A rigor, não é algo raro o fato de que diversos membros de algumas famílias se dediquem à mesma atividade. Na música, então, esse fato chega a ser bastante corriqueiro, sendo que no jazz existem verdadeiras dinastias como a dos Marsalis. Todavia, não é propriamente comum coexistirem três irmãos extremamente talentosos dividindo o mesmo teto (e, muitas vezes, o mesmo palco), razão pela qual os irmãos Heath (Percy, Albert e Jimmy), Jones (Thad, Hank e Elvin) e Montgomery (Buddy, Monk e Wes) sempre mereceram bastante atenção dos amantes do jazz.
Para além da mera curiosidade genética, os irmãos Montgomery realmente mandavam muitíssimo bem. Nascidos em Indianápolis, Monk (William Howard), Wes (John Leslie) e Buddy (Charles) construíram boa parte de suas respectivas carreiras atuando juntos. Dos três, o que adquiriu maior notoriedade foi o irmão do meio, Wes, que chegou a ser aclamado pelo crítico Ralph Gleason como “a melhor coisa que aconteceu com a guitarra depois de Charlie Christian” e foi um dos maiores inovadores da guitarra jazzística.
Decerto, Charlie Christian, o gênio que aboliu o papel meramente rítmico da guitarra e que deu ao instrumento características melódicas, é a maior influência de Wes, que somente aprendeu a tocar aos 19 anos, idade em que a maioria dos músicos de jazz geralmente já apresenta um estilo próprio. Reza a lenda que Montgomery teria sido proibido de ensaiar em casa, por conta do barulho, que incomodava a vizinhança. A solução foi trocar a palheta pelo dedo polegar, numa técnica que dava ao seu toque uma sonoridade bem menos agressiva e muito mais melodiosa.
Mesmo começando tarde seu aprendizado, o enorme talento fez a diferença e Wes não tardou a se profissionalizar, fazendo o circuito de clubes e casas noturnas de Indianápolis. Ingressou na orquestra de Lionel Hampton no final dos anos 40, ali permanecendo por cerca de dois anos. Voltou à cidade natal no início dos anos 50, desdobrando-se em um emprego de operário em uma fábrica de aparelhos de rádio durante o dia e, durante a noite, como guitarrista em bares e casas noturnas, como o Turf Bar e o Missile Room.
É nesse período que Monk, Wes e Buddy formam o grupo Mastersounds, nome que foi posteriormente trocado para Montgomery Brothers e cuja formação incluía o baterista Benny Barth e o pianista Richard Crabtree. O combo faz algumas gravações esparsas (a destacar, o excelente “Fingerpickin’”, de 1957, creditado a Wes,) e chegou a se apresentar em cidades como Chicago e San Francisco, despertando o interesse de Cannonball Adderley, que o assistiu no clube Missile Room. O saxofonista, encantado com a originalidade de Wes, indicou-o ao célebre produtor Orrin Keepnews, dono da Riverside Records.
Contratado pela Riverside em 1959, o estilo altamente fluido e inventivo de Wes causou enorme impacto no meio jazzístico – no mesmo ano ele seria agraciado com o prêmio “New Star”, concedido pela prestigiosa revista Down Beat. Álbuns como “The Incredible Jazz Guitar” (1960), “Movin’ Along” (1961) e “Full House” (1962) se tornaram referência obrigatória para várias gerações de jovens guitarristas como George Benson, Doug MacDonald e o brasileiro Hélio Delmiro.
Ele ainda gravaria pelos selos Verve e A&M, onde desfrutaria de enorme sucesso comercial – seria, portanto, extremamente criticado por esta opção – e, ao logo da carreira, teria como acompanhantes músicos da estatura de Tommy Flanagan, Wynton Kelly, James Clay, Sam Jones, Victor Feldman, Louis Hayes, Hank Jones, Jimmy Cobb, Johnny Griffin, Paul Chambers e Freddie Hubbard.
Todavia, embora Wes fosse a estrela da família, o talento dos outros irmãos Montgomery não merece ser desprezado. O baixista Monk, mais velho, foi um dos precursores no uso do baixo elétrico, tendo tocado com Lionel Hampton (onde conheceu Quincy Jones, Gigi Gryce e Clifford Bbrown, seus parceiros na orquestra), Red Norvo, Jack Wilson, Art Farmer, Hampton Hawes e Kenny Burrell. Embora utilizasse habitualmente o baixo acústico, sua atuação com a versão eletrificada do instrumento era realmente inovadora, merecendo do crítico Nat Hentoff a observação de que ele “soava como um pequeno exército”.
O caçula, Buddy, também era um músico bastante versátil – tocava piano e vibrafone – e iniciou sua carreira profissional ao lado do cantor Big Joe Turner, no final dos anos 40. Também acompanhou Miles Davis e Slide Hampton, além de haver gravado alguns bons discos como líder, ao lado nomes como Cláudio Roditi, Eddie Harris, Ron Carter, Lenny White e David “Fathead” Newman. Integrou o supergrupo “Riverside Reunion Band”, juntamente com Barry Harris, Nat Adderley, Jimmy Heath e outros.
No disco “Groove Yard”, gravado para a Riverside em 1961, os três irmãos são acompanhados pelo baterista Bobby Thomas (pouco conhecido, mas que tocou com Paul Desmond, Hubert Laws e Stan Getz). O blues “Back To Bock”, de Buddy, abre o álbum de maneira bem cadenciada, com Wes adotando o fraseado relaxado e quase intimista que caracteriza a sua forma de tocar. “Just For Now”, outra composição do pianista, possui uma pegada mais acelerada, fazendo uma discreta citação à música oriental e com direito a um excelente solo de Thomas. “If I Should Loose You” é outro grande momento do álbum, merecendo uma execução altamente lírica.
O guitarrista mostra sua faceta de compositor na swingante “Doujie”, bebop de elaborada concepção harmônica, onde o piano ondulante de Buddy se destaca. “Heart Srings” é outro blues, de autoria de Milt Jackson (maior influência de Buddy ao vibrafone), com Wes extraindo da sua guitarra a atmosfera lamentosa que a composição exige e Monk construindo o arcabouço melódico com uma exuberância invulgar.
O West Coast está muito bem representado, graças às sacolejantes composições de Carl Perkins (“Groove Yard”) e Harold Land (“Delirium”). Nesta última Thomas, mais uma vez, rouba a cena, com um solo esfuziante e de grande complexidade. Uma versão arrasadoramente funky de “Remember”, de Irving Berlin, fecha o disco de forma magistral – uma demonstração de que as inovações estilísticas de Wes podiam ser aplicadas a qualquer contexto, até mesmo em um velho standard da década de 20.
Wes morreu, prematura e inesperadamente, no dia 15 de junho 1968, com apenas 43 anos, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Monk faleceu em 20 de maio de 1982, em Las Vegas, onde levava uma vida tranqüila como disk-jóquei de uma rádio local. Buddy permaneceu entre nós até 14 de maio de 2009, desfrutando de uma pacata e merecida aposentadoria. Três vidas unidas pelo sangue e pelo jazz.
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