O jazz é um manancial praticamente inesgotável de grandes músicos. Alguns (poucos) alcançaram fama e fortuna como Miles Davis ou Dave Brubeck. Outros morreram no mais absoluto esquecimento, como o saxofonista Lucky Thompson e o trompetista Dupree Bolton. Alguns envelheceram com dignidade e até o fim da vida exibiam uma energia contagiante, como foi o caso de Benny Carter ou Eubie Blake. Outros, como Clifford Brown ou Scott LaFaro, pereceram na mais tenra idade, deixando os jazzófilos a especular o que poderiam ter feito se tivessem vivido mais alguns anos...
O jazz é como a vida. Em seu microcosmo há heróis e vilões. A dignidade e a infâmia caminham lado a lado e, muitas vezes, são duas faces da mesma moeda. O mesmo cafajeste que, em um dado momento, é capaz de afanar a música de um colega e de não lhe dar o crédito pela autoria (e nem os respectivos dividendos) também pode se mostrar o generoso padrinho de um jovem talento. Parafraseando Nietzsche, o jazz é humano, demasiado humano. Por isso é tão belo!
Tome-se o exemplo de Curtis Lee Counce. É justo que tenha morrido com apenas 37 anos, no auge da forma técnica, quando começava a colher os frutos de uma longa carreira musical e a gozar do merecido reconhecimento por parte do público e da? Não, não é justo. Mas, como dizem os franceses: “c’est la vie”. Felizmente, é possível ouvir seus discos e, de alguma forma, isso o mantém vivo. Outra maneira de render-lhe homenagem é conhecer um pouco de sua trajetória.
Ele nasceu no dia 23 de janeiro de 1926, em Kansas City, no Missouri, terra de Charlie Parker, Ben Webster e Melba Liston, entre outros. Ainda na infância demonstrou uma grande habilidade musical, tendo estudado violino e tuba, até se decidir pelo contrabaixo. A educação musical formal teve lugar na R. T. Coles High School, na própria cidade natal. Em 1941, quando tinha apenas 15 anos, começou a tocar profissionalmente, fazendo parte da orquestra de Nat Towles, baseada em Omaha. Na época, sua maior influência era Jimmy Blanton o excepcional contrabaixista da orquestra de Duke Ellington, outro músico que morreria bastante jovem (em 1942, com apenas 23 anos).
Em 1945 decidiu mudou-se para a Califórnia, onde se uniu ao “Johnny Otis Show”, atração do Club Alabam. Tratava-se de um espetáculo de variedades comandado por John Veliotes, um filho de imigrantes gregos, nascido em Vallejo, Califórnia, que passou a infância e a adolescência no bairro negro da cidade de Berkeley, também na Califórnia. Tendo adotado o nome artístico de Johnny Otis, ele foi baterista, vibrafonista, pianista, cantor, compositor, radialista, bandleader e produtor.
Apaixonado pela cultura negra e ferrenho opositor das práticas racistas tão comuns à época, cunhou uma frase que se tornaria célebre: “Decidi que se a sociedade nos impunha ser negros ou brancos, eu seria negro”. Ele, sua mulher e seus filhos se inseriram com bastante naturalidade à comunidade negra norte-americana e em suas orquestras jamais permitiu qualquer espécie de segregação ou preconceito racial. Várias de suas composições chegaram ao topo das paradas de R&B, como “Every Beat Of My Heart”, “Roll With Me, Henry” e “Willie And The Hand Jive”.
Suas orquestras foram um celeiro de artistas importantes do jazz, do blues e do R&B, e por ali passaram nomes como Big Joe Turner, Eddie “Cleanhead” Vinson, Charles Brown e Louis Jordan, entre outros. Gravou com sumidades como Illinois Jacquet e Lester Young, descobriu e lançou artistas do calibre de Esther Phillips, Etta James e Jackie Wilson e produziu os primeiros discos de Little Richard. Também foi o primeiro a gravar o hit “Hound Dog”, com Big Momma Thornton nos vocais de sua orquestra. Por tantas contribuições para a música norte-americana, Otis é dos poucos artistas a figurar, simultaneamente, no Rhythm & Blues Hall of Fame, no Blues Hall of Fame e no Rock & Roll Hall of Fame.
Em 1946, Counce deixou a orquestra de Otis para se dedicar ao trabalho como freelancer. Naquele mesmo ano, gravou com Lester Young e, em seguida registrou trabalhos com Benny Carter, Wardell Gray, Billy Eckstine, Bud Powell e Edgar Hayes, com quem tocaria com certa regularidade pelos quatro anos seguintes. O baixista também estudou arranjo e composição com Lyle “Spud” Murphy, que lhe abriu as portas para o meio musical da Costa Oeste.
A partir daí, trabalhou com Shelly Manne (1953), Shorty Rogers (1954) e Buddy DeFranco (1955), até ser contratado por Stan Kenton, com quem permaneceu até a primavera de 1956. A bordo da big band de Kenton, Counce fez a sua primeira excursão à Europa. Além disso, mantinha a agenda sempre lotada, tocando com músicos do gabarito de Frank Rosolino, Lyle Murphy, Red Norvo, Buddy Collette, Teddy Charles, Clifford Brown, Jimmy Giuffre, Pete Jolly, John Graas, Russell Garcia, Benny Goodman, Stan Getz, Chet Baker, Bill Holman e Al Cohn.
Após o término da excursão à Europa e fortemente influenciado pela convivência com Clifford Brown, o baixista decidiu montar um quinteto nos mesmos moldes daquele liderado Brown e Max Roach. Para isso, chamou os excelentes Jack Sheldon (trompete, que em alguns concertos e gravações foi substituído por Gerald Wilson ou Rolf Ericson), Harold Land (sax tenor), Carl Perkins (piano, sendo que após a sua morte, em março de 1958, foi substituído brevemente pelo não menos talentoso Elmo Hope) e Frank Butler (bateria).
De 1956 a 1958, o quinteto foi um dos mais reverenciados pequenos grupos da Costa Oeste, rivalizando, pelo menos na região de Los Angeles e San Francisco, em popularidade e prestígio com o próprio grupo que o havia inspirado. Counce e seus comandados eram atração fixa do célebre clube The Haig, em Los Angeles e logo despertaram a atenção do produtor Lester Koenig, que os levou para a sua Contemporary.
Foram quatro álbuns, gravados em pouco mais de dois anos, que revelam, nas palavras dos críticos Richard Cook e Brian Morton, “um grupo ousado e excitante, cujo legado vale a pena ser redescoberto”. A banda elaborava uma poderosa mistura do cool jazz tipicamente californiano com o peso do hard bop mais característico da Costa Leste e não ficava nada a dever a outros quintetos bem mais badalados da época, como o de Miles Davis e o de Horace Silver.
A crítica costuma dizer que se o grupo tivesse se estabelecido Nova Iorque, certamente teria tido um reconhecimento bem maior no concorrido cenário jazzístico nacional. Um dos seus mais representativos discos é “Landslide”, gravado nos dias 08 e 15 de outubro de 1956. É o primeiro álbum do quinteto e a sua formação é a que ficou mais conhecida, com Curtis, Perkins, Land, Sheldon e Butler.
A faixa título, de autoria de Land, abre os trabalhos de maneira explosiva. Sua construção elíptica, arrojada e surpreendente, remeta às composições de Thelonious Monk. O saxofonista é um solista de vastos recursos e sua abordagem intensa e consistente mostra que as comparações com Dexter Gordon ou Sonny Rollins não são despropositadas. Não é à toa que Victor Feldman certa vez declarou que Land era “o melhor tenor de qualquer Costa”. Solos arrebatadores de Perkins e Sheldon dão cor e calor ao tema, que não seria tão vibrante sem a pulsação rítmica imposta pela dupla Counce-Butler.
Com um arranjo delicado e que pouco se afasta da melodia original, o standard “Time After Time” mostra uma banda sólida, coesa, na qual os talentos individuais estão a serviço do conjunto. A sinergia do grupo pode ser sintetizada nas palavras do líder, que em uma entrevista chegou a afirmar que “apesar da ênfase nas atuações individuais, ou possivelmente por causa disso, nós trabalhamos juntos tão bem que em algumas noites, sentíamos e soávamos como uma pessoa”. As performances de Land e Sheldon alcançam as raias do sublime e Counce, qual um impecável maestro, cuida de aparar todas as possíveis arestas sonoras.
Composição de Gerald Wiggins e Kenny Clarke, “Sonar” conjuga o frescor do verão californiano com o ímpeto virtuosístico novaiorquino. O líder mantém a postura discreta, arquitetando seus breves solos com sobriedade e ótimo senso rítmico. A interação entre Land e Sheldon é absoluta e os desafios recíprocos que um lança para o outro constituem uma verdadeira aula de perícia e inventividade musicais. A excelente atuação de Butler, cujo discurso rítmico é inflamado, rápido e preciso, merece todas as loas.
“Mia” é um tema exuberante, de autoria de Perkins. Acelerada e potente, a faixa é um ótimo veículo para o virtuosismo de Sheldon, que aqui se notabiliza pelos ataques rápidos e cortantes, na esteira de Dizzy Gillespie ou Fats Navarro. Alegre e convidativa, reproduz o clima de jam session indispensável às boas gravações de jazz. A atuação de Perkins é intensa, cheia de groove e de um primoroso senso harmônico. O solo do incansável Land, que explora com maestria os registros agudos do instrumento, também é dos mais impactantes e merece ser ouvido com atenção.
Sheldon também é um compositor bastante talentoso e contribui com o estupendo blues “Sarah”. Seco, pesado e sem ornamentações, o tema é uma viagem dramática e poderosa pelo universo sombrio do blues, em seus quase 12 minutos de pura emotividade. O trompetista, mais uma vez, merece o mais amplo destaque, pela entrega e pela densidade que imprime ao tema. O líder tem aqui bastante espaço para solar e o faz com destreza e naturalidade.
“A Fifth For Frank” é uma homenagem a Frank Bultler e também foi composta por Gerald Wiggins, desta feita em parceria com o vibrafonista Cal Tjader. O homenageado Butler é arrojado e dinâmico, e usa todos os recursos da bateria para produzir uma sonoridade fluida e contagiante. Seus solos são muito bem construídos e ocupam boa parte dos sete minutos da faixa. Um álbum que, por tantas qualidades, não pode faltar em uma boa discoteca de jazz.
Embora ainda tenha gravado “Exploring The Future”, pelo pequeno selo Dootone, em abril de 1958, o grupo foi dissolvido em virtude da morte do pianista Carl Perkins. Nas gravações, quem toca o piano é Elmo Hope, mas Curtis, abalado pela morte do amigo e parceiro, não quis levar o grupo adiante com outro pianista e jamais voltou a liderar outras formações. Portanto, esse álbum tem a importância histórica de ter sido o último sob a liderança de Counce.
Sobre o período com o quinteto, o baixista escreveu nas notas do álbum “Carls Blues”, gravado entre abril de 1957 e janeiro de 1958, mas lançado apenas em 1960: “Passei alguns dos momentos mais felizes da minha vida ao lado desses músicos talentosíssimos. A total liberdade que cada um dos membros tinha para expressar suas idéias foi o alicerce do grupo. Nosso segredo era a habilidade que tínhamos para nos comunicar uns com os outros, de forma espontânea e bastante saborosa”.
Curtis manteve, todavia, a rotina de requisitado músico de estúdio, atuando como acompanhante de gente do calibre de Herb Geller, Art Pepper, Chet Baker, Vic Dickerson, Maynard Ferguson, Jimmy Rushing, Sonny Rollins, Jim Hall, Conte Candoli e muitos outros. Em 1959, atuou na banda de Coleman Hawkins e ao lado deste se apresentou no Festival de Monterrey. No ano seguinte, excursionou pela Austrália, sob a liderança de Benny Carter.
Curtis, que foi um dos primeiros músicos negros a integrar o West Coast Jazz, participou de diversos filmes ao longo de sua carreira, destacando-se “Carmen Jones” (1954), com direção de Otto Preminger, “St. Louis Blues” (1958), dirigido por Alain Reisner, e “The Five Pennies” (1959), sob a batuta de Melville Shavelson. Louis Armstrong também participou deste último, uma biografia do trompetista Ernest “Red” Nichols.
Ele faleceu precocemente, com apenas 37 anos, no dia 31 de julho de 1963, durante uma apresentação no clube “Small’s Paradise West”, em Los Angeles. Se há um consolo, pode-se dizer que Counce morreu fazendo o que mais amava: música! De qualquer sorte, há bastante material disponível – seja como líder, seja como sideman – para que os aficionados possam matar as saudades e reverenciar a sua arte superior.
Mais uma vez, peço o socorro do Mestre Apóstolo, que vaticina acerca desse talentoso contrabaixista: “possuidor de irresistível “swing’, com um tempo sólido a toda prova, explorava principalmente os registros médios e graves do contrabaixo, tendo adquirido ao longo dos anos uma sonoridade plena, elegante, personalíssima, com domínio técnico em qualquer andamento e em qualquer formação”.
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