A BALADA DO MAR SALGADO
Música e outras coisas

A BALADA DO MAR SALGADO



O cálido sopro da brisa marinha acaricia as narinas e o murmúrio das ondas, chocando-se contra o resoluto quebra-mar, hipnotiza os ouvidos daqueles cinco homens que atravessam, com passos firmes, o pequeno cais. Promessas de mil aventuras e perigos espreitam os tripulantes daquela elegante escuna que ora se prepara para zarpar. Quatro indômitos lobos do mar ouvem, atentos, as últimas palavras do seu capitão, antes de içar as velas e partir rumo ao desconhecido. Um agridoce sabor, misto de reverência e esperança, perpassa a boca de cada um deles. O jovem capitão, decidido a singrar por mares nunca dantes navegados e a encontrar indizíveis tesouros, fita o horizonte ao longe e tenta, inutilmente, perscrutar os insondáveis propósitos de Netuno. Lentamente, a pesada âncora é içada. Nada mais há a ser feito. A sorte está lançada. Sem titubeios, a nau começa a cumprir o seu glorioso destino.

O deus dos mares foi generoso com aquele jovem e destemido capitão. Quando gravou este “Maiden Voyage”, poucos dias antes de completar 25 anos, Herbert Jeffrey Hancock tinha o mundo a seus pés – fama, prestígio e dinheiro – boa parte deste por conta dos direitos autorais do seu grande sucesso “Watermelon Man”. Apesar de novo, já acumulava uma experiência que muitos jazzistas mais velhos jamais ousariam conceber. No currículo, além dos elogiados álbuns com o então empregador Miles Davis, importantes participações em vários discos como acompanhante (Donald Byrd, Jackie McLean e Phill Woods tiveram a honra de tê-lo como sideman), além de alguns outros como líder. Destes, pelo menos uma obra-prima irretocável: o extraordinário “Empyrean Isles”, de 1964.

Além disso, é o autor de inúmeros standards jazzísticos, como “Cantaloupe Island”, “Riot”, “Goodbye to Childhood”, “The Sorcerer” e “Speak like Child”. Também compôs trilhas sonoras para o cinema, onde se destacam a do enigmático “Blow Up” e a do comovente “Round Midnight” (laureada com o Oscar). Músico versátil, criativo e de espírito inquieto, Herbie sempre foi um incansável pesquisador (mergulhou de cabeça nos ritmos africanos, tendo chegado ao ponto de mudar seu nome para Mwandishi, nos anos 70), mas, ao mesmo tempo em que construiu uma sólida carreira, cometeu algumas heresias em sua trajetória. Sua bem sucedida (comercialmente falando) incursão pelo fusion e pelo pop até hoje provoca urticárias entre os puristas mais renhidos, embora, a bem da verdade, jamais tenha abandonado totalmente o jazz.

Nascido a 12 de abril de 1940, Hancock logo demonstrou ser um prodígio ao piano, tendo começado seus estudos aos sete anos e, aos onze, tornando-se um destacado solista da Orquestra Sinfônica de Chicago. Foi fisgado pelo jazz ainda no colegial e sua influência mais perceptível é o lírico Bill Evans. Formou-se em música e engenharia elétrica pela Faculdade de Grinnell, nunca tendo escondido sua admiração pelas inovações tecnológicas – foi um dos primeiros jazzistas a aderir ao piano elétrico e aos sintetizadores. Convidado por Miles Davis para integrar sua banda, permaneceu com o trompetista de 1963 a 1968 sendo, juntamente com Wayne Shorter, o principal responsável pela sonoridade quase cubista daquele mítico quinteto. Durante esse período, também gravava em seu próprio nome, com certa regularidade, alguns excelentes discos para a Blue Note – esgotamento criativo, portanto, era algo que passava ao largo do nosso bravo capitão.

Retomando a viagem da nossa valorosa escuna, os companheiros de Hancock nessa viagem são o também jovem e igualmente prodigioso Freddie Hubbard (trompete) e dois companheiros da banda de Miles Davis – o baixista Ron Carter e o baterista Tony Williams (este, com inacreditáveis 20 anos, já acumulava uma milhagem náutica considerável), além do saxofonista George Coleman, recentemente substituído por Wayne Shorter na banda de Miles. Coleman, com seu fraseado obliquo e seus solos pouco convencionais, era um mestre da complexidade rítmica mas, por alguma razão, não teve muito destaque em sua breve passagem pelo combo liderado por Davis. Em “Maiden Voyage” ele está extremamente à vontade para desfiar a sua técnica soberba, a serviço de um repertório impecável – talvez por isso mereça o posto de imediato.

As sofisticadas texturas harmônicas propostas por Hancock, que assina todas as faixas, revelam que as águas inicialmente singradas por seu patrão no notável “Kind Of Blue” ainda não haviam sido totalmente exploradas – e o pianista e sua tripulação se encarregam de fazê-lo com maestria e competência técnica ímpares. Abrindo o álbum, um clássico do jazz moderno: a climática “Maiden Voyage”, na qual o sax tenor de Coleman e o trompete de Hubbard exalam uma contida sensualidade, fazendo um belíssimo contraponto ao piano delicado e ultracool do líder. A destacar o maravilhoso trabalho de Williams com os pratos e o magistral solo de Coleman – a escuna do capitão Hancock navega por águas límpidas e tranqüilas.

Uma tempestade se aproxima. Em “The Eye Of The Hurricane” pode-se sentir a violência da borrasca a chacoalhar a nossa querida nau. Sua experiente tripulação não se intimida e manda ver um hard bop nada ortodoxo, onde o capitão exibe toda a sua exuberante técnica – o dedilhado feérico conduz a tripulação através da tormenta, com o apoio mais que preciso do imediato Coleman. Em seguida, mar calmo novamente: é a bela “Little One”, uma balada pra lá de cool, na qual recai sobre o baixo de Carter a responsabilidade de sustentar a melodia, com outro excepcional solo de Coleman. Ecos de Wayne Shorter povoam a quase swingante “Survival Of The Fittest”, com seu andamento surpreendente, cheio de modulações e variações climáticas – é a vez do grande Freddie Hubbard mostrar toda a sua competência técnica.

O gran finale ficou a cargo da delicada “Dolphin Dance”, mais um clássico da inesgotável oficina de idéias do Capitão Hancock. Sua levada hipnótica faz do ouvinte um clandestino de luxo a bordo da preciosa escuna. Podem-se perceber os contornos das belas praias que aguardam os nossos sedentos marujos, onde sensuais dançarinas, vestidas com diáfanos sarongues, os esperam para um inesquecível banquete tropical. Coleman e Hubbard, outra vez, estão soberbos. Carter e Williams executam com a habitual maestria a tarefa de manter o prumo da nau. O capitão dispensa comentários – mantém uma postura discretíssima, destilando econômicos porém certeiros acordes – mas jamais deixa dúvidas sobre quem está no comando da embarcação. A viagem chegara ao fim!

O tombadilho agora está vazio. A escuna, atracada no porto, retornou incólume à segurança inquietante do cais. Ao longe, o tremeluzente farol cumpre a sua nobre sina de alertar os navios para os incontáveis perigos que se escondem sob as águas. Nos bares próximos à zona portuária, alguns velhos marinheiros, homens de pele curtida de sal e de sol, tartamudeiam à meia luz e especulam sobre um valioso tesouro que, diz-se à boca pequena, teria sido encontrado por um certo Capitão Hancock e sua pequena tripulação. De repente, faz-se um silêncio solene naquele bar enfumaçado e lúgubre. Então, aos primeiros acordes de “Dolphin Dance”, os ouvidos embevecidos daqueles rudes lobos do mar são presenteados com um som mais belo que o mais belo canto da sereia. Não é preciso dizer mais nada. Todos ali souberam, no mesmo instante, que o bravo Capitão Hancock havia, finalmente, aberto o seu baú do tesouro.

P. S.: Post dedicado aos queridos amigos Celijon Ramos e James Magno Farias, com um afetuoso abraço.



loading...

- A Luta Corporal
Fosse um boxeador, George Edward Coleman provavelmente seria um peso-pesado capaz de rivalizar com lendas do porte de Joe Frazier, Muhammed Ali ou seu xará George Foreman. Como preferiu ganhar a vida tocando saxofone, e não trocando socos em um ringue,...

- Caso VocÊ Ainda NÃo Tenha Escutado...
De 27 de fevereiro, quando sofreu um pavoroso acidente no metrô de Nova Iorque que lhe custou o braço esquerdo, a 10 de maio de 1989, quando as complicações decorrentes do acidente por fim consumiram o resto de suas parcas energias, ele agonizou...

- O IrmÃo Mais Velho De "kind Of Blue"
Certa feita, perguntaram para Charlie Watts, titular das baquetas dos Rolling Stones (grande fã de Charlie Parker e autor de alguns bons discos de jazz, inclusive com a participação de respeitados músicos ingleses como Evan Parker), quem era o maior...

- Steve Lacy, O GÊnio Que Reinventou O Sax Soprano
Em uma fria e deserta praia ao norte da Califórnia, um casal apaixonado troca carinhos e juras de amor eterno. O frêmito que percorre seus corpos denuncia a paixão que os une. Ao seu lado, um cabeludo magricela sopra um nauseabundo sax soprano, cometendo...

- A última Grande Cartada De Miles
Em seu longo percurso de exploração sonora, nas cerca de quatro décadas em que esteve atuante, Miles Davis (1926-1991) criou e indicou novos rumos, dialogando com seu tempo e mostrando caminhos possíveis futuros. Curiosamente, o free jazz foi um dos...



Música e outras coisas








.