A lista de tragédias continua. Alcoolismo? Hectolitros de bebida se encarregaram de abreviar as vidas e as carreiras de Sonny Clark, Hampton Hawes e Oscar Pettiford. Distúrbios mentais? Bud Powell e Phineas Newborn eram assíduos freqüentadores de hospitais psiquiátricos e Henry Grimes permaneceu na indigência entre 1968 e 2002, após haver sofrido um violento colapso que o fez abandonar a carreira e a família. Homicídio? Lee Morgan foi morto a tiros na saída da boate em que se apresentava, por uma ex-namorada, e também às portas de uma boate o baixista Jaco Pastorius foi espancado até a morte. Há o caso extremo de Chet Baker, que passou por quase todo tipo de tragédia – foi preso inúmeras vezes, usou e abusou de todo tipo de droga, perdeu quase todos os dentes após ser agredido brutalmente por traficantes – até a morte, que permanece um mistério: até hoje não se sabe se ele cometeu suicídio, se foi assassinado ou se caiu acidentalmente da janela de um modesto hotel de Amsterdã.
No quesito mortes misteriosas, temos Albert Ayler, cujo corpo foi encontrado boiando no Rio Hudson em 1970, e Wardell Gray – seu cadáver foi encontrado no deserto de Las Vegas em 1955 com o pescoço quebrado. Há fortes indícios (jamais confirmados) de que ambos teriam sido assassinados. Entretanto, o assassinato mais terrível talvez tenha sido o de Jaki Byard. Ele foi morto dentro de sua própria casa, com um tiro na cabeça, no dia 11 de fevereiro de 1999, na cidade de Nova York. Ayler e Gray eram usuários pesados de diversos tipos de entorpecentes e é provável que as drogas tenham sido motivo determinante para ambas as mortes. Byard, ao contrário, era um afável professor, um homem que acreditava no poder redentor da educação, sobretudo por meio da música. Tinha 76 anos.
Músico estupendo e de rara versatilidade, John Arthur Byard Jr. firmou sua reputação como pianista, mas dominava com extrema perícia o trombone, o saxofone tenor, o vibrafone e a bateria. Nascido em 1922, com apenas 18 anos já dividia os palcos e estúdios com feras como Ray Nance, Sam Rivers e Earl Bostic. Nos anos 50, associou-se mais regularmente a Herb Pomeroy e Maynard Ferguson, obtendo alguma notoriedade no circuito jazzístico de Boston e despontando como um compositor extremamente promissor.
A partir de 1960, já em Nova York, Jaki desenvolve um prolífico trabalho ao lado do fenomenal Charles Mingus, obtendo excelente repercussão junto ao público e à crítica – é dele o piano que se ouve em obras essenciais como “Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus” e “The Black Saint And The Sinner Lady”. Sem prejuízo de sua carreira solo, toca habitualmente com Roland Kirk, Eric Dolphy e Booker Ervin e desenvolve uma respeitada carreira acadêmica, chegando a dar aulas na prestigiosa Harvard University.
Em um dos discos mais extraordinários desse grande educador, instrumentista, compositor, arranjador e band leader (formou, na década de 70, uma big band denominada The Apollo Stompers), chamado simplesmente “Here’s Jaki” e lançado pela Prestige, podemos ter uma amostra de sua criatividade e do seu talento. O disco foi gravado em um único dia (14 de março de 1961), no célebre estúdio Englewood Cliffs, sob o comando do incensado Rudy Van Gelder. Compunham o trio outros músicos da mais fina estirpe: Roy Haynes na bateria e Ron Carter no baixo.
Quase todas as músicas são da lavra do próprio pianista e revelam, além do seu total domínio das mais diversas escolas do jazz, que as suas influências extrapolavam as fronteiras do Tio Sam. Com efeito, a primeira música, “Cinco Y Quatro” demonstra a intimidade de Jaki com ritmos latinos, em uma balada com forte tintura cubana, onde o destaque é o baixo infalível de Carter – outro músico bastante antenado com o som produzido ao sul do Equador. Na angulosa “Mellow Septet”, a influência das estruturas modais lançadas por Miles Davis em “Kind of Blue” é facilmente perceptível – há ecos de “So What” pontuando toda a canção.
Na mais convencional “Garnerin’ a Bit”, um blues estilizado, o trio dá um show de ritmo e harmonia, com Haynes exibindo um magistral domínio do seu instrumento e Byard emulando Fats Waller. Uma improvável e quase irreconhecível versão de “Giant Steps”, de Coltrane, sinaliza os caminhos do delicado bebop urdido pelas mãos ágeis de Byard – que mostra que também sabia tocar na velocidade da luz. Outro destaque é a swingante “D. D. L. J”, na qual o pianista esbanja técnica ao criar uma estrutura de harmonias sobrepostas, com um discretíssimo tempero free. Um álbum irretocável, pois.
Decorridos dez anos, o assassinato desse grande músico permanece cercado de mistério. A identidade do assassino e os seus motivos nunca foram descobertos. A obra de Byard – esta sim imortal – remanesce como o legado de um homem que dedicou toda a sua vida e o seu talento ao jazz.
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