A Copa Davis é um dos mais importantes torneios do calendário internacional do tênis masculino. Disputado por equipes de diversos países, que jogam entre si em um sistema de mata-mata, seus jogos eletrizam platéias do mundo inteiro e envolvem alguns dos maiores jogadores em atividade. A primeira edição ocorreu em 1900, quando alguns alunos da Universidade de Harvard, liderados por Dwight Davis, desafiaram seus colegas ingleses – e venceram o desafio. Restrita a norte-americanos e britânicos, em 1906 a Copa Davis cresceu em número de participantes, ao admitir belgas e franceses no torneio.
Desde então, o número de países inscritos cresceu de tal forma que a organização do evento foi obrigada a dividir o planeta em regiões – atualmente são quatro Zonas das Américas, quatro Zonas da Europa, uma Zona da África e quatro Zonas da Ásia e Oceania. Os países se enfrentam nessas zonas qualificatórias e os dezesseis melhores disputam a chamada Zona Mundial. O aspecto patriótico dá à Copa Davis uma saudável familiaridade com outros esportes de massa: ao contrário do que ocorre nos fleumáticos torneios da ATP, onde a platéia é obrigada a permanecer silenciosa, na Davis é permitida uma certa bagunça e a vibração da torcida, muitas vezes, contagia os jogadores do seu país.
Os Estados Unidos são os campeões absolutos do torneio, com 32 títulos, seguidos pela Austrália, com 28. Em seguida, vem Reino Unido, França, Suécia e Espanha. O Brasil chegou às semi-finais em quatro ocasiões: 1966, 1971, 1992 e 2000 e ocupa um modesto 18º lugar no ranking da competição. Como consolo, os tenistas Thomas Koch e Edson Mandarino estão ranqueados como a 3ª melhor dupla de todos os tempos do torneio, com um cartel de vinte e três vitórias e nove derrotas.
A Espanha é o grande destaque dos últimos anos, sempre apresentando equipes muito fortes e coesas: não é à toa que a “Invencível Armada”, como é chamada, abocanhou os títulos de 2008 e 2009. Entre os craques que atualmente disputam essa centenária competição, estão o suíço Roger Federer, o russo Nikolay Davydenko, o sérvio Novak Djokovic, os espanhóis Rafael Nadal e Juan Carlos Ferrero, o francês Michael Llodra, os australianos Lleyton Hewitt e Mark Philippoussis, o tcheco Jan Hajek e o norte-americano Andy Roddick.
Bom, caso o leitor tenha chegado até aqui, por certo estará se perguntando: mas o que mesmo o tênis tem a ver com o jazz? Bom, certamente existem aqueles que são apaixonados por essas duas maravilhosas formas de expressão – uma artística e outra esportiva – do engenho humano. Cito o meu amigo e compadre Celijon Ramos (que ainda por cima bate uma bolinha) e o decano do tênis em terras tupiniquins Paulo Cleto (apaixonado por Chet Baker, como já confessou em seu ótimo blog, hospedado no IG). Mas a razão não é apenas essa. Há um disco, chamado “Davis Cup”, que é nada menos que obrigatório em qualquer discoteca e é sobre o seu autor que iremos falar um pouco.
O pianista e compositor Walter Davis Jr. nasceu no dia 02 de setembro de 1932, em Richmond, Virginia. Oriundo de uma família extremamente musical – o pai era pianista semiprofissional e a mãe cantava no coral de uma igreja batista, chamado Orange Majestic Singers, o garoto desde muito cedo revelou uma enorme aptidão para a música.
Com poucos dias de nascido, mudou-se com a família para East Orange, Nova Jérsei, onde foi criado e onde recebeu as primeiras lições de piano, ainda na infância, pelas mãos da Sra. Dolores Tillary, companheira da sua mãe no Orange Majestic Singers e esposa do seu diretor musical, Albert Tillary. Em seguida, estudou com a Sra. Zevia Reed e seu destino parecia ser um renomado pianista erudito.
Todavia, por um desses acasos da vida, o jazz, que até então não lhe havia despertado maior interesse, entrou em sua vida pela porta da frente. Após assistir a um concerto da orquestra de Billy Eckstine, onde pontuavam Charlie Parker e Dizzy Gillespie, o jovem Davis passou a ter olhos – ou melhor, ouvidos – apenas para o jazz. Ao sair do Adam Theatre, em Newark, Nova Jérsei, onde aconteceu o show, o destino de Davis estava selado.
A música erudita perdeu um talentoso concertista e o jazz ganhou um dos seus mais completos e talentosos pianistas e compositores. De fato, além da técnica superior, chama a atenção uma importante característica em seu trabalho como compositor: da mesma forma que Duke Ellington, Davis também escrevia suas composições pensando sempre nos músicos que as interpretariam. Enquanto ainda freqüentava os bancos da East Orange High School, Davis tocou algum tempo com o cantor Babs Gonzalez e seu grupo vocal chamado “Three Bips and a Bop” e a experiência foi fundamental para tornar ainda mais firmes as convicções do jovem pianista, quanto à futura carreira musical.
Ao mesmo tempo, a audição dos mestres do piano passou a ser compulsiva e Art Tatum foi a sua primeira influência. Em seguida, viriam Bud Powell e Thelonious Monk. No final dos anos 40, mudou-se para Nova Iorque e ficou hipnotizado pela cena jazzística e pelo bebop que tomava de assalto os clubes da cidade. Ali, o garoto que mal havia completado dezoito anos, podia assistir ao vivo e conversar com seus ídolos – e com muitos deles, como Charlie Parker, por exemplo, também chegou a tocar.
Bird foi o responsável direto para que a opção de Davis pelo jazz ganhasse ares profissionais e definitivos. Após uma gig no Apollo Bar, Parker convidou o pianista para acompanhá-lo em uma turnê. Como se não bastasse, o saxofonista foi pessoalmente até a casa da família Davis, pedir à mãe do pianista que permitisse que seu filho ingressasse em sua banda. Depois de muita discussão e de um concerto a que compareceram os pais do jovem pianista e o reitor da escola em que estudava, a família finalmente permitiu que Davis partisse em turnê.
A partir daí, Davis se integrou de maneira definitiva à cena jazzística de Nova Iorque e ficou sob a proteção dos antigos ídolos Thelonious Monk e Bud Powell, que também se encantaram com o seu talento e que se tornaram seus grandes amigos. Suas primeiras gravações foram realizadas com o baterista Max Roach, bem no início da década de 50. Em seguida, viriam trabalhos ao lado de Hank Mobley, Melba Liston, Art Taylor, Sonny Stitt, Slide Hampton, Teddy Edwards, Archie Shepp, Jack McLean, Charles Mingus, Kenny Dorham, Lucky Thompson, Betty Carter, Pierre Michelot, Philly Joe Jones, Charlie Rouse, Kenny Clarke, Miles Davis e muitos outros.
O pianista chamou a atenção de Dizzy Gillespie, que o contratou em 1956, para uma turnê mundial, que incluía concertos no Oriente Médio e na América do Sul. Em 1958, acompanhou o trompetista Donald Byrd em uma excursão à França, em um grupo que reunia, também, o saxofonista e flautista Bobby Jaspar, o baixista Doug Watkins e o baterista Art Taylor. O quinteto fez um enorme sucesso na capital francesa e gravou por lá dois excelentes álbuns: “Byrd In Paris” e “Parisian Thoroughfare”, ambos lançados pela série “Jazz In Paris”.
Paris provocava uma enorme atração no pianista – e em quem não provoca, não é mesmo? Tanto é que em 1959 ele voltou à Cidade Luz, durante a sua breve passagem pelos Jazz Messengers de Art Blakey, e ali gravou o álbum “Paris Jam Session”, também lançado pela série “Jazz In Paris”. Completavam o time: Lee Morgan, Wayne Shorter e Jymie Merritt. Davis também participaria do álbum “Roots And Herbs” (Blue Note, 1961), dividindo o piano com Bobby Timmons. Problemas com as drogas causaram o seu afastamento do grupo, mas não abalaram sua amizade com Blakey, com quem voltaria a trabalhar nos anos 70.
Com tamanho respaldo no meio musical, era de se esperar que Davis lançasse um disco em seu próprio nome e a oportunidade foi dada pela Blue Note, que lançou “Davis Cup”, seu primeiro álbum como líder. O álbum foi gravado em uma sessão única, no dia 02 de agosto de 1959, nos estúdios Van Gelder. Ao lado do pianista, dois arrojados solistas, Jackie McLean (sax alto) e Donald Byrd (trompete), e uma sessão rítmica das mais entrosadas, integrada pelos impecáveis Art Taylor (bateria) e Sam Jones (contrabaixo).
O talento composicional do pianista é o fato que primeiro salta aos olhos, já que os seis temas do álbum são de sua autoria. Nenhum deles é previsível ou formulaico e todos se destacam pela riqueza harmônica e pela construção elaborada. “’S Make It” abre o disco de forma incisiva e bastante energética, com destaque absoluto para as intervenções exuberantes de Byrd. O solo de McLean também é fabuloso e seu domínio do idioma bop casa à perfeição com as idéias do líder.
“Loodle-Lot” é um blues com alentadas tinturas de soul e tributária do estilo descomplicado de Horace Silver. Hábil e versátil, o líder é o pólo irradiador da energia e do groove que permeiam o tema. Muito à vontade em contextos assim, Byrd mais uma vez rouba a cena, explorando com competência ímpar todas as possibilidades rítmico harmônicas da composição. A vigorosa pegada de Taylor, um dos mais técnicos bateristas de todos os tempos, acrescenta um molho de swing todo especial à execução.
Davis é capaz de elaborar uma delicadíssima balada como “Sweetness”, com a mesma maestria com que transita pelos temas mais aceleradas. Lírica e reflexiva, a composição poderia muito bem figurar no repertório de Bill Evans. A execução do líder é contida, intimista e o trompete melancólico de Byrd ajuda a produzir uma atmosfera de puro abandono.
Na abrasadora hard-rumba, apropriadamente denominada “Rhumba Nhumba”, a desenvoltura do quinteto e a intimidade com os ritmos latinos se evidenciam de maneira intensa. Taylor percute como se tivesse nascido em Havana e a brisa amena do Caribe dá o mote para uma das mais contagiantes faixas do disco. Atuações soberbas de McLean e do líder mostram que talvez não haja tanta distância entre Charlie Parker e Pérez Prado – aliás, Dizzy Gillespie já havia demonstrado isso antes.
Na opulenta “Millie’s Delight”, os cânones do hard bop estão todos à disposição do ouvinte. Nada de academicismos ou rebuscamentos – apenas a música em sua essência. Swing e vibração incontida, improvisos empolgantes e uma sensacional atuação de Davis, senhor absoluto das 88 teclas. Byrd incendeia a sessão e McLean elabora um solo verdadeiramente antológico, criativo e tecnicamente impecável.
“Minor Mind” é, provavelmente, a melhor faixa do disco, e nela se percebe porque o jovem pianista despertou tamanho interesse em monstros sagrados como Monk e Powell. A integração entre Byrd e McLean é quase sobrenatural e o discreto Jones aqui tem a chance de brilhar com grande intensidade. Lamentavelmente, após ter brindado o mundo com essa gema, Davis ficaria quase vinte anos sem gravar como líder, o que só viria a acontecer novamente em 1977, com o álbum “Ilumination”, para a Denon.
No início dos anos 60, Davis trabalhou como alfaiate, a fim de complementar o orçamento, mas não abandonou a música. Voltou a morar em Nova Jérsei e fazia arranjos ou escrevia temas para grupos locais. O retorno definitivo à música veio por intermédio do saxofonista Sonny Criss, cujo grupo Davis integraria entre 1966 e 1967. Em 1969, passou uma temporada na Índia, onde estudou a música daquele país. Ao retornar aos Estados Unidos, no início da década seguinte, juntou-se ao grupo de Sonny Rollins, outro entusiasta da música oriental e que, naquela época, havia mergulhado intensamente na cultura indiana. O álbum “Horn Culture”, de 1973, é fruto dessa parceria.
Em 1975, Davis passou uma nova temporada ao lado do velho amigo Art Blakey, a quem acompanhou no álbum “Child's Dance: Art Blakey & the Jazz Messengers, Vol. 1”, gravado naquele mesmo ano para a Prestige. Interessante salientar que nesse disco Davis dividia o piano com George Cables, John Hicks e Cedar Walton. Walter permaneceria ligado a Blakey até 1977, quando participou do álbum “Gypsy Folk Tales”, gravado pela Roulette.
Ao mesmo tempo, Walter continuava a liderar seus próprios grupos e por seus trios, quartetos e quintetos passaram nomes consagrados como Art Taylor e Tony Williams e então novatos como Carter Jefferson, Kenny Washington e os irmãos Branford e Wynton Marsalis. Sua pequena discografia como líder registra trabalhos para selos como Mapleshade, Debut, Owl, Denon e Steeplechase.
Nos anos 80, teve uma importante participação na trilha sonora do filme Bird, homenagem cinematográfica ao amigo Charlie Parker dirigida por Clint Eastwood. Ali, sob a produção e supervisão de Lennie Niehaus, Davis – que divide o piano com Monty Alexander e Barry Harris – atua ao lado de grandes músicos como Ron Carter, Charles McPherson, John Faddis, Ray Brown e John Guerin. Por um desses milagres tecnológicos, o próprio Parker, falecido em 1955, toca sax alto em todas as faixas, num primoroso trabalho de edição e remasterização.
Em 1983, fez parte do grupo Dameronia, criado por Philly Joe Jones para homenagear a obra do pianista e compositor Tadd Dameron. Também excursionou com o magistral Barry Harris, realizando uma série de concertos em duo de pianos e se apresentando em casas de enorme prestígio, como o Town Hall e o Lincoln Center, em Nova Iorque, e o Kennedy Center, em Washington.
Em 1987, lançou pela Mapleshade o álbum solo “In Walked Thelonious”, onde presta tributo ao ídolo e mentor Thelonious Monk. Davis conta que o disco foi uma sugestão do próprio Monk, cujo espírito lhe fez uma visita certa noite e lhe sugeriu as 14 músicas que deveriam integrar o álbum. Se a história é verdadeira ou não, ninguém sabe. O certo é que, após ouvir a gravação, o pianista – e amigo tanto de Monk quanto de Davis – Dwike Mitchell assim escreveu: “O que está registrado nos tapes não é Walter. É Monk, tocando pelas mãos de Walter”.
Uma de suas últimas aparições públicas foi em outubro de 1989, no concerto comemorativo dos 70 anos de Art Blakey, que contou com a participação de diversos ex-integrantes dos Jazz Messengers: Freddie Hubbard, Terence Blanchard, Jackie McLean, Donald Harrison, Wayne Shorter, Benny Golson e Curtis Fuller. Na época, a formação “oficial” dos Messengers incluía o trompetista Brian Lynch, o saxofonista Javon Jackson, o trombonista Frank Lacy, o pianista Geoff Keezer e o baixista Buster Williams e o show foi registrado no álbum “The Art of Jazz: Live in Leverkusen”, lançado pelo selo In & Out. Davis morreu prematuramente, no dia 02 de junho de 1990, aos 57 anos, em decorrência de complicações causadas pelo diabetes.
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