VIDA E MORTE SOBRE O PALCO
Música e outras coisas

VIDA E MORTE SOBRE O PALCO



Warne Marion Marsh veio ao mundo no dia 26 de outubro de 1927, na cidade de Los Angeles. A família de classe média tinha um ótimo padrão de vida, graças ao trabalho do pai, Oliver Marsh, que construiu uma sólida reputação como cameraman nos estúdios de Hollywood, tendo trabalhado em produtoras como Tiffany Productions, First National e na poderosa Metro-Goldwyn-Mayer.

A musicalidade de Marsh se deve, grandemente, à influência da mãe, Elizabeth. Violinista de formação clássica e dona de grande cultura musical, ela chegou a trabalhar no cinema mudo, fazendo o fundo musical para as cenas que se desenrolavam nas telas e também atuou em orquestras de alguns estúdios de cinema. Aos três anos, o pequeno Warne já recebia da mãe os primeiros rudimentos do piano.

Sempre incentivando o filho, Elizabeth não se furtava a comprar-lhe instrumentos como o clarinete baixo e a tuba, até que, aos onze anos, Warne finalmente decidiu-se pelo sax tenor. Além das lições domésticas, o jovem Warne também recebia educação musical formal na escola e, naquele período de formação, ambicionava tornar-se músico de algum estúdio de cinema, talvez por conta da atividade do pai e de uma tia, a atriz Mae Marsh, que trabalhou com grandes diretores como David. W. Griffith e John Ford.

Em 1941, uma tragédia abalou a família Marsh: Oliver Marsh faleceu, em decorrência dos problemas com o álcool. Embora não mantivesse com o pai uma relação tão próxima quanto aquela que mantinha com a mãe, Warne sentiu o golpe e tornou-se um adolescente ainda mais tímido e reservado.

A música passou a ser o foco central de sua vida e a ela passou a se dedicar com empenho ainda maior. Consta que o jovem praticava até doze horas diárias, e tentava reproduzir solos de jazzistas de renome, como o de Coleman Hawkins em “Body and Soul” e o de Ben Webster em “Cottontail”. Além disso, descobriu a magia de Lester Young, sua primeira grande influência ao saxofone.

Apesar da morte precoce, o previdente Oliver não deixou sua família desamparada, pois havia deixado um fundo de investimento para ser dividido entre seus três filhos, cabendo a Elizabeth a responsabilidade de administrá-lo. Em 1942, Warne entrou para a Hollywood Canteen Kids, uma big band formada por adolescentes, onde também tocavam outros futuros astros do jazz, como o pianista Andre Previn e o trombonista Billy Byers, e que chegou a acompanhar a atriz e cantora Jane Powell.

Em 1944, já afastado da Canteen Kids, Marsh se juntou a outra big band de adolescentes, a Hoagy Carmichael's Teenagers, sob a tutela do pianista e compositor de “Stardust” e “Georgia On My Mind”, que se apresentava semanalmente em um programa de rádio. Ali, o jovem Warne começou a prestar atenção em uma novíssima abordagem jazzística, chamada bebop, que vinha causando uma verdadeira revolução no estilo e que se espalhava a partir de Nova Iorque.

Disposto a aprofundar seus estudos musicais, Marsh ingressou na University of Southern California, mas, insatisfeito com o convencionalismo do curso, abandonou-o ainda no primeiro ano. Entre 1946 e 1947, Marsh esteve no exército, tendo servido, primeiramente, na Virgínia, onde integrou, como saxofonista, a Second Group Special Services Band. Muitos de seus colegas da banda eram fãs de jazz e, sempre que podiam, promoviam concorridas gigs, onde não faltavam, no repertório, composições de Dizzie Gillespie, Charlie Parker e Bud Powell.

Transferido para Fort Monmouth, Nova Jérsei em 1947, Warne, finalmente, teve a chance de ver de perto os seus ídolos. Nos finais de semana de folga, corria para a vizinha Nova Iorque, a fim de assistir às apresentações de seus novos e velhos heróis: Coleman Hawkins, Lester Young, Bud Powell, Thelonious Monk e, sobretudo, Charlie Parker. Após a dispensa do exército, Marsh voltou brevemente à Califórnia, onde tocou algum tempo na orquestra do baterista Buddy Rich e no grupo do clarinetista Hal McKusick.

Logo em seguida, retornou a Nova Iorque, onde começou a célebre associação com o pianista Lennie Tristano, a quem foi apresentado pelo trompetista Don Ferrara. Dono de um estilo único e absolutamente original, Tristano agregava em torno de si uma verdadeira confraria de jovens músicos, dispostos a modificar a cara do jazz, mas sem abrir mão das conquistas harmônicas advindas com o bebop.

Durante o tempo em que tocou – e estudou – com Tristano, Marsh fez amizade com outro jovem e talentoso saxofonista, chamado Lee Konitz, que se traduziria em dezenas de gravações e que perduraria pelas décadas seguintes. As gravações de Marsh e Konitz com Tristano, feitas em 1949 para a Capitol e reunidas no álbum “Intuition”, até hoje são consideradas um marco do jazz moderno. Muitos críticos reconhecem nessa obra, além da influência de compositores eruditos como Igor Stravinsky e Arnold Schöenberg, a gênese do estilo free consagrado por Ornette Coleman quase uma década depois.

As jams que Tristano promovia no estúdio montado em sua casa reuniam, além dos pupilos Marsh, Konitz, Sal Mosca e Phil Woods (os dois últimos também estão entre seus mais célebres alunos), astros do calibre de Charlie Parker, Billy Bauer, Charles Mingus, Roy Haynes e Max Roach. Nesse ambiente de saudável concorrência, Marsh foi afiando o seu talento, a ponto de, como conta o baixista Peter Ind, intimidar o grande Stan Getz – com quem, aliás, Marsh é muitas vezes comparado.

A amizade com Tristano era tão estreita que Marsh e a esposa, Geraldyne, chegaram a morar na casa do pianista durante os anos 50. Warne também construiu uma senhora reputação como acompanhante, desenvolvendo trabalhos ao lado de Billy Eckstine, Joe Albany, Red Mitchell, Stan Levey, Roy Eldridge, Sal Mosca, Art Pepper, Jimmy Giuffre, Lew Tabackin, Bill Evans, Chet Baker, Buddy Rich, Charles Lloyd, Ben Tucker e outros.

Dividido entre Los Angeles e Nova Iorque durante boa parte dos anos 50 e 60, Marsh finalmente resolveu se estabelecer, em definitivo, na cidade natal, em 1966. Nessa época, integrou-se à orquestra do pianista, compositor e arranjador Clare Fischer, onde também pontuavam, entre muitos outros, Bud Shank, Conte Candoli, Bill Perkins e Larry Bunker.

Embora o dinheiro deixado pelo pai lhe garantisse uma existência relativamente tranqüila e o mantivesse afastado da massacrante rotina de trabalho da grande maioria dos músicos, obrigados a tocar seis ou sete noites por semana nos clubes, Marsh não era nenhum milionário e, eventualmente, complementava a renda familiar dando aulas de música, consertando aparelhos de tv e limpando piscinas.

Em 1969, Marsh recebeu alguma atenção por parte da crítica, graças ao álbum “Ne Plus Ultra”, em que divide a liderança de um quarteto sem piano com o altoísta Gary Foster. Em 1972, ele se uniu ao Supersax, grupo fundado por Med Flory e Buddy Clark, que se dedicava a transcrever e reinterpretar os solos de Charlie Parker, em arranjos orquestrais.

Integrado por feras do quilate de Conte Candoli, Frank Rosolino, Carl Fontana, Jack Nimitz, Jake Hannah e Lou Levy, a banda recebeu o prêmio Grammy de melhor álbum de jazz instrumental de 1973, por “Supersax Plays Bird”, lançado pela Capitol, e também o Grammy de melhor performance de jazz por grupo, em 1974. Marsh permaneceria ligado à banda até 1977, às vezes como membro efetivo e às vezes participando apenas de turnês ou gravações. No ano seguinte, o álbum “Apogee”, gravado para a Atlantic e co-liderado pelo saxofonista Pete Christlieb, mereceria alguma repercussão junto à crítica especializada.

Entre 1974 e 1976, Marsh estabeleceu-se temporariamente na Europa, realizando turnês e concertos por todo o continente, obtendo ótima receptividade por parte do público e da crítica. Em dezembro de 1975, reencontrou o velho amigo Lee Konitz e com ele realizou uma aplaudida turnê que incluiu shows na Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda, Bélgica, França e Inglaterra.

Tocando em clubes célebres como o Cafe Montmartre, em Copenhaguen, ou no Ronnie Scott’s, em Londres, a dupla encantou o Velho Continente, na companhia de grandes músicos europeus, como Peter Ind e Niels-Henning Orsted Pedersen (contrabaixo), Dave Cliff (guitarra), Ole Koch Hansen (piano) e Svend Erik Norregard e Alan Lewitt (bateria). As sessões do Montmartre foram gravadas e lançadas em 2009, em um luxuoso álbum quádruplo, pelo selo Storyville.

Alguns anos depois, em 1980, Marsh voltou à Escandinávia, mais precisamente, a Estocolmo, a fim de gravar com o velho amigo Red Mitchell. Aproveitando a estadia na Suécia, o saxofonista retornou à Dinamarca, onde realizou um concerto para uma rádio local, no dia 21 de abril. Acompanhando o saxofonista, está o trio do pianista Kenny Drew, integrado pelo baixista Bo Stief e pelo baterista Aage Tanggaard. Mais uma vez, a sessão foi registrada pela Storyville, que lançou o álbum em cd, em 1999. O título, mais que apropriado, é “I Got A Good One For You”.

Drew foi, sem dúvida, um dos mais bem aquinhoados pianistas de todos os tempos. Herdeiro direto de Powell e tributário das invenções harmônicas do bebop, estabeleceu-se na Dinamarca ainda nos anos 60 e por lá construiu uma sólida carreira musical, atuando também como editor e produtor, além de ter sido, durante muito tempo, o pianista oficial do Cafe Montmartre.

Os demais integrantes do seu trio se colocam entre os mais hábeis músicos dinamarqueses. Stief, por exemplo, exibe em seu impecável currículo, trabalhos ao lado de Miles Davis, Stan Getz, Dizzy Gillespie, Dexter Gordon, Johnny Griffin, Jackie McLean, George Russell e Ben Webster, entre outros. Não menos expressivo é o rol de músicos acompanhados por Tanggaard, ex-aluno de Ed Thigpen, que inclui gente como Roland Hanna, Paul Bley, Thad Jones, Sonny Stitt, John Lewis, Kai Winding, Roy Eldridge, Johnny Griffin, Stan Getz, Ernie Wilkins, Chet Baker, Lee Konitz, Dexter Gordon, Clark Terry e Duke Jordan.

A primeira faixa, “I Got A Good One For You”, é baseada na melodia de “It’s You Or No One”, de Jule Styne, e possui uma pegada contagiante. Fazendo jus à influência de Powell, Drew demonstra seu amplo domínio do teclado e seu trabalho com as notas mais agudas é exemplar. O líder também exibe sua técnica singular, arriscando-se sempre em seus solos, em uma exuberante combinação de arrojo e versatilidade.

Duke Ellington se faz presente com uma versão inebriante de “Sophisticated Lady”. Marsh aqui revela porque a comparação com Stan Getz não é inoportuna. Seu timbre transmite placidez e uma certa melancolia. Stief e, sobretudo, Drew, injetam na interpretação a dose exata de lirismo e elegância, auxiliados pela percussão discreta e eficiente de Tanggaard. Uma versão digna de figurar entre as melhores já gravadas.

“On Green Dolphy Street”, outro belíssimo standard, é interpretada de forma nada ortodoxa. O quarteto desconstrói a melodia e reelabora o tema de forma a torná-lo quase irreconhecível. Marsh é um improvisador de notória inventividade e sua técnica superior lhe permite elaborar frases assombrosamente complexas. Não menos irrequieto, Drew é o parceiro perfeito para as aventuras harmônicas do líder, merecendo destaque, também, as vigorosas intervenções de Stief, tanto no acompanhamento quanto no solo.

Outra releitura nada convencional é a de “Sippin’ At Bells”, na qual o quarteto carrega nas tintas do blues e injeta no tema, de autoria de Miles Davis, uma alegria típica das orquestras de swing. Solos exemplares de Marsh e Drew, enquanto baixo e bateria cumprem o seu papel com a habitual solidez e o indispensável swing.

“Ev’ry Time We Say Goodbye”, de Cole Porter, é uma experiência lírico-auditiva, um dueto minimalista e confessional entre o sax de Marsh e o piano de Drew. Porter também está presente em uma acelerada versão de “Easy To Love”, na qual o quarteto prioriza o swing e a pujança rítmica do tema.

Outro petrado de Miles, “Little Willie Leaps” é uma bem-sucedida incursão pelo feérico universo do hard bop, com direito a solos extasiantes de Marsh, Drew e Tanggaard. Na belíssima versão de “Body And Soul”, o líder transborda emotividade, demonstrando ser também um intérprete de elevada sensibilidade e calando os detratores que o acusavam de ser excessivamente cerebral.

Parker não poderia faltar à festa e uma estupenda versão de “Ornithology” foi providenciada pelo grupo. Recordando a época do Supersax – Marsh fez o arranjo da versão gravada pelo grupo – o líder está perfeitamente à vontade para explorar o universo de Bird, com maestria e sagacidade. Aqui ele é o grande destaque, embora seus parceiros, mais contidos para que a estrela do espetáculo possa brilhar com intensidade, também mereçam todos os encômios.

Os standards “Star Eyes”, em uma versão intimista, e “Softly As In A Morning Sunrise”, sacolejante e com referências a “It Don’t Mean a Thing (If It Ain’t Got That Swing)”, complementam o set. Sem dúvida, o álbum é um dos pontos culminantes da carreira fonográfica de Marsh e merece ser descoberto por todos aqueles que amam o jazz.

Naquele ano, Marsh ainda gravaria o fantástico “Berlin 1980”, para a Gambit, ao lado do pianista Sal Mosca, do baixista Eddie Gomez e do lendário baterista Kenny Clarke. Sua discografia, embora seja de altíssimo nível qualitativo, é relativamente pequena e, exceção feita aos discos lançados pela Atlantic, a grande maioria de seus álbuns foi gravada por selos independentes, muitos deles europeus, como Gambit, Xanadu, Imperial, Kapp, Storyville, Revelation, Interplay e Criss Cross.

Embora continue sendo pouco conhecido do público, a admiração e o respeito do meio musical são imensos. Charlie Parker costumava elogiá-lo de forma efusiva e, muitos anos depois, são os músicos da nova geração, como o saxofonista Mark Turner e o guitarrista Kurt Rosenwinkel que não se cansam de nomear Marsh como uma de suas maiores influências. Para o vanguardista Anthony Braxton, Warne é “o maior improvisador vertical”, seja lá o que isso signifique.

Pode-se dizer que Marsh viveu a música com tamanha intensidade que até na morte esteve umbilicalmente ligado a ela. Na noite de 18 de dezembro de 1987, durante uma apresentação no clube Donte's, em Los Angeles, ele sofreu um ataque cardíaco enquanto interpretava “Out of Nowhere”, um dos seus temas favoritos, e o seu saxofone calou-se para sempre.

Para alguém que passou boa parte da vida apresentando-se nos mais renomados festivais de jazz do mundo e em verdadeiros santuários como o Half Note, o Village Vanguard, o Birdland, o Blue Note, o Cafe Montmartre ou o Ronnie Scott’s, morrer sobre o palco do Donte’s, o clube preferido de sua cidade natal, não poderia ser mais emblemático. Encerrou-se um ciclo iniciado naquela mesma cidade, sessenta anos antes. Desta vez, foi a música, sempre reverenciada por ele, que resolveu prestar-lhe homenagem, embalada em dignidade e alguma tristeza.


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