QUASE UM SÉCULO DE PURA NOBREZA
Música e outras coisas

QUASE UM SÉCULO DE PURA NOBREZA



É bom saber que, às vésperas de completar noventa e cinco anos, Charles Phillip Thompson ainda esteja em plena atividade. Claro que, nessa idade, ele não pode mais passar horas caminhando em um campo de golfe, fazendo a segunda coisa que mais gosta na vida. Mas a primeira, que é tocar piano, ele ainda costuma fazer – e muitíssimo bem – para deleite dos fãs que costumam lotar os clubes de Los Angeles onde ele habitualmente se apresenta.

Este pianista, organista, compositor e arranjador, nasceu em Springfield, Ohio, no dia 21 de março de 1918. Embora tenha começado no swing, Thompson também tem uma importância capital para a história do bebop, por ter sido um dos primeiros a assimilar as ousadias harmônicas propostas por Charlie Parker e Dizzy Gllespie, tendo liderado, em 1945, algumas gravações pioneiras para a Apollo, das quais participaram o próprio Parker e outros monstros sagrados, como Dexter Gordon e Bucky Clayton.

O primeiro instrumento de Thompson foi o violino, que aprendeu a tocar na tenra infância. Aos oito, passou para o piano e com incríveis dez anos já tocava profissionalmente. A família tinha uma enorme inclinação musical, pois o pai era membro do coral da igreja batista e a mãe tocava piano. Thompson lembra dos tempos de infância: “A maioria ds moleques queria jogar futebol ou basquete. Claro que eu também gostava de esportes, mas o meu interesse maior sempre foi a música. Eu adorava tocar piano e acho que isso é uma bênção de Deus”.

Pouco tempo depois, quando tinha apenas doze anos, Charles chegou a se apresentar com a banda do lendário Bennie Moten, que costumava animar os salões de baile da região de Colorado Springs. O pianista oficial da banda era outra lenda do jazz, ninguém menos que Count Basie, que se afeiçoou ao garoto e costumava deixá-lo tocar um pouco durante as festas. Além de Basie (“meu primeiro mentor”, segundo o pianista), as maiores influências de Thompson eram Earl Hines e Fats Waller.

O pianista se lembra com carinho daquele período: “Meu pai me deixava ir às festas onde a orquestra de Benny Moten tocava, para acompanhar minha irmã, que gostava muito de dançar. Alguém falou sobre mim para Basie, que era o pianista de Moten, e sempre que eu estava em uma dessas festas, ele me deixava tocar o piano. Com a morte de Moten, em 1935, Count arregimentaria vários músicos que tocavam ali, para formar a sua própria orquestra”.

Durante os anos 30, Thompson tocou em várias orquestras de baile na região de Springfield. Embora tivesse recebido as primeiras aulas da mãe, ele era, essencialmente, um autodidata. Somente em meados daquela década resolveu estudar teoria musical, recebendo aulas de Lloyd Hunter e Nat Towles, eméritos professores locais. Em 1939, quando fazia parte da orquestra de Floyd Ray, Charles viajou pela primeira vez à Califórnia.

Ali, Thompson teve a sua primeira grande oportunidade profissional, em 1940, ao ser contratado pelo vibrafonista Lionel Hampton, cuja orquestra era uma das mais populares da época. Passados alguns meses, o pianista decidiu montar seu próprio grupo, embora fizesse arranjos para bandas de gente como os irmãos Fletcher e Horace Henderson, Jimmy Dorsey, Lucky Millinder, Claude Thornhill e o próprio Count Basie.

Nessa época, ganhou do saxofonista Lester Young, membro da orquestra de Basie, o apelido de Sir que carregaria daí por diante, por conta da elegância nos trajes e na forma de tocar. A amizade com Pres era tão grande que, em 1941, Thompson chegou a fazer parte da banda do saxofonista, que durante alguns meses foi atração fixa do clube Café Society, em Nova Iorque.

Thompson testemunhou a criação e o amadurecimento do bebop. Embora não fosse tão assíduo, ele também costumava freqüentar as jams que aconteciam no clube Minton’s Playhouse, na Rua 118, no Harlem, onde o estilo foi gestado. Sir Charles trabalhava na noite, se apresentando em clubes da Rua 52, outro local historicamente fundamental para a consolidação do bebop como referência máxima da modernização da linguagem jazzística.

Entre 1944 e 1945, Thompson fez parte do grupo liderado por Coleman Hawkins (que, nas palavras do pianista, era “um homem muito educado e culto”) e Howard McGhee. O combo era um dos mais respeitados da época e sua música sintetizava a transição do swing para bebop. Outra associação importante foi com o saxofonista Illinois Jacquet, seu parceiro em “Robbins’ Nest”, um dos temas mais conhecidos e gravados da história do jazz e que fez enorme sucesso na segunda metade da década de 40. O jazz se transformava rapidamente e Sir Charles estava bem no centro dos acontecimentos.

Na análise do pianista, “a música mudou o seu eixo. Originalmente, o jazz tinha como finalidade ser uma música para a dança. Se você procurar no dicionário vai ler que jazz é uma música negra ‘alta e turbulenta’, ou seja, a música era tocada para as pessoas dançarem. Mais tarde, nos anos 40 e 50, o jazz se tornou menos popular, pois nos concertos as pessoas iam apenas para ouvir a música. Quando o jazz era tocado com o propósito de fazer as pessoas dançarem, você tinha que ter um bom ritmo, pois a batida era mais importante do que as notas. Mais tarde, Charlie Parker e Dizzy Gillespie mudaram os paradigmas do jazz, tocando mais notas e de uma forma mais rápida. As pessoas tiveram que encontrar um nome para isso, então elas chamaram de bebop, mas os nomes não têm a menor importância para mim”.

Ao mesmo tempo em que ajudava o bebop a se consolidar, Thompson desenvolvia um alentado portfólio como acompanhante, atuando em concertos e gravações sob a liderança de portentos como Leo Parker, Paul Quinichette, Joe Newman, Vick Dickerson, Buck Clayton, Urbie Green, Roy Eldridge, Jimmy Rushing, Earl Bostic, Hot Lips Page, Oscar Pettiford, Don Byas, Sonny Stitt, Ella Fitzgerald, entre uma infinidade de outros.

Na década de 50 trabalhou bastante com o bandleader Charles Barnet e na década seguinte seus mais constantes parceiros foram os já mencionados Roy Eldrdge e Buck Clayton. Durante os anos 60, Sir Charles passa a se dedicar também ao órgão, mas se vê obrigado a diminuir o ritmo de trabalho, por conta de problemas de saúde. Em 1979 e em 1980, apresentações consagradoras no Festival de Nice, sob a liderança, respectivamente, de Erskine Hawkins e Ruby Braff, colocam o nome do pianista em evidência novamente.

Thompson se dividia entre a Los Angeles e Nova Iorque, mas no início dos anos 50 preferiu se estabelecer, definitivamente, na Califórnia e o motivo não poderia ser mais prosaico, como revelou em uma bem-humorada entrevista: “Eu gosto do clima californiano. O golfe é o meu hobby e aqui eu posso jogar o ano inteiro. Faço exercícios e ainda tomo ar fresco. Por isso, preferi viver na Califórnia e não em Nova Iorque. Mas se alguém quiser me ouvir na Grande Maçã, é só me contratar... e me pagar, claro”.

Atuando profissionalmente há quase 80, o pianista sempre liderou seus próprios grupos, por onde passaram nomes como os baixistas Major Holley, Keter Betts e Dave Young e os bateristas Ed Thigpen, Dave “Panama” Francis e Sam Woodyard. Nos anos 70, Sir Charles morou em Zurique, na Suíça, e durante os anos 90, residiu por alguns anos em Tóquio, no Japão. Em 1987 ele foi uma das atrações do British Jazz Awards, cuja cerimônia foi realizada em Birmingham, na Inglaterra.

A discografia de Thompson é bastante modesta para a importância de sua contribuição para o jazz. Seus poucos álbuns estão distribuídos em selos como Apollo, Vanguard, Columbia, Sackville, Black & Blue, King, Decca e Savoy. O selo Delmark, baseado em Chicago, reeditou as gravações feitas por ir Charles nos anos 40 para a Apollo, além de ter lançado dois ótimos discos do pianista: “Robbins’ Nest” e “I Got Rhytmn”, ambos gravados ao vivo no clube Jazz Showcase, sendo o primeiro em agosto de 2000 e o segundo em maio de 2001.

A última vez em que Thompson se apresentou na cidade tinha sido em 1941, acompanhando a banda de Lionel Hampton, durante uma temporada no célebre clube do Grand Terrace Hotel, cujo diretor artístico era ninguém menos que Earl Hines. Quase sessenta anos depois, Thompson foi recebido na Cidade dos Ventos como uma verdadeira estrela do jazz.

Joe Segal, proprietário do “Jazz Showcase” conta como foi a estada de Thompson em Chicago: “No primeiro concerto da temporada, havia filas de fãs, com LPs nas mãos, pedindo autógrafos, incluindo várias pessoas que eu nunca tinha visto antes no clube. Charles tratou a todos como se fossem velhos amigos. A casa ficou lotada todos os dias e, nos momentos de folga, ele se divertia jogando golfe com o saxofonista Eric Schneider, outro maníaco pelo esporte”.

“Robbins’ Nest” é o resultado dos concertos realizados nos dias 03 e 04 de agosto de 2000. Com o apoio do baixista Ed de Haas e do baterista Charles Braugham, além das participações especiais do jovem saxofonista Eric Schneider (em cinco das doze faixas) e do veterano Art Hoyle no trompete (apenas em “Blue And Sentimental”), o disco possui aquele clima de espontaneidade e descontração típico de uma apresentação ao vivo.

A faixa de abertura, que também dá nome ao disco, é o tema mais conhecido de Thompson, composta a quatro mãos com seu antigo parceiro Illinois Jacquet. A execução do trio é alegre, baseada na atmosfera dançante do swing, mas impregnada das harmonias complexas do bebop. Aos oitenta e dois anos, o líder mostra uma enorme vitalidade e sua pegada cheia de energia contagia e inspira de Haas e Braugham.

Em “S’Wonderful”, dos irmãos Gerge e Ira Gershwin, o trio mantém em alta o entusiasmo e incorpora ao tema uma saborosa pitada de ragtime. Thompson saltita pelas notas, como se fosse um Fred Astaire do piano. De Haas faz uma marcação impecável, ditando o ritmo com dinamismo e precisão. O baterista executa um acompanhamento cadenciado e discreto, mas na hora de solar ele mostra robustez, velocidade e um excelente trabalho com os pratos.

Como se fizesse uma arqueologia do piano jazzístico, Thompson executa a sua “Tunis In (Tune Us In)” com um formidável domínio da técnica stride, construindo a harmonia com a mão esquerda e a melodia com a direita, sempre com bastante ênfase nos graves. Trata-se de um blues acelerado, que remete ao estilo de Kansas City. A lembrança que vem à mente é o fraseado econômico, mas cheio de swing, de Count Basie, mas também se podem perceber ecos de Jay McShann.

Dando um esfriada no clima, o trio revisita a balada “You Don't Know What Love Is”, de Don Raye e Gene DePaul, que aqui é interpretada com reverência e um lirismo incontido. O contrabaixo volumoso de Ed de Haas cria um clima quase fantasmagórico, enquanto Braugham percute a bateria com a sutileza de um Connie Kay. Thompson imprime ao seu dedilhado um misto de melancolia e abandono, transportando para a melodia a atmosfera sombria da letra, uma das mais pungentes e arrebatadoras do cancioneiro norte-americano.

Em seguida, mais um standard, a inebriante “Body and Soul”. Com a autoridade de quem tocou com Coleman Hawkins, o homem que reinventou esta canção (que, na verdade, é de autoria de Edward Heyman, Frank Eyton, Johnny Green e Robert Sour), Sir Charles destila sofisticação, lirismo e emotividade. O arranjo é despojado, mas permite improvisos empolgantes por parte do líder e do vigoroso de Haas.

Em “A Boogie Woogie”, tema tradicional, Sir Charles exibe toda a sua intimidade com o estilo, que pode ser considerado uma espécie de elo de ligação, sincopado e vibrante, entre o jazz e o blues. Sem a companhia dos parceiros, o pianista resgata a tradição de antigos mestres como Albert Ammons, Professor Longhair e Meade Lux Lewis, com muito balanço e ritmo.

A partir de “Stuffy”, o saxofonista e clarinetista Eric Schneider se incorpora ao grupo e a temperatura ferve pra valer. Logo de início ele, a bordo do sax tenor, presta tributo ao autor do tema, o grande Coleman Hawkins, com uma pegada musculosa e potente. Thompson brinca com os riffs, acelera os andamentos e, nos improvisos, incorpora ao seu fraseado uma complexidade típica do melhor bebop.

A encantadora “Easy Living”, de Leo Robin e Ralph Rainger, é mais uma preciosidade resgatada pelo grupo e o arranjo em tempo médio só realça a beleza da melodia. Com o alto, Schneider (um dos mais respeitados músicos de Chicago e que trabalhou com sumidades como Benny Goodman, Earl Hines e Count Basie) apresenta uma sonoridade acolhedora e fluida, que em algumas passagens lembra a de Phil Woods.

Count Basie comanda a festa em “The King”, uma das mais esfuziantes composições do bandleader. A furiosa abordagem dos quatro homens equivale a uma orquestra inteira e o histamina é distribuída em doses cavalares, especialmente por Thompson, cujo ataque é ágil e incrivelmente habilidoso, e por Schneider, cujo sopro exuberante traduz a alegria e a espontaneidade que devem permear o jazz. As participações de Braugham e de Haas são igualmente empolgantes e ajudam a manter o clima festeiro.

Composta em 1938, “Blue and Sentimental” é mais um tema de Basie, desta vez em parceria com Jerry Livingston e Mack David. Nesta faixa, o trompetista Art Hoyle se junta ao quarteto, para mais um belo registro, trazendo consigo a graça e o charme da Era do Swing. O tema ganha um atrativo a mais, graças melodioso clarinete de Schneider. Destaques, ainda, para o sensacional trabalho de pratos de Braugham e para a digitação solene do líder.

Para levantar a platéia, mais um clássico daquela época, a sacolejante “I Never Knew”, de Gus Kahn e Ted Fio Rito. Sem Hoyle e com Schneider de volta ao tenor, o grupo transforma o “Jazz Showcase” em um animado salão de baile. O saxofonista, aliás, é o grande destaque individual, com uma atuação nada menos que incendiária. Thompson não fica atrás no quesito entusiasmo e com seu estilo telegráfico de percutir as teclas do piano, ele demonstra que a alegria é um elemento intrínseco ao jazz e que o excesso de cerebralismo não pode sufocar a espontaneidade do estilo.

O encerramento fica por conta da balada “Goodbye”, de Gordon Jenkins, anunciada por Thompson como uma das preferidas de Benny Goodman. Executada em piano solo, a faixa é um exercício de lirismo e de domínio melódico. Um disco memorável e serve como um ótimo cartão de visitas para este pianista tão talentoso quanto pouco conhecido.

Tem razão o crítico Richard S. Ginel, do site Allmusic, ao afirmar o seguinte: “O elegante Sir Charles Thompson foi um dos poucos músicos associados ao swing capaz de fazer uma transição graciosa e sincera ao bebop, no momento em que a revolução estava acontecendo. Seu estilo de piano conjuga o dedilhado leve com inventividade, criando uma espirituosa leitura do bebop. Profundamente influenciado por Basie, é um dos seus mais talentosos herdeiros musicais e também soube adaptar seu estilo de maneira bastante eficaz para o órgão”.

O pianista leva uma vida tranqüila na Califórnia. Dentre as suas muitas lições de vida, uma é particularmente notável para todo aquele que pretende viver da música: “Falando francamente, eu não sinto saudades de nada. Gosto de tocar a minha música e o resto pouco importa. Jamais me preocupei em rotular aquilo que eu toco, pois o importante é o sentimento que você coloca naquilo que está tocando. Basicamente, a minha música vem da emoção, da batida da música, muito mais do que apenas da melodia. Não importa o que você esteja tocando, é fundamental que tenha uma boa batida, para fazer as pessoas sentirem algo especial”.

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