O APRENDIZ DE FEITICEIRO
Música e outras coisas

O APRENDIZ DE FEITICEIRO


Em 1979, depois de uma apresentação consagradora no Festival de Montreux, as pessoas só se referiam ao alagoano Hermeto Pascoal como “O Bruxo”. Um apelido bastante apropriado, já que, graças às suas alquimias sonoras, ele era, certamente, um dos três músicos brasileiros de maior prestígio no exterior. Complemente-se dizendo que os outros dois eram o maestro soberano Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, gravado por 9 entre 10 monstros sagrados do jazz, e o mega-produtor e arranjador Eumir Deodato, que na época vendia milhões de cópias de sua versão alucinante de “Assim Falou Zaratustra”, lançada em 1972, e produzia os discos de medalhões pop como Roberta Flack e Kool And The Gang.
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Desde o final da década de 60, Hermeto vinha tentando construir uma carreira internacional. A oportunidade veio com a participação no álbum “Live Evil”, de 1970, do então poderosíssimo Miles Davis. Tocar no disco do fundador e maior astro do fusion deu a Hermeto uma enorme visibilidade na cena jazzística. Mas nem tudo foram flores na convivência com o trompetista pois Miles, a fim de fazer jus ao título do álbum (algo como Maldade ao Vivo) e à sua péssima reputação, surrupiou duas canções do mago e jamais lhe deu o crédito: “Igrejinha” e “Nem Um Talvez”. A bem da verdade, esse episódio jamais atrapalhou o relacionamento dos dois, que continuariam amigos até a morte de Davis.

Com as portas escancaradas no seletíssimo mercado norte-americano de jazz, “O Bruxo” pôde gozar de uma autonomia raramente concedida a outros músicos brasileiros e teve total liberdade para fazer seus discos da forma que bem quis. Vieram, então, “A música livre de Hermeto Pascoal”, de 1973, o premiadíssimo “Slave Mass” (gravado nos Estados Unidos em 1976, ao lado de feras como Ron Carter, Raul de Souza e do velho amigo Airto Moreira, que o levou para os States em 1969) e o surpreendente “Ao vivo no Montreux Jazz Festival”, de 1979.

Todavia, se toda história tem seu começo, O Bruxo também teve os seus dias de aprendiz de feiticeiro. Recuando no tempo, é certo que os vizinhos da pequena Lagoa da Canoa deviam achar bastante estranho ver o pequeno e alvíssimo filho da Dona Divina e do Seu Pascoal brincando de tirar sons de abóboras e talos de mamona. A magia estava no ar, mas o contato com ela era fugidio – nada além de um passatempo lúdico, no meio da paisagem árida do sertão alagoano.

Em 1950, quando sua família se mudou para Recife, Hermeto já era capaz de cometer pequenos truques, ainda bastante amadores, mas que iam ficando cada vez mais interessantes à medida em que se aprofundava no maravilhoso universo da música. No final daquela década, já profissional, muda-se para o Rio de Janeiro, onde toca com o violinista Fafá Lemos e com a orquestra do maestro Copinha e em 1961 se transfere para São Paulo. Nesse período, amadurece a sua relação com a magia.

Apesar de autodidata, Hermeto tinha uma habilidade sobrenatural para tocar qualquer instrumento – violão, instrumentos de sopro, acordeão, contrabaixo e, sobretudo, piano. Na noite paulistana, dividia o piano com músicos que, em um futuro muito breve, se tornariam bastante conhecidos, como talentosíssimo César Camargo Mariano e o refinado Laércio de Freitas. Nos intervalos dos sets, trancava-se no banheiro para praticar outra de suas paixões: a flauta.

Foi no ambiente altamente musical da São Paulo dos anos 60 que nasceu a amizade com o percussionista Airto Moreira. Essa amizade iria redundar na criação do Sambrasa Trio, em 1964, ao lado do baixista Humberto Clayber, e do Quarteto Novo, em 1966, adicionando o violão energético de Heraldo do Monte e substituindo Clayber pelo não menos talentoso Théo de Barros. Com essa formação, o Quarteto Novo entraria para a história da música popular brasileira ao acompanhar Edu Lobo no célebre Festival da Record de 1967, vencido por ele com a extraordinária “Ponteio”.

Nesses anos de formação, quando ainda era um mago promissor, o Sambrasa Trio emerge como uma das mais marcantes experiências na carreira do Bruxo. Gravado em 1965, Hermeto toca, além do piano, flauta em algumas faixas. Clayber assume o baixo e, eventualmente, a harmônica. Esse álbum notável somente foi lançado em CD em 2005, pela Som Livre, graças a um primoroso trabalho de reedição conduzido pelo titã Charles Gavin, para a série Som Livre Masters. A qualidade de som é primorosa, graças à excelente remasterização, a cargo de Luigi Hoffer, o que permite uma audição prazerosa.

Um repertório que inclui clássicos da música brasileira de diversas épocas, como “A jardineira”, de Benedito Lacerda, e “Duas Contas”, de Garoto, até canções mais ligadas à bossa nova como “Aleluia”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, e “Samba Novo”, de Durval Ferreira. Todos integrantes do trio comparecem com, pelo menos, uma composição própria cada. A primeira delas é “Sambrasa”, de Airto, que de logo apresenta suas armas em um solo devastador. O piano ondulante de Hermeto cria uma variação tão rica de harmonias que é difícil enquadrar essa canção. O trabalho de Clayber, cujo solo está entre os melhores do disco, tampouco ajuda em uma eventual classificação. É bossa, mas também é jazz. É samba e é maracatu. É brasileira, mas também universal. É mágica!

“Aleluia” recebe uma roupagem mais ortodoxa, bem de acordo com as estruturas melódico-harmônicas concebidas por Edu Lobo, mas ainda assim a genialidade dos músicos é perceptível em cada nota. O piano de Hermeto desliza suave em “Samba Novo”, bastante fiel ao arranjo original, mas as dissonâncias do aprendiz de feiticeiro e dos seus comparsas também se fazem presentes. O samba pede passagem na ótima “Clerenice”, de José Neto Costa (irmão de Hermeto), com ecos de Johnny Alf e um trabalho magistral do pianista. O arranjo de “Duas contas” é reverente e delicado ao extremo, como exige essa belíssima composição.

A harmônica de Clayber faz a introdução de “Nem o mar sabia”, de Menescal e Bôscoli, que é revirada do avesso pelo trio, num dos arranjos mais ousados do disco. Em seguida, é a vez da flauta de Hermeto dar à litorânea “Arrastão” um eletrizante sabor agreste, em outro arranjo bastante inovador e cheio de variações harmônicas – o solo do contrabaixista aqui é simplesmente antológico. Na única composição sua, “Coalhada”, um Hermeto nada linear flerta discretamente com os ritmos nordestinos, usando a sua maneira muito própria de ver e ouvir o xote e o baião.

Em “João Sem Braço”, de Clayber, é Airto quem exibe um domínio assombroso das possibilidades harmônicas do seu instrumento, com uma pegada vigorosa ao extremo. O set chega, em alguns momentos, a lembrar a psicodelia tão em voga das bandas de rock da época. “Lamento nortista” traz à baila, novamente, a riqueza do folclore nordestino, sobretudo graças à flauta de Hermeto. Fechando o disco, em altíssimo estilo e com um astral nas nuvens, a saborosa “Jardineira” merece um arranjo bastante jovial, realçando a faceirice da célebre marchinha e deixando o ouvinte com uma vontade quase incontrolável de aumentar o volume, arrastar os móveis para o canto da sala e fazer o carnaval – pena que dure só 1min56s!

O aprendiz de feiticeiro jamais interrompeu seu aprendizado mágico. Cruzou o mundo infinitas vezes, apresentou-se para platéias de todas as latitudes e se tornou um reverenciado bruxo da música. Todavia, nunca deixou de ser o menino franzino, de pele imaculadamente branca e imaginação sem limites que, esgueirando-se do inclemente sol sertanejo, perambulava pela caatinga em busca de qualquer objeto cujo som pudesse se transformar em melodia. Foi exatamente ali, sob o olhar benevolente das musas, que o pequeno feiticeirinho começou a longa jornada que o levaria a desvendar o segredo de todos os acordes do universo.

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PS.: Post dedicado ao amigo Figbatera, grande instrumentista (certamente fã de Airto) e embaixador do JAZZ + BOSSA nas Minas Gerais.



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