O VERMELHO É A COR DO JAZZ?
Música e outras coisas

O VERMELHO É A COR DO JAZZ?



Se o jazz tem uma cor, possivelmente é vermelha. Afinal, são tantos os “Reds” que têm contribuído para construir e dignificar o edifício jazzístico... Red Garland, Red Rodney, Red Callender, Red Norvo, Red Allen, Red Kelly, Red Mitchell – se formos procurar com afinco, a lista será enorme. Mas, por ora, fiquemos com apenas um deles!

Keith Moore “Red” Mitchell é habitualmente considerado o mais talentoso e criativo baixista associado ao jazz da Costa Oeste (ele que, curiosamente, nasceu em Nova Iorque, no dia 20 de setembro de 1927 e foi criado em Nova Jérsei). O adjetivo genial também é bastante associado à sua pessoa, bastando uma audição de suas inúmeras gravações para ter certeza de que tamanho prestígio é mais que merecido.

O insuspeito Ray Brown declarou de viva voz ao jornalista e então aluno Zuza Homem de Melo, quando este estudava contrabaixo na prestigiosa School Of Jazz, no final da década de 50: “Só conheço dois gênios no contrabaixo: Red Mitchell e Oscar Pettiford”. A opinião de Brown era compartilhada pela revista Down Beat, que em artigo publicado em 1956, tecia rasgados elogios a Mitchell, e pelo crítico Leonard Feather, que o considerava o melhor solista do contrabaixo jazzístico de todos os tempos.

O apelido desse pianista por formação que se tornou um baixista por opção se deve aos cabelos ruivos. Inquieto por natureza, Mitchell sempre foi muito pouco fiel às situações estabelecidas e mudanças radicais eram uma constante em sua vida. A primeira delas foi abandonar o curso de engenharia na Universidade de Cornell, trocando-o pelas aventuras proporcionadas pela carreira militar.

Servindo ao exército entre 1947 e 1948, aproveitou para trocar o piano, que tocava desde a tenra infância, pelo contrabaixo. A forma como se aproximou do novo instrumento é hilariante: trocou (mais uma vez o verbo trocar parece traçar os destinos do moço) 15 caixas de cigarro por um contrabaixo usado.

Após algumas semanas de exclusiva dedicação ao novo companheiro, agregou-se à banda do exército, já como contrabaixista, e nunca mais deixou de usar o volumoso instrumento (embora, vez por outra, fizesse incursões ao piano e ainda cantasse e tocasse sax alto e clarineta). Suas maiores influências foram Ray Brown, Milt Hinton, Al McKibbon e Charles Mingus.

Dispensado do exército em 1948, Red fez o habitual périplo pelos clubes da Big Apple, tocando com o cantor Jackie Paris, integrando orquestras como as de Charlie Ventura e Woody Herman e acompanhando grandes músicos como Mundell Lowe, Charlie Parker, Red Norvo e Gerry Mulligan. Foi por intermédio de Mulligan, com quem tocava à época, que Mitchell trocou a enfumaçada Nova Iorque pelas ensolaradas praias da Califórnia (mais uma troca), em 1954.

Estabelecido em Los Angeles, ele não demorou para se tornar referência na cena local, tocando com virtualmente todos os nomes do Wes Coast, de Hampton Hawes a Jim Hall, passando por André Previn, Chet Baker, Stan Getz, Jimmy Raney, Harold Land, Zoot Sims, Jimmy Rowles, Bobby Brookmeyer, Al Cohn, Warne Marsh, Russ Freeman, Conte Candoli e Jimmy Giufree.
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Também acompanhou ou foi acompanhado por luminares como Dizzy Gillespie, Phil Woods, Lester Young, Milt Jackson, Sonny Rollins, Booker Ervin, Miles Davis, Benny Carter, Sonny Clark, Joe Pass, Billie Holiday, Duke Jordan e Ornette Coleman e tocou durante um bom tempo na orquestra dos estúdios MGM.

Sua discografia como líder é esparsa, mas de alta qualidade, espalhada por selos como Bethlehem, Contemporary, Storyville, Pacific, Mercury e SteepleChase. Um dos pontos altos é o álbum “Presenting Red Mitchell”, gravado para a Contemporary em 26 de março de 1957. No acompanhamento, o jovem Billy Higgins, que então dava os primeiros passos de sua vitoriosa carreira como um dos mais completos bateristas do jazz e dois músicos talentosos, embora imerecidamente obscuros: James Clay e Lorraine Geller.

O primeiro era um saxofonista/flautista texano, que granjeou certa notoriedade por seu trabalho com Booker Ervin, Bill Perkins, Lawrence Marable e Wes Montgomery. Seu disco "The Sound of the Wide Open Spaces", ao lado do também saxofonista David "Fathead" Newman, é um pequeno clássico do jazz.
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A segunda, era uma pianista de grandes recursos técnicos e profunda conhecedora do idioma bop, esposa do saxofonista Herb Gelller e que viria a falecer, prematuramente, em outubro do ano seguinte, em decorrência de um ataque cardíaco. Além do marido, Lorraine acompanhou Shorty Rogers, Conte Candoli, Zoot Sims, Maynard Ferguson, Miles Davis, Stan Getz e Charlie Parker. Tinha apenas 29 anos por ocasião da sua morte.

Esse quarteto de qualidade superlativa gravou sete temas, onde predomina uma abordagem bopper, sem esquecer, é claro, da descontração e do relaxamento que caracterizam qualquer sessão gravada na Costa Oeste. Não por acaso, “Scrapple From The Apple”, de Charlie Parker, abre o disco de maneira vigorosa, com o líder exibindo a sua célebre inventividade nos solos e Clay emulando Sonny Rollins, construindo solos nada óbvios.

A climática “Rainy Night” é uma composição de Mitchel, cuja singeleza é realçada pela delicada flauta de Clay e pelo piano etéreo de Geller. A outra composição do líder incluída no álbum é a balada “I Thought Of You”, prenhe de lirismo, onde Geller, mais uma vez, merece o maior destaque, por conta da atmosfera quase lúdica que extrai das teclas. As intervenções de Clay, aqui novamente fazendo uso da flauta, também são dignas de nota.

Higgins, jovem e abusado, está soberbo em “Out Of The Blue”, de Miles Davis e sua integração com Mitchell é nada menos que telepática. Uma curiosa versão de “Paul’s Pal”, de Sonny Rollins, reserva ao ouvinte surpresas bastante agradáveis, sobretudo porque o tradicional sax tenor que estamos acostumados a ouvir foi trocado pela swingante doçura da flauta. Solos hipnóticos de Mitchell e os arabescos sonoros de Geller – inspiradíssima – fazem dessa releitura outro ótimo momento do álbum.

“Sandu”, de Clifford Brown, com sua estrutura calcada no blues, recebe uma reverente leitura, com o lamentoso sax de Clay se derramando por sobre a melodia, num misto de resignação e dramaticidade. Geller ataca o piano com volúpia e sagacidade (é, tem gente que ainda questiona a competência das mulheres no jazz) e Higgins, com o despudor típico da juventude, comete um solo furioso, capaz de deixar boquiabertos os bateristas mais experientes.

Fechando o álbum, uma deliciosa versão de “Cheek To Cheek”, cujo destaque absoluto fica por conta do irrepreensível Clay. Há algo de Sonny Rollins na forma aparentemente incansável com que ele ataca as palhetas do seu saxofone, indo dos registros mais graves aos mais agudos em frações de segundo, sem jamais perder o senso melódico. Bebop de primeira, com grandes intervenções de Geller – seu solo é primoroso – e a dobradinha Mitchell-Higgins funcionando como se tocasse junta há décadas. Se você é um apaixonado por jazz, esse disco não pode faltar em sua estante. Se ainda não é, esse disco serve como uma excelente flecha do Cupido, capaz de arrebatar, de vez e para sempre, o seu coração para a excelente causa do jazz.

Em 1968, Mitchell se mudou para a Europa, fixando residência em Estocolmo. Atuou em orquestras locais e fez incontáveis turnês pelo velho continente, embora sempre encontrasse tempo para as temporadas anuais no seu querido Bradley’s, em Nova Iorque. Também era poeta, compositor e educador musical, tendo sido professor de ninguém menos que Charlie Haden.

Nos anos 70 e 80 tocou com Clark Terry, Tommy Flanagan, Lee Konitz, Herb Ellis, Kenny Barron, Hank Jones, Horace Parlan e Roger Kellaway, com quem desenvolveu uma parceria das mais interessantes. Em 1992, retornou aos Estados Unidos, estabelecendo-se em Salem, Oregon. Poucos meses depois, exatamente no dia 08 de novembro, ele sofreria um infarto fulminante. Para honrar a memória desse grande e generoso músico, a viúva Diane criou o Red Mitchell Memorial Fund Scholarship, fundo destinado a subsidiar os estudos de jovens contrabaixistas.

Se estivesse vivo, Red Mitchell completaria 82 anos exatamente hoje, daí porque esta postagem também é, à sua modesta maneira, uma pequena forma de homenagear esse fantástico instrumentista, um dos mais requisitados da história do jazz (sua discografia como sideman é quilométrica) e que influenciou diretamente grandes músicos, como Scott LaFaro e Niels-Henning Ørsted Pedersen. Red rules!



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