PLAY IT AGAIN, VON!
Música e outras coisas

PLAY IT AGAIN, VON!


É impossível não simpatizar logo de cara com o sorridente coroa que, em mangas de camisa, estampa a capa do álbum “Doin’ It Right Now”. As fotos que ilustram o disco, tiradas em uma oficina ou num antigo depósito, parecem revelar uma pessoa simples, alegre e de bem com a vida. Seu nome é Earl Lavon Freeman e embora não esteja entre os músicos mais conhecidos do público, ele é considerado um dos saxofonistas mais influentes de todos os tempos. Diga-se, de passagem, que todos os que conviveram com ele são unânimes em afirmar: Von, como é mais conhecido, é a simplicidade em pessoa. Vamos saber um pouco mais sobre sua vida e sua trajetória profissional?

Ele nasceu no dia 03 de outubro de 1922, em Chicago, Illinois, e a música era algo essencial na casa dos Freeman. O avô materno tocava guitarra, o pai era um policial apaixonado por jazz, que costumava gastar boa parte do salário na compra de 78 rotações de Guy Lombardo, Louis Armstrong e Fats Waller (de quem era amigo pessoal), e a mãe, dona de casa e guitarrista amadora, cantava e tocava com o coral da igreja. Três dos filhos do casal seguiram a carreira musical: Lavon, George e Eldridge, mais conhecido pelo apelido Bruz.

Aos sábados e domingos, um dos programas favoritos da família era assistir aos shows das orquestras de swing que se apresentavam no Regal Theater. Nesse ambiente tão fecundo, tocar era algo tão natural quanto comer ou respirar. Inicialmente, o pequeno Lavon recebeu aulas de piano – dadas por uma tia – quando contava com apenas dois anos. Certa feita, a família recebeu a visita de Fats Waller, que não se fez de rogado e tocou alguns números, para deleite de todos. Durante muito tempo, o orgulhoso Vonsky – como era chamado em casa – costumava se exibir para os vizinhos do bairro dizendo: “Fats Waller tocou nesse piano”.

Aos sete anos, improvisou o seu primeiro saxofone, usando um bocal de madeira e a campânula do gramofone de casa. Apesar das ameaças da mãe, de castigá-lo com rigor se o visse fazendo tal peripécia, o garoto aproveitava os momentos em que o pai saía para trabalhar, para praticar com o seu prosaico instrumento. O pai, aliás, costumava complementar o orçamento doméstico trabalhando como segurança em clubes e boates, e assim fez amizade com Coleman Hawkins, fato que teve enorme impacto sobre o pequeno Von, que chegou a conhecer pessoalmente o famoso saxofonista.

Pouco depois, já dominava o clarinete e o saxofone c-melody, mais tarde trocado pelo tenor. Aluno da DuSable High School, onde recebia educação musical formal, a cargo do diretor musical Walter Dyett, o garoto também estudava harmonia, pelas mãos do professor Bryant Jones. Entre seus colegas de turma, dois seriam músicos de renome: o saxofonista Gene Ammons e o trombonista Benny Green. O precoce Lavon começou a participar de suas primeiras gigs quando tinha apenas 12 anos, em clubes da cidade natal. Chegou a despertar a atenção do lendário Earl Hines, que o teria convidado para se integrar à sua big band, mas preferiu dar continuidade aos estudos.

Aos 16 anos, juntou-se à orquestra de Horace Henderson, irmão menos famoso de Fletcher Henderson, na qual permaneceria de 1939 a 1940, quando foi convocado pela Marinha. Entre 1941 e 1945 serviu às forças armadas e, durante esse longo período, sempre atuou em bandas e orquestras da corporação, sendo que pelo menos uma delas, a Hellcats Jazz Band, adquiriu bastante notoriedade. De volta à vida civil, foi um dos integrantes da banda do célebre Pershing Hotel Ballroom, um dos mais famosos clubes de Chicago, onde atuava na companhia dos irmãos George (guitarra) e Bruz (bateria).

Ali, teve a oportunidade de acompanhar algumas das maiores estrelas do jazz e do blues, de passagem pela cidade, como Charlie Parker, Lester Young, Roy Eldridge, Dizzy Gillespie, Don Byas, Ike Quebec, Jimmy Witherspoon, Dexter Gordon, Teddy Edwards e Jimmy Reed. Pelo menos duas sessões com Parker foram gravadas e lançadas em disco, posteriormente: “Bird Seed”, pela Stash, e “One Night In Chicago”, pela Savoy.

Parker, juntamente com Coleman Hawkins e Lester Young, compõe a tríade de saxofonistas que mais o influenciaram em seus anos de formação. Sobre essas influências, o próprio Von esclarece: “De Hawk eu tomei emprestada a potência e a sonoridade encorpada. De Pres, eu tentei pegar o lirismo. De Bird, eu tentei captar a inteligência musical. Todo mundo tocava bebop, mas Bird era o bebop em pessoa”. Mesmo reconhecendo as influências recebidas, ele é enfático quanto à necessidade do músico em ter a sua própria identidade: “Você tem que ter a sua própria voz. Essa é a única maneira de tocar jazz”.

De 1948 a 1950, Freeman também tocou com o pianista e bandleader Sun Ra, tendo sido um dos fundadores da “Arkestra”. Ele chegou a tentar a sorte em Nova Iorque, onde estavam os conterrâneos Wilbur Ware e Wilbur Campbell, no início da década de 50. Fez alguns testes para a Riverside, tocou em alguns clubes, mas a repercussão foi mínima e ele preferiu voltar para Chicago, tendo sido um dos precursores da chamada Chicago School of Tenor Saxophone, juntamente com luminares como Gene Ammons, Ira Sullivan (que também era um trompetista de primira linha), Johnny Griffin, John Gilmore, Fred Anderson e Clifford Jordan.

De volta à cidade natal, montou seus próprios grupos, apresentando-se em todo tipo de casa de espetáculo, incluindo casas de strip-tease. Um dos pianistas que passou por sua banda foi o fabuloso Ahamad Jamal, nos primórdios de sua carreira. O pianista, aliás, sempre demonstrou enorme carinho pela família Freeman e disse, certa vez: “Eu tive o prazer de trabalhar com Von, George e Bruz e, certamente, considero essa família como parte integrante da minha história musical”.

A primeira vez em que Von pôs os pés em um estúdio foi em 1954, acompanhando um grupo vocal chamado The Maples, para o selo Blue Lake. Em 1956, gravou com Andrew Hill – que era o pianista de sua banda e que havia substituído Jamal – em um single que incluía “After Dark” e “Down Patrick”, para o pequeno selo local Ping Records. Na banda, além de Vonsky e Hill, estavam Pat Patrick no sax barítono, Malachi Favors no contrabaixo e Wilbur Campbell na bateria.

No final dos anos 50, Freeman acompanhou os cantores de blues Jimmy Witherspoon, em gravações para a Vee-Jay, e Edward “Bunky” Redding, para a mitológica Chess Records. Também tocou com a orquestra de Al Smith, onde despontava o jovem pianista Horace Parlan, e participou de gravações sob a liderança de Milt Trenier, para a Cadet.

No início da década seguinte, Freeman já havia construído uma sólida reputação no meio musical de Chicago e foi um dos primeiros músicos locais a entender as idéias revolucionárias de Ornette Coleman. Descrito pela crítica como “um vanguardista em trajes de mainstream”, sua postura em relação ao nascente free jazz acabou por influenciar uma talentosa geração de jovens músicos, como o próprio Malachi Favors, o pianista Muhal Richard Abrams e o trompetista Lester Bowie, que iriam criar a Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM) e o irreverente Art Ensemble of Chicago.

Apesar de sua importância, Vonsky somente gravou o primeiro álbum como líder aos 49 anos de idade, graças ao empenho de Rahsaan Roland Kirk, seu admirador confesso, que o levou para a Atlantic e produziu o disco. “Doin’ It Right Now” foi gravado em 1972, nos estúdios da Atlantic, em Nova Iorque. Ao lado do saxofonista, alguns dos mais renomados músicos de Chicago: o pianista John Young, o baixista Sam Jones e o baterista Jimmy Cobb.

A faixa de abertura, “The First Time Ever I Saw Your Face”, é um monumento sonoro espetacularmente sublime e pertence àquele tipo especial de canção cuja beleza transcendente flerta com o indizível. A suavidade e a ternura que Freeman extrai do saxofone encontram poucos paralelos entre os tenoristas, emulando a sonoridade aveludada de um Lucky Thompson ou de um Lester Young. Folk em sua origem e gravada por nomes como Roberta Flack, Elvis Presley e Mel Tormé, é a obra musical mais conhecida do poeta e compositor inglês Ewan MacColl. Este, aliás, detestava a maioria das versões feitas para sua música – costumava se referir a elas como “A câmara dos horrores” – mas certamente aprovaria o trabalho do quarteto. Destaque também para o dedilhado etéreo do pianista, outro esmerado artífice de sentimentalidades.

De andamento mais acelerado, “White Sand” é uma composição de Freeman e possui raízes muito bem assentadas no bebop mais ortodoxo, embora se apresente com uma roupagem modernizante, com um discretíssimo sabor latino em alguns momentos. Improvisos cheios de dissonâncias – cortesia do líder e de Young – ajudam a moldar a personalidade inquieta do tema. Cobb tem a chance de exibir sua vigorosa batida. Na inclassificável parte final, a influência do free jazz se faz sentir, mas sem exageros ou hermetismos.

A belíssima “Lost In A Fog”, de Dorothy Fields e Jimmy McHugh, que Coleman Hawkins havia gravado em 1934, recebe um arranjo introspectivo, emulando a atmosfera ellingtoniana de “Mood Indigo”. Freeman imprime um contorno abstracionista ao seu fraseado, tornando a canção tão hipnótica que deixa o ouvinte com a sensação de que a trilha sonora do céu não deve ser muito diferente daquilo que está sendo tocado.

Em “Portrait Of John Young”, outro tema do líder, a abordagem é visceral, rascante. A performance de Freeman, que abusa dos registros médios, é abrasiva, robusta, e a influência de Charlie Parker é visível, transitando entre as cambiantes harmonias do bebop e a furiosa energia do hard bop. Destaque para o swing sem arestas de Young, discreto e vibrante, com um solo que mostra que um virtuose não é, necessariamente, aquele que toca as notas mais rápidas, mas sim aquele que as coloca de forma mais certeira.

Na faixa que dá nome ao disco, também de sua autoria, Freeman e o pianista Young se apresentam de maneira absolutamente desconcertante. Suas abordagens pagam tributo aos cânones do bebop e, ao mesmo tempo, rejeitam todos eles. Há algo de Ornette Coleman na forma com que o líder expele as notas, de maneira aparentemente desencontrada, e na maneira como mastiga os acordes e reelabora o blues. O baixo de Jones tem qualquer coisa de espectral, soando enviesado, como se atrasasse as notas em alguns momentos. Fragmentária, oblíqua, cheia de idas e vindas, repetições e riffs insanos é, certamente, é a mais radical do álbum.

“Sweet And Lovely”, de Gus Arnheim, Harry Tobias e Jules Lemare, é uma balada densa, executada de forma sóbria e romântica. O seu clima etéreo, quase camerístico, remete, mais uma vez, ao fraseado tranqüilo de Lester Young. Soberbo o trabalho de Jones, alinhavando a melodia com uma sensibilidade rítmica arrebatadora. O pianista Young, um dos mais atuantes da cena musical de Chicago, percute as teclas com suavidade e lirismo, nesta que é uma das mais belas faixas do álbum.

“Catnap” e “Brother George”, ambas de Freeman, completam o álbum. A primeira é um verdadeiro frenesi harmônico, rápida e dardejante, com a gigantesca sombra de Parker e Powell se projetando, altaneiramente, sobre o saxofonista e o pianista. A segunda é, seguramente, a mais vertiginosa do disco. Trata-se de um hard bop de primeira, visceral e extremamente próxima ao que de melhor foi produzido pela Blue Note nos anos 50 e 60, com direito a um explosivo solo de Cobb.

Não há informações sobe uma eventual influência de Freeman sobre Sonny Rollins ou John Coltrane, mas é uma hipótese que não pode ser descartada, já que a troca de informações entre músicos de primeira linha sempre foi muito freqüente. É provável que tenham tocado juntos várias vezes e conversado intensamente sobre os respectivos universos musicais. O certo é que Freeman – mais velho que os dois – jamais desfrutou, sequer, de um milésimo da popularidade dos primeiros, o que é uma tremenda injustiça.

Nada melhor, para mudar essa situação, do que ouvir muitas e muitas vezes este fabuloso “Doin’ It Right Now”. Relançado em 2000 pela Koch, o disco passa ao largo do experimentalismo que caracterizaria alguns dos trabalhos posteriores de Vonsky e permite fazer essa associação entre o trabalho de Freeman e a obra de Trane ou de Rollins. Dificilmente alguém vai conseguir ficar indiferente – sem dúvida, ele pertence àquela seleta categoria de álbuns verdadeiramente essenciais.

Embora seja reverenciado entre seus pares, a discografia de Vonsky é composta de poucos títulos, lançados por selos como High Note, Nessa, Delmark, Southport, Steeplechase, Affinity e Premonition. Via de regra, seus álbuns são recebidos com entusiasmo pela crítica especializada, como o excelente “Von & Ed”, de 1999, no qual divide os créditos com o saxofonista Ed Petersen, e “The Great Divide”, de 2004.

Nesses discos, é comum a participação de gente como Clifford Jordan, Muhal Richard Abrams, Charles Fambrough, Wilbur Campbell e Hal Russell, por exemplo. Vonsky tem sido presença constante em festivais ao redor do mundo, e sua performance no Berlin Jazztage Festival, em 2002, foi considerada antológica pelos que tiveram a honra de assisti-lo.

Von é pai do saxofonista Chico Freeman, que herdou do pai o talento musical, mas que possui personalidade suficiente para não querer imitá-lo. Aliás, as maiores influências de Chico são John Coltrane e Sam Rivers. Pai e filho gravaram diversas vezes juntos, inclusive um elogiado álbum ao vivo, gravado no clube Blue Note de Nova Iorque. Os dois também dividiram os créditos de um disco com o pianista Ellis Marsalis e seus filhos, Wynton e Branford. O álbum, apropriadamente intitulado “Fathers & Sons”, foi lançado pela Columbia em 1982.

Indagado porque motivo jamais abandonou a cidade natal, Freeman respondeu com uma sinceridade e uma simplicidade desconcertantes: “Eu amo Chicago. E Chicago me ama”. Em 2002, a cidade expressou esse amor designando uma rua com o nome do saxofonista – a Honorary Von Freeman Way – e em 2003, a Northwestern University concedeu-lhe o título de Doutor Honoris Causae. Também foi laureado com um prêmio concedido pela National Academy Of Recording Arts & Sciences, por sua contribuição para o jazz. Além disso, Von é uma das presenças mais regulares a se apresentar no tradicionalíssimo Chicago Jazz Festival, um dos mais importantes do mundo.

Desde 1982, Freeman comanda uma animada jam session no clube New Apartment Lounge, em Chicago, sempre às terças-feiras, a partir das 22h30min. Via de regra, está acompanhado pela sua banda atual, que inclui o guitarrista Mike Allemana, o baixista Jack Zara e o baterista Michael Raynor, mas por ali já se apresentaram nomes conhecidos, como os pianistas Jodie Christian e Jason Moran, o baixista Cecil McBee, o saxofonista David Murray, o trompetista Charles Tolliver e o baterista Jack DeJohnette.

Em seus périplos pelos estúdios, seja como líder, seja como acompanhante, pôde tocar ao lado de feras como Warne Marsh, Roscoe Mitchell, Horace Parlan, Vic Sproles, Kenny Barron, Gerry Allen, Greg Osby, Kenny Wheeler, Tommy Flanagan, Dave Holland, Eddie De Haas e Kevin Eubanks. A visibilidade conseguida nos últimos 20 anos, que inclui uma matéria de capa na prestigiosa Down Beat Magazine, rendeu-lhe convites para gravar com artistas como Yusef Lateef, Louis Smith, Kurt Elling, Steve Coleman e Jimmy McGriff, entre outros.

A música continua sendo a sua grande paixão e suas palavras revelam a sabedoria de quem já percorreu uma longa estrada, mas ainda demonstra fôlego para muitas aventuras: “Tocar é o que me fez preservar a sanidade. Eu sempre tentei tocar da melhor maneira possível e até hoje eu procuro fazer isso. Eu simplesmente pratico o dia inteiro. Às vezes nem eu mesmo sei o que estou tocando, mas o segredo é esse: se você deseja mesmo tocar um instrumento, você tem que se dedicar ao máximo e o tempo todo, senão acaba perdendo a habilidade”.

Freeman tampouco se incomoda com a ausência do sucesso em larga escala e seu estoicismo é comovente: “É claro que se você consegue ficar famoso, isso é ótimo. Ter um ou dois sucessos ajuda tremendamente! Mas se você não conseguir, não esquente a cabeça e continue tentando. Eu adoro ver os caras mais velhos simplesmente tocando, apenas pelo prazer de tocar. Tem um monte de caras veteranos que vem me assistir e que não conseguiram fazer sucesso em suas carreiras. Mas eles não desistem. Muitos dizem que é por minha causa que continuam a tocar e que eu sou um exemplo para eles”.

Todos os anos, o saxofonista é presença certa na New Year's Eve Battle of The Tenors, disputada no clube Green Mill. Às vésperas de completar 90 anos, Freeman demonstra uma disposição de fazer inveja e credita o entusiasmo juvenil ao imenso amor que tem pelo jazz. A longevidade parece ser uma característica familiar – a mãe morreu aos 103 anos – e Von tem se esmerado em manter essa tradição, fazendo aquilo que melhor sabe fazer: tocar saxofone e encantar platéias de Chicago, Nova Iorque, Los Angeles, Berlim e de onde quer que o convidem.

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