Música e outras coisas
A LUTA CORPORAL
Fosse um boxeador, George Edward Coleman provavelmente seria um peso-pesado capaz de rivalizar com lendas do porte de Joe Frazier, Muhammed Ali ou seu xará George Foreman. Como preferiu ganhar a vida tocando saxofone, e não trocando socos em um ringue, jamais saberemos se ele realmente seria capaz de levar à lona esses gigantes. Mas uma coisa é certa: se existe alguém capaz de simbolizar a expressão “sonoridade musculosa” ao sax tenor, este alguém, certamente, é Coleman.
Esse gigante dos palcos é mais uma cria de Memphis, no Tennessee, onde nasceu no dia 08 de março de 1935. Começou a se envolver com a música no comecinho dos anos 50 e sua turma era composta de sujeitos como o trompetista Booker Little, os saxofonistas Frank Strozier, Hank Crawford e Charles Lloyd, o baixista Jamil Nasser e os pianistas Phineas Newborn Jr. (o mais velho da turma e espécie de guru da rapaziada) e Harold Mabern. Quase todos estudavam na Manassas High School.
Outro jovem aspirante ao estrelato que andava com essa galera do barulho era o future Rei do Blues B. B. King, que em 1952 convidou o jovem saxofonista, então com 17 aninhos, para se juntar à sua banda. Ao mesmo tempo, George tornava seu nome conhecido no circuito do R&B ao elaborar arranjos para artistas como Ray Charles (como em “Lonely Avenue”, “Drown in My Own Tears” e “I Got a Woman”) e The Moonglows.
Coleman iniciou-se nas artes do sax alto aos quinze anos, profundamente influenciado por Charlie Parker. O amor pelo jazz o fez deixar de lado sua outra paixão, o futebol americano. Ele relata como foram seus anos de formação: “Minha primeira inspiração foi Charlie Parker. Ele foi, provavelmente, o mais talentoso e criativo músico da história do jazz. Eu tive a oportunidade de ouvir um monte de grandes músicos na minha juventude. Stan Getz tinha um som super popular e tocava bastante nas jukeboxes. Dizzy também rolava nas jukeboxes naquela época. Eu praticava esportes, mas gostava mesmo era de música. No meu último ano, desisti de futebol e me direcionei apenas ao jazz”.
Em 1953 Coleman passa a se dedicar exclusivamente ao sax tenor, instrumento que o tornaria conhecido e reverenciado no meio jazzístico. Em seu fraseado, percebem-se ecos de Dexter Gordon, Gene Ammons, Frank Foster e Wardell Gray, suas novas e profundas influências. Após quase quatro anos de prolífica convivência musical, ele deixa a banda de King e, juntamente com o amigo Booker Little, se muda para Chicago, cidade que possuía uma das cenas musicais mais efervescentes da época.
Na Cidade dos Ventos, George toca com luminares do calibre de Gene Ammons, Johnny Griffin, John Gilmore, Von Freeman, Junior Mance, Eddie Higgins, Wilbur Ware e Ira Sullivan. Também foi membro do grupo do baterista Walter Perkins, chamado “MJT + 3”. Sua desenvoltura nas gigs locais coloca seu nome em evidência e ele passa a usufruir do status de astro em ascensão.
Em 1958, outro baterista, o badalado Max Roach, convidou Coleman para se juntar a seu quinteto, numa formação que incluía, ainda, o trompetista Kenny Dorham (logo depois substituído por Booker Little), o pianista Eddie Baker e o contrabaixista Bob Cranshaw (que daria lugar a Art Davis). Além da maior visibilidade e participação em álbuns antológicos como “Deeds, Not Words” (Riverside, 1958), o trabalho com Roach acarretou em nova mudança de domicílio para o saxofonista, que agora iria levar seu talento para a Meca do Jazz.
Em 1959, George deixou o grupo, para integrar o octeto do trombonista Slide Hampton e atuar como freelancer. Nessa qualidade, tocou com feras como Howard McGhee, Jimmy Smith, Lee Morgan, Frank Strozier, Curtis Fuller, Eddie McFadden, Kenny Burrell, Donald Bailey, Ron Carter, Jimmy Cobb e outros. Na banda de Hampton, George integrava um poderoso naipe de metais, juntamente com o líder, o trombonista Julian Priester, o velho amigo Booker Little e o novato Freddie Hubbard, então uma promissora revelação do trompete.
George se manteve na banda de Hampton, com quem fez sua primeira viagem à Europa, até 1962 e reputa ao trombonista o mérito de lhe haver estimulado a veia de compositor e arranjador. Após a saída do grupo, se integrou à banda do organista Wild Bill Davis, mas um telefonema de outro Davis, o Miles, seduziu o saxofonista. O ano era 1963 e fazer parte da banda do então poderoso Miles era o sonho de onze entre dez jovens jazzistas.
Coleman ingressa em um período de transição. Miles estava remodelando a sua banda, em busca de algo completamente novo, e aquele enérgico saxofonista de Memphis lhe causou a melhor das impressões. Não é à toa que, por um breve período, agregou ao seu sexteto outros dois jovens amigos de Coleman, o altoísta Frank Strozier e o pianista Harold Mabern.
Estes não ficaram muito tempo com Miles, que aboliu o sax alto e manteve apenas o tenor na sua formação. Quando finalmente achou os músicos que estava procurando – Herbie Hancock no piano, Ron Carter no contrabaixo e Tony Williams na bateria – Davis voltou a ficar na crista da onda e confirmou-se, mais uma vez, como uma das vozes mais influentes do jazz.
Coleman pode se orgulhar de ter participado de verdadeiras obras-primas do jazz, como “Quiet Nights” (1962), “Seven Steps to Heaven” (1963), “Four & More” e “Miles Davis in Europe” (ambos de 1964) e “My Funny Valentine” (gravado em 1964, mas lançado apenas no ano seguinte), todos para a Columbia. Invariavelmente, a sua sonoridade robusta e cheia de personalidade roubava a cena.
Em meados de 1964, George deixa a banda, sendo substituído por Sam Rivers que, por seu turno, daria lugar, ainda naquele ano, a Wayne Shorter. Todavia, ele não passou muito tempo desempregado e logo após a sua saída, o saxofonista ingressou na banda do lendário Lionel Hampton. Quanto ao tempo que passou com Miles, as lembranças são bastante positivas:
“Eu não quero parecer arrogante ou presunçoso, mas sinto que fui bastante importante para o grupo, durante aquele período. E que realmente dei o melhor de mim em todas as apresentações e nos cinco álbuns que gravei com Miles. Foi uma experiência agradável e que me trouxe muito conhecimento, da mesma forma que aconteceu com todos os grandes músicos com quem trabalhei, incluindo Max Roach”.
Coleman também marca presença em um dos mais importantes álbuns dos anos 60, o formidável “Maiden Voyage” (Blue Note, 1965), sob a liderança do seu ex-companheiro Herbie Hancock. Ao lado deles, os dois outros integrantes da sessão rítmica de Miles, Ron Carter e Tony Williams, e mais o estupendo Freddie Hubbard no trompete.
Como sideman, participa de outro projeto de grande relevo, desta feita tendo Chet Baker como líder, em uma série de cinco álbuns gravados para a Prestige. Conhecidos como “Chet Baker’s Prestige Sessions”, os discos (“Smokin’”, “Groovin’”, “Comin’ On”, “Cool Burnin’” e “Boopin’”) foram gravados entre os dias 23 e 25 de agosto de 1965 e são alinhados entre os melhores trabalhos do trompetista na tumultuada década de 60. No acompanhamento, estão o pianista Kirk Lightsey, o contrabaixista Herman Wright e o baterista Roy Brooks.
Em 1966, George pede dispensa da orquestra de Hampton para se dedicar a seus próprios projetos. Além de montar grupos à sua imagem e semelhança, ele também continua a ser um requisitado acompanhante e registra participações em concertos e discos de sumidades como Tete Montoliu, Elvin Jones, Charles Mingus, Clark Terry, Horace Silver, Betty Carter, Chet Baker, Shirley Scott, Charles McPherson, Richie Beirach, Cedar Walton. Como líder, lança seus álbuns por selos como Verve, Muse, Charly, Timeless, Absord, Evidence, Birdology e Telarc.
Durante os agitados anos 60, o saxofonista também militou incisivamente na luta pelos direitos civis, aproximando-se do casal de atores Ruby Dee e Ossie Davis, dois dos mais destacados ativistas da causa negra. O cinema, diga-se de passagem, é uma das grandes paixões de Coleman, que além de participar das trilhas de diversos filmes, ainda fez pontas em alguns deles.
Foi o caso de “Sweet Love, Bitter” (de 1967, dirigido por Herbert Danska e estrelado por Dick Gregory), baseado na vida de Charlie Parker, cuja trilha foi composta por Mal Waldron e Charles McPherson. Mas ele ainda participaria de outras produções futuramente, como a ficção científica “Freejack”, de 1992, com Emilio Estevez, Mick Jagger e Anthony Hopkins no elenco, ou em “Preacher’s Wife”, de 1996, com Denzel Washington e Whitney Houston nos papéis principais, além de ter aparecido rapidamente em um episódio da série “The Bill Cosby Show” na década de 80.
A partir da década de 70, Coleman inicia uma bem-sucedida carreira de educador musical, ministrando aulas, palestras e oficinas em instituições e órgãos de prestígio como a Juilliard School of Music, a New School University, a Long Island University, a New York University, o Chicago Department of Cultural Affairs e a Mannes School of Music, entre outras. Entre seus ex-alunos há figuras de relevo, como David Sanborn e Eric Alexander.
Sua discografia como líder é bastante concisa, mas seus poucos discos primam pela excelência. Nada do que Coleman lança é irrelevante ou de qualidade mediana. É o caso do formidável “At Yoshi’s”, gravado ao vivo no célebre clube californiano, durante uma temporada realizada em agosto de 1987. Ao lado do saxofonista, os veteranos Harold Mabern (piano), Alvin Queen (bateria) e Ray Drummond (contrabaixo).
Para abrir os trabalhos, a escolhida foi “They Say It's Wonderful”, graciosa balada de Irving Berlin. A canção fisga o ouvinte desde os primeiros acordes e a delicada introdução, a cargo de Mabern e Coleman, antecipa o que virá em seguida: uma execução lírica, magnética, emocionante. A sonoridade encorpada do saxofonista transmite, simultaneamente, calor e placidez. Vale a pena prestar atenção no longo e apaixonado solo de Drummond.
Imortalizada na voz de Billie Holiday, “Good Morning Heartache”, de Dan Fisher, Ervin Drake e Irene Higginbotham, recebe um arranjo comovente. As frases de Coleman são viscerais, dotadas de um romantismo quase cortante. O suporte dado pela sessão rítmica é dos mais compactos, com destaque para o dedilhado límpido e discretamente assentado no blues de Mabern e para as sutilezas percussivas de Queen.
“Laig Gobblin’ Blues” é um tema do próprio Coleman, que se inspirou no soul jazz sessentista de craques como Stanley Turrentine ou Eddie Harris. O blues está presente, na levada ressonante de Queen e Mabern, que se responsabilizam por algumas das mais eletrizantes trocas de compassos do disco. A potência sonora do líder é exposta em toda a sua plenitude, seu ataque é rápido e viril, repleto de influências de tenoristas como Dexter Gordon, Sonny Rollins e John Coltrane.
A infecciosa “Io” é uma composição do pianista Paul Arslanian, que faz uma deliciosa mistura de hard bop, R&B, soul e calipso. A bateria de Queen conduz o ritmo com energia contagiante, enquanto o líder despeja suas notas fulgurantes com entusiasmo e uma certa crueza. Dando uma aliviada na temperatura, “Up Jumped Spring”, de Freddie Hubbard, é um blues que incorpora elementos de valsa. Os ornamentos harmônicos de Mabern são pura elegância, enquanto o líder, cuja abordagem aqui é mais polida e menos rascante, dá uma aula magna de fluência e habilidade técnica.
Segundo tema de autoria do líder, “Father” é uma balada em tempo médio, com uma melodia adorável, embalada em um arranjo dos mais charmosos. A interpretação de George é um misto de volúpia e lirismo, capaz de produzir matizes sonoros delicados e, em seguida, criar harmonias quase guturais. O luxuriante acompanhamento de Drummond, sempre volumoso e cheio de personalidade, também merece ser ouvido atentamente.
“Soul Eyes” é uma das composições mais conhecidas do pianista Mal Waldron e a versão do quarteto é espetacular. São quase dezesseis minutos de uma soberba viagem sonora, com direito a uma marcante citação de “It’s Easy to Remember”, de Lorenz Hart e Richard Rodgers. Mabern, particularmente, tem uma atuação inesquecível, destacando-se pela limpidez de sua digitação, pela clareza de suas idéias e pela sofisticação de sua abordagem.
Um disco excepcional, que traz um Coleman em seu apogeu criativo e que recebeu do site Allmusic 4,5 estrelas. O crítico Michael G. Nastos, ao comentar o álbum escreveu: “O lançamento de uma gravação de George Coleman é um evento instantâneo. Embora ele tenha se mantido bastante ocupado, gravando, escrevendo arranjos e, especialmente, ensinando, os fãs têm tido poucas oportunidades de ouvir seus discos como líder. É especialmente emocionante ouvi-lo ao vivo, em um concerto realizado no então recém inaugurado Yoshi’s, em Oakland, Califórnia, e perceber que ele está no auge de sua capacidade técnica, trazendo à tona uma impressionante gama de idéias harmônicas”.
Embora não tenha tido a mesma visibilidade que outros saxofonistas oriundos dos grupos de Miles Davis – como John Coltrane, seu antecessor, ou Wayne Shorter, seu sucessor – obtiveram, Coleman tem recebido uma merecida atenção por parte da crítica especializada e por parte de seus colegas jazzistas. Em 1979 recebeu o New York Jazz Award, dado pelo New Jazz Audiences, associação que congrega músicos, historiadores e críticos de jazz de Nova Iorque. Em 1997, foi a vez do Lifetime Achievement Award, concedido pela Jazz Foundation of America.
A sua Memphis nativa já lhe prestou alguns emocionantes tributos. Em 1992, o prefeito fez a Coleman a entrega simbólica das chaves da cidade, em reconhecimento ao seu valioso trabalho como intérprete e educador musical. Alguns anos antes, George havia sido o artista homenageado do Beale Street Music Festival, que é realizado ali, anualmente, desde 1978.
O imponente Coleman ainda realizou alguns trabalhos como modelo, aparecendo em campanhas publicitárias veiculadas em revistas como Ebony Magazine e Travel and Leisure. Em 2002 particpou do album “Four Generations of Miles”, ao lado de Ron Carter, Jimmy Cobb e Mike Stern, lançado pela Chesky Records. Ele também pode ser ouvido em álbuns recentes de Bobby Hutcherson, Joey DeFrancesco e Ahmad Jamal.
George raramente gosta das coisas que grava, porque, ao ouvir o resultado, sempre acha que poderia melhorar alguma coisa. Em uma entrevista, falou sobre o seu proverbial perfeccionismo: “Quando ouço uma gravação minha, em 90 por cento dos casos me sinto descontente com aquilo que toquei. Eu sempre acho que poderia ter adotado outra harmonia, que devia ter modificado um acorde em particular ou que poderia ter estudado um pouco mais a melodia, para desenvolvê-la melhor”.
Atualmente, o saxofonista se encontra semi-aposentado e só sai de casa para participar de projetos muito especiais ou quando o pagamento é bastante compensador. Em uma entrevista recente, ele disse: “eu realmente cheguei a anunciar a minha aposentadoria, mas apareceram alguns trabalhos bastante lucrativos e eu acabei reconsiderando. Não sou mercenário, mas o dinheiro é um fato da vida e temos que lidar com ele para viver”.
Para Richard Cook, Coleman é um dos maiores tenoristas surgidos nos últimos 50 anos, sumamente inventivo e dono de uma sonoridade bastante particular. Segundo o crítico britânico, “seu som grandioso e a sensação de placidez que ele transmite, mesmo no calor de uma improvisação inflamada, são características que o tornam um saxofonista diferenciado”.
Após tanto tempo na estrada, George mantém intacto o amor pelo jazz, especialmente quando se apresenta fora do seu próprio país: “Quando viajo à Europa ou ao Japão eu sinto o apreço do público e vejo como as pessoas ali nos recebem com carinho. Em cidades como Roma, Viena, Berlin, Londres ou Tóquio recebemos um tratamento melhor do que nos Estados Unidos. Ali eu consigo perceber que o jazz está vivo e muito bem. Porque o jazz é uma música muito especial, feita para pessoas especiais”.
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