e um inegável bom gosto. Belíssimo trabalho de Stabulas, enquanto o piano de Overton funciona como um discreto interlocutor, mantendo o eixo harmônico centrado nas intervenções da guitarra e do trompete. Na deliciosa “One More For The Mode”, talvez a melhor faixa do disco, o guitarrista faz uma releitura de um tema de Bach, mostrando que a distância entre o autor dos célebres Concertos de Brandenburgo e Charlie Parker não é tão grande assim.


Em “Tomorrow Fairly Cloudy”, um bebop classudo e nada óbvio de autoria de Raney, Wilson demonstra a sua habilidade também na execuções em andamento mais rápidos, o que se confirma ao se ouvir o seu excelente solo em “Cross Your Heart”. “A Foggy Day”, dos irmãos Gershwin, e “Spring Is Here”, da dupla Rodgers e Hart, também ganham versões mais aceleradas, com ênfase, desta feita, no piano de Overton, embora, em ambas, os solos do líder e do trompetista também sejam muito bonitos. Importa salientar que durante todas as 12 faixas as mãos firmes e eficientes de Kotick se encarregam de mostrar porque ele é um dos baixistas mais confiáveis (sempre foi um dos preferidos de Bird) da história do jazz – apesar de habilíssimo, pouco solava, concentrando sua energia na marcação.


No final da década de 60, desiludido com a escassa oferta de trabalho e imerso em problemas com álcool, Raney voltou à cidade natal e passou quase dez anos sem gravar. Em 1975, foi contratado pela gravadora Xanadu, pela qual lançou alguns ótimos discos. Nos anos 80, passou a gravar pela Criss Cross, tendo produzido excelentes álbuns, sempre no formato de trio ou quarteto. Seu filho Doug, além do sobrenome, herdou do pai o enorme talento e é um dos maiores nomes da guitarra jazzística em atividade. Jimmy sofreu, a partir de meados da década de 70, uma rara doença degenerativa, chamada Síndrome de Meniére, que provocava perda progressiva de audição, vertigens constantes e labirintite. Juntou-se à grande orquestra celestial (onde, diz-se, os neons nunca se apagam e o bourbon jamais termina) no dia 10 de maio de 1995, mas deixou uma obra respeitável, na qual “A” se destaca como um dos momentos mais encantadores.


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PS.: Post dedicado ao meu querido amigo Jarbas Couto e Lima, cuja presença luminosa é um oásis de inteligência e lucidez nas vidas daqueles que, como eu, têm a honra de privar de sua amizade.



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