Música e outras coisas
AGINDO COM DOLO E SEM CULPA
No jargão jurídico, o dolo serve para qualificar certos atos de vontade sob duas perspectivas: a civil e a criminal. No âmbito civil, dolo pode ser entendido como a conduta intencional que, por meio de expediente malicioso ou de artifício semelhante, induz uma determinada pessoa a praticar certo ato jurídico em prejuízo próprio, a fim de beneficiar o agente ou terceiro. A ocorrência do dolo compromete a livre manifestação de vontade daquele que foi ludibriado e é causa de anulação do ato jurídico, isto é, o negócio realizado mediante dolo pode ser desfeito pela vítima do engodo.
Essencialmente, existem duas formas de dolo, no âmbito civil. A primeira delas é o chamado dolus bonus, em que a conduta dolosa não implica em vício do consentimento e o artifício é de baixa magnitude, incapaz de provocar a anulação do negócio jurídico, uma vez que sua prática é socialmente tolerada (quando, por exemplo, um vendedor descreve de maneira exagerada as vantagens de um determinado produto).
A segunda é o chamado dolus malus, no qual o artifício fraudulento engana de maneira tão clara a vítima que o prejuízo é efetivo e não apenas potencial, pois a conduta dolosa viola a boa-fé e torna o negócio jurídico suscetível de anulação. É o que ocorre, por exemplo, quando uma pessoa vende um produto a outra, mas previamente substituiu uma série de peças novas, colocando em seu lugar peças velhas.
A outra forma de se compreender o dolo é sob a égide do direito penal. Dolo é a vontade de praticar determinado ato que o agente tem consciência de ser juridicamente proibido, isto é, age dolosamente o indivíduo que, mesmo sabendo que determinada conduta ou prática é proibida ou significativamente antijurídica, insiste em fazê-lo, assumindo assim os riscos decorrentes de sua ação. O dolo é um dos dois “elementos subjetivos do tipo penal” e leva em conta a intenção, a vontade do agente, conjugando essa vontade com um conteúdo cognitivo prévio, que é a consciência de que a sua ação ou omissão irá, ou poderá, atingir determinado fim ou proporcionar um resultado específico.
O segundo elemento subjetivo do tipo penal é a culpa. O Código Penal Brasileiro trata dela em seu art. 18, inciso II, onde se verifica que o crime culposo ocorre “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.” Diz-se que o crime é culposo quando o sujeito viola o dever de cuidado a que estava vinculado, age de maneira desatenta ou pratica ato para o qual não possuía aptidão técnica, decorrendo daí um resultado razoavelmente previsível, mas para o qual não concorreu a sua vontade efetiva. Para Paulo José da Costa Jr. no crime culposo “não se censura o agente por ter feito aquilo que não desejava. A reprovação advém do emprego de meios inadequados e perigosos, que produziram o fim não desejado”.
Para além das eventuais repercussões penais, pode-se dizer que na história do jazz diversos músicos tiveram, por assim dizer, uma conduta dolosa. E dentre aqueles que agiram com Dolo, podemos citar: Sonny Stitt, Art Pepper, Gene Ammons, Ted Edwards, Lou Donaldson, Ben Webster, Sahib Shihab, Harry “Sweets” Edison, Les McCann, Junior Cook, Clifford Brown, Sonny Rollins, Howard McGhee, Frank Butler, Sam Noto, Harold Land, Philly Joe Jones, Frank Morgan, Dexter Gordon, Herb Ellis, Arnett Cobb, Blue Mitchell, Red Rodney, Lee Konitz, Sonny Criss, Kenny Dorham, Dupree Bolton, Billy Mitchell, Jimmy Bond, Lawrence Marable e muitos outros.
Não, não, não... Ninguém está a dizer que essas feras do jazz cometeram algum ilícito civil ou penal. Bem, no caso de sujeitos como Frank Morgan, Gene Ammons, Art Pepper ou Dexter Gordon, não é segredo que tenham passado longos períodos de suas vidas na cadeia. Mas quando se fala em agir com Dolo, se quer dizer que todos eles atuaram, seja como líderes, seja como acompanhantes, ao lado de Charles Mitchell Coker, mais conhecido como Dolo Coker.
Dolo é um dos pianistas mais talentosos dos anos 50, 60 e 70, cuja notoriedade junto ao público é inversamente proporcional às suas qualidades de instrumentista superior. Existe alguma controvérsia acerca do seu local em que nasceu: para alguns, teria sido na cidade de Harford, estado de Connecticut. Já outros biógrafos apontam Atlantic City, em Nova Jérsei, como sua cidade natal. O certo é que ninguém diverge quanto ao dia do seu nascimento: 16 de novembro de 1927. O curioso apelido provinha de uma dança típica da região sul dos Estados Unidos e que o pequeno Charles adorava praticar.
Quando ainda era bem pequeno, sua família se estabeleceu na cidade de Florence, no estado da Carolina do Sul. Ali o garoto iniciou seus estudos musicais na Atlanta School of Music, e seu primeiro instrumento foi o saxofone C-Melody, um instrumento que atualmente se encontra em desuso mas que, nos anos 30 e 40, era bastante popular entre os músicos de jazz, situando-se em um ponto intermediário entre o sax tenor e o sax alto. Coker também dominava o sax alto, com razoável habilidade.
Aos 13 anos, quando já freqüentava a afamada Mather Academy, em Camden, também na Carolina do Sul, Dolo resolveu aprender piano e descobriu que ele e o novo instrumento haviam sido feitos um para o outro. A explicação para a permuta foi das mais singelas: “eu apenas intuí que havia mais oportunidades de trabalho para pianistas”, declarou o quase saxofonista. Já devidamente familiarizado com o piano, prosseguiria os estudos na Landis School of Music e no Orenstein's Conservatory, ambos em Filadélfia, com ênfase em composição e regência.
Na Filadélfia, ao mesmo tempo em que aperfeiçoava seu estilo com o pianista Howard Reynolds, Dolo, que quando se mudou para a cidade tinha apenas 16 anos, ia construindo uma ótima reputação entre os músicos locais. Seus parceiros nas gigs que rolavam nos clubes da cidade eram os futuros astros do jazz Jimmy Heath, Benny Golson e John Coltrane. Heath, aliás, foi o seu primeiro empregador e em sua banda Coker aprendeu bastante acerca de composição e arranjo.
Tendo conseguido alguma notoriedade por seu trabalho, ele foi contratado, em 1946, para tocar com o saxofonista Ben Webster. O período com Webster também foi decisivo na formação do pianista. Foram pouco mais de três meses de convivência, mas muito marcantes. “Ele revolucionou completamente a minha maneira de pensar, meus conceitos musicais, tudo enfim. Era um verdadeiro cavalheiro”, revela Coker.
Após um longo período como free-lancer, tocando com Clifford Brown, Howard McGhee e Arnett Cobb, Dolo foi chamado para integrar a banda do formidável Kenny Dorham, em 1955, Daí por diante, acompanharia portentos como Sonny Stitt, Gene Ammons, Lou Donaldson e Erskine Hawkins. O pianista estava tocando com a nata do jazz da época, razão pela qual o Mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso observa que “se esses primeiros anos não foram uma bela pós-graduação, escapa-me o título possível”.
Em 1959 mudou-se para San Francisco, a fim de acompanhar o baterista Philli Joe Jones. Entre 1960 e 1961, já estabelecido em Los Angeles, fez parte da banda de Dexter Gordon, que durante 18 meses foi atração fixa do clube Zebra Lounge. Em 1961 Gordon se transferiu para Nova Iorque e o pianista, que já havia consolidado uma boa reputação na cidade, preferiu continuar na cidade dos anjos.
Ali, não apenas montou seu próprio trio como també fez parte do elenco da montagem californiana de “Tha Conection”, musical que narra as desventuras de um grupo de viciados em drogas e que fez enorme sucesso na década de 60. Nos anos, se firmaria como um excelente acompanhante, tocando com alguns dos maiores nomes do jazz, como Herb Ellis, Sonny Stitt, Plas Johnson, Red Rodney, Lee Konitz, Sahib Shihab, Hank Crawford, Blue Mitchell e o grupo Super Sax.
Uma das suas parcerias mais duradouras foi com o trompetista Harry “Sweets” Edison, que se tornaria seu grande amigo e com quem voltaria a trabalhar nos anos seguintes. O pianista também atuou como diretor musical das bandas dos cantores Clyde McPhatter e Ruth Brown. Em 1974 atuou ao lado do trompetista Jack Sheldon e do cantor Richard Boone. O ano marcou também o seu retorno ao grupo de Dexter Gordon. No ano seguinte, uniu-se novamente à banda de Harry “Sweets” Edison, atração fixa do clube The Baked Potato, em Hollywood. Além de Dolo e Sweets, a banda contava com as luxuosas presenças do baixista Larry Gales, do saxofonista Jimmy Forrest e do baterista Earl Palmer.
Dolo tocou algum tempo com o tenorista Teddy Edwards e a partir de meados da década de 70, dedicou-se ao ensino do piano e também passou a escrever roteiros para a televisão. Em 1976 assinou com a Xanadu Records e somente então com mais de 30 anos de profissão, pôde gravar o seu primeiro álbum como líder, “Dolo!”, em 26 de dezembro daquele ano. A seu lado, um quarteto de peso: o saxofonista Harold Land, o trompetista Blue Mitchell, o contrabaixista Leroy Vinnegar e o baterista Frank Butler.
No dia seguinte o mesmo grupo voltou aos estúdios da Xanadu, desta feita para as gravações do ótimo “California Hard”. A única alteração foi a substituição de Land pelo extraordinário Art Pepper. O set começa com “Jumping Jacks”, um tema composto pelo líder, cuja pegada vigorosa se sente extremamente à vontade em um contexto tão inflamável. Pepper troca o habitual sax alto pelo sax tenor, com igual desenvoltura e clareza de idéias. Butler é, sem sombra de dúvida, um baterista de grande talento e bastante familiarizado com a enorme exigência rítmica do hard bop – sua performance é esfuziante e confere enorme peso ao tema.
Com um andamento médio dos mais contagiantes “Gone With The Wind” foi composta por Allie Wrubel e Herbert Magidson (este último tem a honra de ser o autor de “The Continental”, ganhadora do primeiro Oscar de Melhor Canção, em 1934). Pepper no sax alto e Mitchell no flugelhorn formam uma poderosa sessão de sopros e os diálogos entabulados pelos dois demonstram um entusiasmo juvenil e uma enorme fluidez de idéias. Coker mantém uma postura discreta no acompanhamento, mas é um músico inspirado e seu solo mostra personalidade e senso harmônico bastante afiado.
“Roots 4FB” é uma contribuição de Mitchell, cuja atuação exuberante combina técnica apurada, velocidade e senso estético audacioso, ao impor um toque mais próximo ao post-bop contemporâneo de um Woody Shaw. A longa extensão da faixa permite aos membros do quinteto a criação de solos extremamente bem arquitetados, destacando-se os do líder, do infalível Pepper (novamente a bordo do tenor e cujo sopro traz uma deliciosa pitada de R&B) e de Butler, que merece um registro à parte. Sua atuação é explosiva e seu ataque é implacável, extremamente articulado do ponto de vista rítmico e de um vigor estonteante. Basta dizer que dos quinze minutas da faixa, cerca de oito deles são dedicados ao seu solo antológico.
O compositor Art Pepper comparece com “Mr. Yohe”, tema que mescla a alegria da Costa Oeste com o groove característico do soul jazz. Sincopada e com uma atuação soberba de Vinnegar e Butler, a faixa tem nos solos incendiários de Mitchell e do próprio autor alguns dos seus maiores atrativos. Outro ponto alto é a atuação de Coker perfeito em seu acompanhament mas que, no solo, ainda consegue impregnar a essa já bastante saborosa mistura um formidável tempero de blues.
Na balada “Gone Again”, uma preciosidade pouco conhecida de Lionel Hampton, em parceria com Curley Hamner, Curtis Lewis, Coker ministra uma aula de lirismo e sensibilidade. Seu toque exala charme e romantismo, em uma performance enternecedora. Na empreitada, se faz acompanhar apenas de contrabaixo e bateria, em um arranjo sóbrio, que realça tanto suas qualidades de excelente melodista como também de exímio criador de climas harmônicos sofisticados.
A segunda composição de Coker presente no álbum é a avassaladora “Tale of Two Cities”. Hard bop com um pezinho no blues e um groove contagioso, o arranjo é dos mais propícios para o indomável Mitchell, cujo flugelhorn potente e certeiro parece ter herdado o apelo avassalador das trombetas de Gideão. Sem se fazer de rogado, Pepper aceita as provocações do parceiro e extravasa energia e uma técnica irrepreensível, mostrando-se um oponente vibrante e criativo. Coker dá bastante liberdade aos dois companheiros, mas também é um solista de amplos recursos, capaz de executar passagens tecnicamente complexas com naturalidade e sem nenhuma afetação.
O cd traz como faixa bônus uma interpretação solo de “Round Midnight”, uma das mais belas composições de Thelonious Monk. O arranjo é enxuto, quase reverencial, e todas as notas estão em seus devidos lugares, não havendo espaço para exageros ou frivolidades harmônicas. Um disco bastante representativo na carreira de Coker, que se torna ainda mais precioso por mostrar um pouco da memória musical da Xanadu, um dos pequenos selos mais cultuados da história do jazz. O álbum também pode ser entendido com um verdadeiro brado de resistência do jazz acústico de viés bop, estilo que parecia fadado à irrelevância nos anos 70, graças à quase onipresença do chamado fusion no cenário da época.
A associação com a Xanadu rendeu a Dolo quatro álbuns, dos quais apenas “California Hard” foi lançado em cd. Não obstante, sua ligação com a gravadora permitiu uma maior visibilidade a seu trabalho e rendeu-lhe convites para apresentações na Europa, Japão, África, Oriente Médio, Canadá, Bahamas e em vários outros cantos do mundo. De qualquer forma, seu talento pode ser conferido nas inúmeras gravações em que atuou como sideman, para selos como Roots, Pacific Jazz, Jazzland, Riverside, ABC-Paramount, Muse, Contemporary e na própria Xanadu, onde marcou presença em discos do trompetista Sam Noto, do saxofonista Al Cohn e do flautista Sam Most.
Dolo Coker faleceu no dia 13 de abril de 1983, em Los Angeles, em decorrência de um câncer. Deixou uma obra pouco conhecida, mas íntegra e bastante consistente. Nas palavras do Mestre Apóstolo, “seu estilo é uma ponte entre Art Tatum, Hank Jones e Red Garland, seus inspiradores no início profissional (melhor impossível!) e que lhe permitiram forjar estilo próprio, pessoal, incisivo. Domina as seqüências harmônicas como poucos e é capaz de encadear preciosas frases em legato, com muito swing e inventividade”.
A memória do pianista permanece viva graças à Dolo Coker Scholarship Foundation, organização sem fins lucrativos que tem por finalidade promover o jazz de revelar novos talentos. Situada em Los Angeles a fundação promove competições anuais, ministra oficinas e cursos e concede bolsas de estudo para jovens talentos. Para se ter uma idéia da seriedade da coisa, o vencedor da edição de 2004 do concurso foi o pianista Victor Gould, jovem revelação que em 2006 foi semifinalista da badalada Thelonious Monk Piano Competition e já tocou com luminares como Branford Marsalis, Terence Blanchard, Kurt Elling, Benny Golson e Nicholas Payton.
Nos meses de abril, a fundação também realiza o Tributo Anual a Dolo Coker e promove uma série de concertos que já fazem parte do calendário jazzístico de Los Angeles. Figuras importantes do jazz californiano atual costumam se fazer presentes nesses eventos, a exemplo do cantor Ernie Andrews, do trompetista Gregory Beck, do saxofonista George Harper e dos pianistas Art Hillery e Eliot Douglass, este último um ex-aluno de Coker.
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