O PODEROSO CHEFÃO
Música e outras coisas

O PODEROSO CHEFÃO




Eugene Ammons tinha dois apelidos. Na verdade, três: Gene, como era chamado em casa, Jug, que lhe foi dado por Billy Eckstine, e The Boss, como era carinhosamente conhecido entre seus pares. Nascido no dia 14 de abril de 1925, em Chicago, ele é considerado, juntamente com o grande Von Freeman, um dos pais da vigorosa escola de sax-tenoristas daquele importante centro jazzístico. Sua influência se estendeu a músicos do gabarito de Yusef Lateef ou Johnny Griffin, dois dos mais talentosos saxofonistas surgidos na cena musical da Cidade dos Ventos.
Filho do pianista Albert Ammons, um dos mais importantes nomes do boogie-woogie, Gene aprendeu os primeiros rudimentos do saxophone em casa, complementando sua educação musical na afamada Du Sable High School. Uma curiosidade a respeito de Albert é que ele foi uma das atrações no concerto de abertura do Carnegie Hall, realizado em Nova Iorque, no ano de 1949, e que contou com a presença do então presidente dos Estados Unidos, Harry Truman.
Gene chegou a tocar e a gravar com o pai algumas vezes e em 1943, quando tinha apenas 18 anos, juntou-se à banda do trompetista King Kolax, ao lado de quem excursionou pelo país e acabou se fixando em Nova Iorque, como atração fixa do famoso Savoy Ballroom. No ano seguinte, foi contratado por Billy Eckstine para integrar a sua orquestra, onde pontuavam algumas das figuras-chave do jazz moderno, como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Dexter Gordon e Art Blakey.
Ammons permaneceu com Mr. B. por algum tempo, mas em 1947 decidiu montar seu próprio quinteto. Uma de suas gravações, “Red Top” (apelido de sua esposa, Mildred Ammons) chegou a fazer bastante sucesso nas paradas de jazz e R&B da época e em 1950, ele voltaria a fazer bonito na parada da Billboard, agora graças a uma versão demolidora de “My Foolish Heart”.
Por seus conjuntos, ao longo do tempo, passariam jovens músicos em início de carreira, como os pianistas Junior Mance e Mal Waldron, os trompetistas Donald Byrd e Art Farmer, o guitarrista Kenny Burrell, o baterista Art Taylor e o saxofonista Jackie McLean. A lista de músicos com quem tocou, seja como líder, seja como sideman, também impressiona: Howard McGhee, Charlie Parker, Dexter Gordon, Freddie Redd, Lou Donaldson, Cannonball Adderley, John Coltrane, Art Blakey, Fats Navarro, Sonny Stitt, Miles Davis, James Moody, Eddie Lockjaw Davis, Don Byas, entre outros.
Em 1949, foi recrutado para a big band de Woody Herman, uma das mais inovadoras dos anos 40 e 50, onde substituiu Stan Getz. Apesar de fortemente influenciado por Coleman Hawkins, Ben Webster e Lester Young, Gene logo incorporou o vocabulário do bebop à sua forma de tocar e, ao lado de Dexter Gordon, Wardell Gray, Don Byas e James Moody, pode ser considerado um dos primeiros tenoristas a transpor para o instrumento as inovações harmônicas desenvolvidas por Charlie Parker no sax alto.
Em 1950, quando ainda integrava a orquestra de Herman, Gene montou um grupo com o saxofonista Sonny Stitt, que durante dois anos se manteve como um dos mais populares do cenário jazzístico do período e era atração fixa do Birdland, em Nova Iorque. As apresentações da dupla Stitt-Ammons eram sempre eletrizantes e os dois ases costumavam protagonizar duelos que deixavam a audiência em êxtase. O poeta e escritor Leroi Jones, um dos mais importantes intelectuais norte-americanos do século XX, assistiu a uma dessas performances quando tinha 14 ou 15 anos e saiu de lá impressionado.
De acordo com as recordações de Jones, o público se dividia como em uma partida de futebol e gritava palavras de incentivo ora a Gene, ora a Stitt. E quando os dois tocavam em uníssono soavam como “um saxofone gigantesco, tocando em cima de um caminhão de som”. A parceria foi desfeita em 1952, mas a amizade permaneceu – tanto é que os dois dividiram a liderança em várias ocasiões posteriores, lançando álbuns bastante consistentes pela Verve e pela Prestige.
A associação com a Prestige Records, iniciada na primeira metade da década de 50, é um capítulo à parte na vida e na carreira do saxofonista. Com efeito, a parceria de Ammons com a gravadora resultaria em mais de duas dezenas de grandes álbuns, ao longo dos próximos vinte anos. Um deles é o ótimo “Groove Blues”, de 1958, que contou com as participações estelares de Pepper Adams, Paul Quinichette, John Coltrane e Jerome Richardson. Além da Prestige, o saxofonista gravou por vários outros selos, tais como Mercury, Verve, Aristocrat, Chess, Decca, United, Savoy e Pacific.
Em 1954, Gene mudou-se para Washington D. C. e especula-se que ali tenha começado a usar heroína, fato que lhe traria enormes dissabores nos anos vindouros. A partir do final dos anos 50, Ammons abraçou com afinco o chamado soul jazz, gravando com regularidade com organistas como Johnny “Hammond” Smith (no álbum “Angel Eyes”, Prestige, 1960) e Donald Patterson (“Prime Cuts”, Verve, 1961), Clarence “Sleepy” Anderson (“Preachin’”, 1962, Prestige) e Jack McDuff (“Soul Summit”, volumes I e II, Prestige, 1961 e 1962).
Nessa época, Ammons lançou o disco que é considerado a sua obra-prima: “Boss Tenor”. O álbum foi gravado no dia 16 de junho de 1960, para a Prestige, logo após o cumprimento da primeira condenação. O saxofonista recrutou uma banda de peso, que incluía o pianista Tommy Flanagan, o baixista Doug Watkins, o baterista Art Taylor e o percussionista Ray Barretto. A produção ficou a cargo de Esmond Edwards e a engenharia de som foi feita por Rudy Van Gelder.
A primeira faixa, chamada “Hittin’ the Jug”, é de autoria de Ammons. Trata-se de um blues minimalista, no qual o tom encorpado do líder dialoga com rara felicidade com a percussão obstinada de Barreto, com um resultado dos mais eficientes. É uma espécie de retorno às origens do blues, e a combinação, longe de fazer concessões ao exotismo, produz ótimos momentos, especialmente porque os demais instrumentos adotam uma postura discreta, especialmente Flanagan.
Bernice Pelkere é uma das raras mulheres a marcar presença na Broadway e em Tin Pan Alley, sendo a autora de gemas como “Lullaby of the Leaves” e “I’ll Close My Eyes”. “Close Your Eyes” é um dos seus temas mais conhecidos e foi composta em 1933. Gravada por feras como Lee Konitz, Coleman Hawkins, Cal Tjader, Warren Vaché, Ray Brown, Keith Jarrett, Roger Kellaway, Benny Carter, Toots Thielemans e Russell Malone, entre outros, a canção ganha um arranjo em tempo médio, na qual o líder exercita toda a sua aparentemente inesgotável verve. Espetaculares atuações de Flanagan, cujo toque rebuscado e elegante lhe valeu o apelido de “Jazz Poet”, e de Taylor, cuja sonoridade macia se contrapõe à energética performance de Barretto.
Gema da ourivesaria de Richard Rodgers e Lorenz Hart, “My Romance” é o arquétipo da balada romântica. A versão do quinteto é classuda e de muito bom gosto, permitindo ao ouvinte que perceba as nuances e texturas que Ammons extrai do seu instrumento. Apesar da sonoridade opulenta, o saxofone consegue exprimir uma elevada dosagem de lirismo. As filigranas sonoras lançadas por Flanagan e a percussão gentil de Taylor são fundamentais para o sucesso da empreitada.
A malemolência de “Canadian Sunset” é um dos pontos altos do disco. De autoria de Eddie Heywood e Norman Gimbel, o tema transita por entre os ritmos afro-caribenhos, sem perder o pronunciado acento bop. A magistral performance de Barretto incendeia a sessão e estimula o líder a exibir um arsenal de recursos harmônicos, com solos construídos à base de muita técnica e inspiração. Sólida como uma rocha, a trinca formada por Flanagan, Watkins e Taylor dá o suporte necessário para os improvisos candentes de Ammons.
“Blue Ammons” é um blues composto pelo líder, que se destaca pela maneira vigorosa e ousada com que ataca o instrumento – é quase como se cavalgasse um potro bravio pelas extensas pradarias do Velho Oeste. Sua abordagem é ríspida, crispada, adstringente e empolga o ouvinte desde os primeiros acordes. O tema é sincopado, repleto de groove e possui um andamento mais ligeiro que o habitual, mostrando-se um terreno fértil para as inspiradas atuações de Flanagan e de Taylor, cujos solos são bastante energéticos.
As duas últimas músicas podem ser consideradas um delicioso resumo da história do jazz e ambas, à sua própria maneira e em épocas distintas, se tornaram emblemáticas. “Confirmation”, de Charlie Parker, é um tema que se confunde com o próprio alvorecer do bebop. “Stompin’ At The Savoy”, que fecha o disco, foi composta por Benny Goodman, Chick Webb, Andy Razaf e Edgar Sampson e é um verdadeiro hino da Era do Swing.
Na primeira, o quinteto tem uma atuação mais agressiva, que acaba por revelar a prodigiosa capacidade do líder para a improvisação. Seus solos são fluentes e arrojados, completamente inseridos na sintaxe bop. Taylor tem uma atuação irrepreensível, conduzindo bravamente os fundamentos rítmicos e solando com uma potência extraordinária. Watkins tem direito a um breve solo, no qual faz uso do arco, e Flanagan é sempre uma companhia estimulante.
Na faixa de encerramento, o quinteto transborda alegria e espontaneidade e dá um novo colorido à canção. O maior destaque talvez seja a percussão de Barretto, que se encaixa sem nenhuma dificuldade no contexto e passa ao largo de qualquer exotismo. Ammons se concentra na melodia, interpretando com simplicidade e leveza ao tema, um dos mais conhecidos e gravados em toda a história do jazz. Melhor que falar de “Boss Tenor”, só mesmo ouvi-lo, de preferência muitas e muitas vezes.
Apesar da relativa popularidade, o saxofonista foi obrigado a interromper a carreira musical em duas ocasiões, ambas em decorrência de condenações por posse de heroína. A primeira durou de 1958 a 1960 e a segunda, de 1962 a 1969. Após quase sete anos de encarceramento na prisão federal de Statesville, Illinois, Ammons comemorou a volta à liberdade, em outubro de 1969, com uma temporada de duas semanas no clube Plugged Nickel, em Chicago, e com a gravação do elogiado “The Boss Is Back”, na antiga casa Prestige, que o recontratou em bases financeiras bastante elevadas para os padrões do jazz.
Gene teve pouco tempo para desfrutar do reconhecimento, pois final de 1973 recebeu o diagnóstico de um câncer ósseo, doença que acabaria por levá-lo à morte, no dia 06 de agosto de 1974, no Michael Reese Hospital, em Chicago. No início do ano, ele havia feito uma vitoriosa excursão à Europa, que culminou com uma apresentação no Ahus Jazz Festival, na Suécia. Lamentavelmente, Ammons não pôde atuar em Nova Iorque após a sua libertação, pois o New York State Liquor Board, negou-lhe a permissão para se apresentar na cidade.
Ele tinha apenas 47 anos e seu último álbum, chamado simplesmente “Goodbye”, é um poderoso canto de cisne, gravado, como não podia deixar de ser, para a Prestige entre os dias 18 e 20 de março daquele ano. A seu lado, o cornetista Nat Adderley, o jovem altoísta Gary Bartz, o pianista Kenny Drew, o baixista Sam Jones, o baterista Louis Hayes e o velho parceiro Ray Barretto na percussão. Sem dar espaço à melancolia e com um tempero bluesy arrebatador, o disco é realmente primoroso e traz versões incendiárias de “Sticks”, de Cannonball Adderley, e “Jeannine”, de Duke Pearson.
Apesar de pouco lembrado nos dias de hoje, Ammons pode ser considerado um verdadeiro “Chefe de escola” e sua influência pode ser sentida no trabalho de músicos como Stanley Turrentine, Houston Person, Clifford Jordan, Archie Shepp e Joshua Redman. O crítico Robert Levin atribui a pouca notoriedade de Ammons, quando comparado a tenoristas da mesma geração, como Dexter Gordon ou Stan Getz, à absoluta impossibilidade de vinculá-lo a uma determinada corrente ou escola.
Segundo Levin “Uma das razões pelas quais Ammons não é tão aclamado pela crítica é que ele não pode ser facilmente enquadrado em um único estilo ou categoria. Ele aprendeu ou tomou emprestado alguns traços das maiores fontes do sax tenor, Lester Young e Coleman Hawkins, mas o fez com tamanha personalidade que não pode ser considerado um seguidor nem de um e nem de outro”.
Por tantos predicados, não é à toa que sua sonoridade muitas vezes foi descrita como a alma do sax tenor de Chicago. Deixou como legado uma obra rica e diversificada, que inclui composições como “Didn’t We” e “Jungle Strut” (esta última gravada pelo guitarrista Carlos Santana). Seu conselho aos músicos mais jovens, dado em uma entrevista de 1961, não poderia ser mais auspicioso: “Eu diria a eles que procurem o seu próprio som. E que pratiquem bastante para aperfeiçoar esse som. Isso é a coisa mais importante para um músico de jazz”.

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