MAYNARD, UM LUTADOR
Música e outras coisas

MAYNARD, UM LUTADOR




Dono de uma renda per capita de quase 40.000 dólares anuais e de indicadores sociais dos mais elevados do planeta, o Canadá é famoso por ser a terra do invocado James “Logan” Howlett, da Tropa Alfa, da Polícia Montada, do hóquei sobre o gelo e do sanguinário wolverine (um parente radical da lontra, também conhecido como carcaju).

No que se refere ao jazz, o Canadá deu ao mundo nomes como Oscar Peterson, Paul Bley, Gil Evans e a diva Diana Krall, e foi ali que se reuniu o, provavelmente, mais espetacular combo jazzístico a ter se apresentado em qualquer palco do planeta: Charlie Parker, Bud Powell, Dizzy Gillespie, Charles Mingus e Max Roach estavam juntos em Toronto, em maio de 1953, quando gravaram o seminal “Jazz At Massey Hall”.

Outra grande contribuição canadense para o jazz foi o trompetista Walter Maynard Ferguson, nascido no distrito de Verdun, Montreal, no dia 04 de maio de 1928. Filho de um casal de músicos – a mãe era violinista da Ottawa Symphony Orchestra – começou a estudar música com apenas quatro anos. Primeiramente, o violino e depois, o piano. O trompete chegou-lhe às mãos quando tinha nove anos, idade em que ingressou no French Conservatory of Music, a fim de receber educação musical formal. Seu primeiro herói no instrumento foi, por óbvio, Louis Armstrong.

Com 11 anos, já se apresentava na orquestra da Canadian Broadcasting Corporation, um dos mais importantes grupos de comunicação do país. Ali, o garoto assombrava a audiência, tocando com a maior competência e naturalidade os grandes sucessos do swing e os standards do jazz. Em sua homenagem, o compositor Morris Davis escreveu a música “Serenade For A Trumpet In Jazz”.

Enquanto cursava a Montreal High School, montou um pequeno grupo de jazz, o “Montreal Victory Serenaders”, que congregava os talentos de Maynard, do seu irmão, Percy, e do futuro astro Oscar Peterson. Aos 15 anos e com a anuência dos pais, Ferguson abandonou a escola e matriculou-se no Conservatoire de Musique du Québec à Montréal, onde estudou entre 1943 e 1948, sob a tutela de Bernard Baker.

Naquela época, já era reconhecido em seu país como um músico de técnica superior. Integrou a “Chez Maurice Ballroom”, sob a liderança do saxofonista Roland David e acompanhou renomados músicos locais, como o saxofonista Stan Wood e o trompetista Johnny Holmes. Com tantos predicados, sentiu-se à vontade para o primeiro grande desafio: vencer na terra do jazz.

Imbuído deste propósito, desembarcou nos Estados Unidos em 1948. Seu primeiro emprego foi na orquestra de Boyd Raeburn, mas logo vieram trabalhos ao lado de Jimmy Dorsey e Charlie Barnet, onde era um dos principais solistas e se apresentava com regularidade no Café Society, em Nova Iorque. Barnet desfez a sua orquestra no final de 1949, e Ferguson pôde aceitar o convite de Stan Kenton, para se juntar à sua revolucionária big band, onde ingressou em janeiro do ano seguinte e onde permaneceria até 1953.

Ao lado do bandleader, Ferguson participou de dois importantes projetos, a ambiciosa Innovations Orchestra, composta por 40 músicos, inclusive com a participação de instrumentos de cordas, e a orquestra propriamente dita, nos moldes tradicionais e com cerca de 18 integrantes. Participou de álbuns históricos de Kenton, como “New Concepts Of Artistry In Rhythm”, de 1952, ao lado de Richie Kamuca, Conte Candoli, Bill Holman, Lee Konitz, Frank Rosolino, Sal Salvador, Bill Russo e outras feras.

Proprietário de um estilo único e vibrante, capaz de alongar as notas quase infinitamente e de transitar com ferocidade pelos registros mais agudos do trompete, o impacto de Maynard na cena jazzística foi tamanho que ele foi agraciado com o prêmio de melhor trompetista pela Down Beat nos anos de 1950, 1951 e 1952.

Após deixar a orquestra de Kenton, Ferguson foi arregimentado pela Paramount Pictures e participou da trilha sonora de dezenas de produções do estúdio, incluindo a do badalado filme “Os 10 mandamentos”, estrelado por Charlton Heston. Durante esse período, Maynard lançou seus primeiros álbuns como líder – a Paramount proibia o trompetista de fazer apresentações ao vivo, mas não impunha restrições a que atuasse em estúdio – para selos como EmArcy, Fresh Sound, RCA e Roulette.

Como acompanhante, participou de gravações sob a liderança de Shorty Rogers, Dinah Washington, Howard Rumsey, Frank Rosolino, Louis Bellson, June Christy, Ella Fitzgerald, Pete Rugolo e outros. Em agosto de 1954, dividiu os estúdios com dois dos mais espetaculares trompetistas de todos os tempos, Clark Terry e Clifford Brown, em uma sessão para a EmArcy, lançada com o título “Jam Session”. O trio conta com o luxuoso suporte de Herb Geller e Harold Land no sax tenor, Richie Powell e Junior Mance no piano, Keeter Betts e George Morrow no contrabaixo e Max Roach na bateria.

No ano seguinte e novamente pela EmArcy, Ferguson gravaria um álbum que é considerado dos mais brilhante de sua longeva carreira. Chama-se “Maynard Ferguson Octet” e foi gravado nos dias 25 e 27 de abril de 1955. Sete das oito faixas são de autoria de Bill Holman, antigo companheiro do líder na orquestra de Kenton.

A banda que acompanha Ferguson é um verdadeiro Estado-Maior do West Coast: Bob Gordon no sax barítono, Georgie Auld no sax tenor, Herb Geller no sax alto, Milt Bernhart no trombone, Conte Candoli no trompete, Ian Bernhard no piano, Red Callender no contrabaixo e Shelly Manne na bateria. O líder toca, além do habitual trompete, trompete baixo e trombone de válvula.

O disco abre com “Finger Snappin’”, uma contagiante homenagem aos anos dourados do swing. Destaques para os inflamados solos do líder e do sax barítono de Gordon, e para o incansável Manne. “My New Flame” é uma balada em tempo médio, relaxada e convidativa, com uma atmosfera que evoca Duke Ellington. Aqui é o habilidoso Geller, com inflexões à Johnny Hodges, quem merece os maiores elogios.

O arranjo de “Autumn Leaves”, de Joseph Kosma, Jacques Prévert e Johnny Mercer, foi feito para que o líder pudesse brilhar com intensidade – e ele não decepciona. Seu sopro é vigoroso e robusto, perfeito para impingir a esse verdadeiro clássico toda a dramaticidade que ele exige. A ensolarada “Inter-Space” é o típico tema west coast, e sua estrutura, tributária do blues, realça o ótimo entrosamento do conjunto. O maior destaque individual fica por conta de Auld, outro canadense de nascimento, cuja sonoridade se aproxima da escola texana de Illinois Jacquet e Arnett Cobb.

“20, Rue De Madrid” é uma homenagem ao casal Eddie e Nicole Barclay, célebres produtores franceses, fundadores do selo “Blue Star Record Company” e da revista “Jazz Magazine”. O título, aliás, faz referência ao endereço da gravadora, em Paris, e é a mais bopper das faixas do álbum, com fabulosas intervenções do líder e de Geller, que lembram os diálogos de Parker e Gillespie da década anterior.

A exuberante “Super-G” possui um arranjo dos mais complexos do disco, que exige uma excelente coordenação entre os músicos, mas que também privilegia o trabalho dos solistas. Pela ordem, Auld, Geller, Ferguson, Gordon e Bernhard (o pianista) brindam o ouvinte com solos impecavelmente ricos. “What Was Her Name”, onde brilha o trombonista Bernhart, e a estrepitosa “Yeah” completam o disco, mantendo elevadíssimos os níveis de histamina. Um disco altamente recomendável e bastante representativo da fase áurea do trompetista.

Embora o emprego na Paramount lhe assegurasse segurança e conforto material, o trompetista não estava contente com os rumos da carreira, e uma das principais razões era porque o contrato com a companhia cinematográfica o proibia, expressamente, de se apresentar em clubes de jazz. Por essa razão, deixou o estúdio em 1956 e aceitou um novo desafio em sua carreira.

Atendendo a um convite do empresário e produtor Morris Levy, Ferguson mudou-se para Nova Iorque, a fim de comandar a big band do clube Birdland, de propriedade de Levy. Apropriadamente chamada de Birdland Dream Band, a orquestra congregou os talentos de gente como Slide Hampton, Don Ellis, Joe Farrell, Budd Johnson, John Bunch, Joe Zawinul, Jaki Byard, Don Menza, Hank Jones, Herb Geller e contava com arranjadores do calibre de Bob Brookmeyer, Al Cohn, Jimmy Giuffre, Bill Holman, Ernie Wilkins, Don Sebesky e Marty Paich.

Ferguson permaneceu à frente do projeto até 1967, intercalando o trabalho como bandleader com o de músico freelancer, mas as dificuldades econômicas eram enormes e o músico foi obrigado a desfazer a sua orquestra. Entre 1968 e 1969, o trompetista morou na Índia, juntamente com a família, a fim de estudar as doutrinas espirituais de Krishna, na Rhishi Valley School, próxima a Madras.

Findos os estudos, Ferguson montou uma banda chamada “Top Brass”, com a qual excursionou pela Europa, estabelecendo-se em Londres. Na Inglaterra, ele foi contratado para confeccionar o design de trompetes e bocais para uma fábrica em Manchester. Além disso, participava regularmente de concertos e festivais por todo o Velho Continente e atuava como músico da rede de TV estatal BBC.

No final dos anos 60, foi contratado pela CBS inglesa e lançou álbuns nos quais interpreta canções de sucesso, em versões jazzificadas. Temas como “Livin’ For The City”, “MacArthur Park”, “Theme From Shaft”, “Hey Jude” e outros, fizeram dos álbuns de Ferguson verdadeiros campeões de venda. Em 1973 decidiu retornar aos Estados Unidos, fixando-se em Nova Iorque. Em 1976 teve a honra de participar do show de encerramento dos Jogos Olímpicos de Montreal.

O maior sucesso da carreira viria em 1977, com a inesquecível “Gonna Fly Now”, tema composto por Bill Conti para o filme “Rocky, um lutador”. Incluída no álbum “Conquistador”, fez com que o LP vendesse horrores e ficasse meses nas paradas de sucesso, rendendo a Ferguson uma indicação ao Grammy, no ano seguinte. A big band que o acompanha na empreitada traz, entre outros, os estelares George Benson, Joe Farrell, Bob James, Jon Faddis, Julian Priester, Harvey Mason, Randy Brecker e Peter Erskine.

No final dos anos 80, encarou com galhardia mais um desafio: criou a “Big Bop Nouveau Band”, dedicada a resgatar a magia das grandes orquestras do swing, mas com um tempero moderno e arejado, sem desprezar a influência de Parker e Gillespie – o Bop incluído no nome da orquestra não é mera figura de retórica.

Com vários uma formação que incluía quatro trompetes, dois trombones, quatro saxofones, piano, contrabaixo e bateria, a orquestra gravou diversos álbuns, lançados principalmente pela Concord, incluindo os elogiados “Brass Atitude” e “One More Trip To Birdland”. Também participou de gravações ao lado de vocalistas do quilate de Diane Schuur e Michael Feinstein.

Além do sucesso comercial, Ferguson recebeu ao longo da vida diversas homenagens. Em 1992, seu nome foi incluído no Down Beat Jazz Hall of Fame. Em 2000 a Universidade de Rowan concedeu-lhe o título de Doutor Honorário e criou o “Maynard Ferguson Institute of Jazz Studies”, sob o comando de Denis Diblasio e dedicado a apoiar jovens músicos em início de carreira.

Como lembra o jornalista Marc Myers, titular do ótimo site Jazz Wax, “durante um período de cerca de 15 anos, a partir de 1950, Maynard Ferguson foi um dos solistas mais espetaculares na cena jazzística. Liderou uma série de grandes bandas, com as quais gravou alguns dos discos de jazz mais consistentes e interessantes daquela época. Cada álbum superava o anterior e seus músicos eram sempre solistas de primeira linha”.

O trompetista faleceu em decorrência de uma infecção abdominal, que acarretou a parada das funções renais e hepáticas, no dia 23 de agosto 2006, no Community Memorial Hospital, em Ventura, na Califórnia. Havia acabado de gravar mais um álbum e vinha de uma vitoriosa temporada no Blue Note, em Nova Iorque. Seu legado, apesar de algumas restrições por parte da crítica, é o de alguém que, acima de tudo, encarava a música como uma arte avessa a qualquer preconceito.

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