LOUNGE É UM LUGAR QUE NÃO EXISTE
Música e outras coisas

LOUNGE É UM LUGAR QUE NÃO EXISTE




Ao longo de sua carreira, Eugene Haire Harris obteve um reconhecimento de público que a grande maioria dos músicos de jazz jamais conseguiu, sequer, chegar perto. Os álbuns gravados para a Blue Note nos anos 50 e 60, quando liderava o The Three Sounds, alcançavam, invariavelmente, os primeiros postos das paradas de jazz e, não raro, faziam ótima figura na bem mais concorrida parada pop.

Mais tarde, nos anos 80, fez uma bem-sucedida parceria com a Concord, onde também gravou discos bastante populares. No entanto, muitos puristas torcem o nariz para Harris e sua música. Acusam-no de excessivamente comercial e de adotar, em seus discos, uma abordagem previsível, que o aproximaria do chamado “smooth jazz”. É certo que há alguma verdade nessas palavras. Mas ser comercial não é, afinal de contas, o sonho de todo artista?

Como na canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, não é necessário que o artista vá até onde o povo está?  Essa discussão entre arte “comercial” e arte “autêntica” é tão antiga quanto a própria arte. Provavelmente surgiu quando algum homem das cavernas mais criativo começou a colorir as paredes de sua habitação com imagens rupestres e até hoje desperta celeuma e paixões.

Não creio que o apelo comercial seja algo ruim. Os Beatles faziam música comercial, mas com tanta qualidade que mesmo os exigentes padrões do jazz e do choro reconhecem a excelência de sua obra. Não é por acaso que suas canções têm sido usadas por ases do calibre de Grant Green, Charles Lloyd, Lynn Arriale, Hamilton de Holanda, Sarah Vaughan, Lee Morgan, Tony Williams, Toots Thielemans, Buddy Rich, Henrique Cazes, Joe Lovano, Bud Shank e uma quantidade interminável de outros grandes músicos. O insuspeito Frank Sinatra dizia que “Something” é uma das mais belas canções de amor que ele já tinha ouvido e cuidou de, ele próprio, elaborar a sua belíssima versão.


É justo e natural que o artista aspire a que o maior número de pessoas se identifique com a sua arte e, assim, compre, leia, assista e ouça aquilo que ele produziu. O fenômeno do comercialismo se torna incompatível com a arte quando se torna um fim em si mesmo. Quando uma determinada obra não é feita para expressar o sentimento do artista e sim para responder a uma suposta expectativa do mercado. O cinema infantilizado e estúpido que tem sido feito em Holywood nos últimos vinte anos, que debocha da inteligência do espectador e se preocupa exclusivamente com a receita nas bilheterias, dá bem essa dimensão.

De qualquer forma, o sempre sensato Pedro “Apóstolo” Cardoso tem uma opinião das mais lúcidas sobre Harris e a sua obra. Segundo ele, o pianista “manteve-se em uma fórmula de sucesso que, se lhe trouxe dividendos financeiros respeitáveis, por outra parte restringiu seu desenvolvimento musical em função da permanência da elegância musical, quase tangenciando o estilo ‘piano-bar’. Ainda assim, temos que considerar o swing, a articulação, as idéias claras dentro do que fez, sua linguagem soul, enfim, seu pianismo de alta categoria. Deixou-nos dezenas de gravações de qualidade, que poderemos ouvir  até o infinito.  E isso poucos conseguiram!”. Depois de palavras tão sábias, o melhor é pegar na estante um bom disco de Harris, ligar o player e desfrutar da sua companhia sempre calorosa e emocionante.

Gene nasceu no 1º de setembro de 1933, em Benton Harbor, Michigan. Autodidata começou a tocar piano com sete anos, graças à influência dos pianistas de boogie-woogie, especialmente Pete Johnson e Albert Ammons. Outra referência musical bastante presente em seus anos de formação foi o pianista e bandleader Charles Metcalf, cuja orquestra era bastante popular na região onde Gene foi criado. No futuro, incluiria a seu rol de influências os ótimos Oscar Peterson e Junior Mance.

Os pais de Gene, John e Ruby Harris, eram oriundos do Arkansas e haviam emigrado para o norte para fugir dos efeitos devastadores da Grande Depressão e também da terrível segregação racial. John logo arranjou emprego na indústria automobilística e pode dar à família um padrão de vida bastante razoável, inclusive mantendo em casa um piano, onde o pequeno Gene costumava se exercitar.

Dono de uma grande musicalidade e incrivelmente hábil para reproduzir, de ouvido, as canções populares do período, Harris formou, ainda na adolescência, a sua primeira banda, que chegou a ter alguma notoriedade local. Ele montou um trio, The 49 Club Trio, com o amigo de infância Bill Dowdy na bateria e um baixista chamado Olehyer Jones, que tocava regularmente em clubes e em programas de rádio na cidade.

As ambições musicais de Harris tiveram que ser adiadas, pois em 1951, logo  após a conclusão do ensino médio, ele foi convocado pelas forças armadas e serviu na “82nd Airborne Division”, em Fort Bragg, na Carolina do Norte. No exército, participou de várias bandas da corporação e aprendeu a ler música, pelas mãos do extraordinário Wynton Kelly, que servia na mesma companhia.

Ao ser desligado do serviço militar, em 1954, foi trabalhar em clubes da região de Battle Creek, Coldwater, Ann Arbor e Lansing, em Michigan, onde formou uma banda com o saxofonista Benny Poole. Ao lado dos dois, atuavam o baixista Leonard Hall e o baterista Reuben Upchurch e foi nesse período que Gene fez a sua primeira gravação, “Our Love Is Here To Stay”, pelo selo “Jubilee”, em 1955. A banda se manteve em atividade até 1956, quando um velho amigo do pianista entrou em cena.

Bill Dowdy havia se mudado para Chicago e estava construindo ali uma sólida carreira como acompanhante, tocando com nomes do quilate de J. J. Johnson, Johnny Griffin, Eddie Harris, Gene Ammons, Clifford Jordan, Sonny Stitt, Von Freeman, Wilbur Ware, Junior Mance e John Gilmore. Durante uma gig em South Bend, Michigan, ele e Harris se reencontraram e decidiram tocar juntos novamente.

Assim surgiu o grupo “The Four Sounds”, que contava ainda com Andrew “Andy” Simpkins no contrabaixo, sendo que o quarto membro, por opção dos três, deveria ser um saxofonista tenor. O primeiro deles foi Lonnie Walker, logo substituído por Joe Alexander, que durou poucos meses no posto. Apesar de alguns testes, Harris e companhia jamais encontraram outro saxofonista que se enquadrasse no perfil desejado.

Em 1957 o grupo desistiu de incluir o sax tenor em suas apresentações, passando a se chamar “The Three Sounds”. Harris e seu grupo atuaram inicialmente na região do Meio-Oeste, especialmente nos estados de Ohio e Indiana. Durante quase um ano o trio atuou como atração fixa do clube The Tijuana, em Cleveland, mudando-se em seguida para Washington D. C. Na capital dos Estados Unidos se estabeleceram como banda do The Spotlight e nessa condição acompanharam músicos como Sonny Stitt, Miles Davis, Bucky Pizzarelli, Kenny Burrell, Charlie Byrd e Lester Young,

Durante o período em Washington, Gene conheceu a sua primeira esposa, Ann Haire, com quem se casou em 1958. No mesmo ano, o trio decide tentar a sorte em Nova Iorque, onde aporta com uma recomendação de Mercer Ellington, filho do maestro Duke Ellington. O primeiro trabalho do trio na Meca do Jazz, foi acompanhar o cornetista Nat Adderley em algumas gravações para a Riverside.

Harris, Dowdy e Simpkins foram contratados como atração fixa do The Offbeat Club, onde dividiam os letreiros com a banda do violinista Stuff Smith. Pouco depois, despertaram o interesse da etiqueta Blue Note, que os contratou naquele mesmo ano, graças a uma indicação de Horace Silver, outro que havia se tornado um ardoroso fã do grupo. Em pouquíssimo tempo, os três estariam com a agenda permanentemente lotada, fazendo dezenas de apresentações em clubes, concertos e temporadas pelo país.

Em setembro de 1958, o trio fez sua estréia na gravadora de Alfred Lion. “Introducing the Three Sounds” foi muito bem recebido por público e crítica e a ele seguiram-se outros álbuns, como “Bottoms Up!” e “Good Deal”, ambos de 1959. No mesmo ano, gravaram com o saxofonista Lou Donaldson o bem-sucedido “Lou Donaldson with The Three Sounds”, de onde foi extraída uma versão de “Blue Moon” que chegou aos primeiros lugares da parada de R&B.

Em dezembro de 1960, o trio se juntou a outro grande saxofonista, Stanley Turrentine e o resultado da parceria pode ser conferido no fabuloso “Blue Hour”. Em 1961 mais um grande êxito de vendagens, “Hey There!”, que trouxe de volta às paradas o antigo sucesso de Benny Goodman, “Stompin’ at the Savoy”. Paralelamente ao trabalho com o Three Sounds, Gene desenvolvia uma auspiciosa carreira como acompanhante, marcando presença em trabalhos de nomes como Grant Green, Al Harewood, James Clay, Milt Jackson, Benny Carter, Anita O’Day e B. B. King, entre outros.

O trio desligou-se da Blue Note em 1962 e passou por várias gravadoras. Foi o período de álbuns como “Blue Genes”, de 1962, lançado pela Verve, de “Jazz On Broadway” (1962), “Some Like It Modern” (1963) e  “Live At The Living Room” (1964), todos pela Mercury. O grupo assinou com a Limelight em 1964, onde foram lançados álbuns como “Three Moods” (1964), “Beautiful Friendship” (1965) e “Today's Sounds” (1966).

A banda retornou à Blue Note em 1966 e celebrou o reencontro com a gravadora com “Vibrations”. Nessa nova fase, Bill Dowdy daria lugar ao talentoso Donald Bailey, que estreou em 1967, no álbum “Live at the Lighthouse”. O final da década de 60 mostra o trio em busca de novos caminhos musicais. Em “Coldwater Flat”, por exemplo, a banda se faz acompanhar por uma sessão de cordas e com uma orquestra conduzida por Oliver Nelson, que também elaborou os arranjos.

Em setembro de 1968 foi a vez do cultuado “Elegant Soul”, já com Carl Burnette na bateria. Pouco compreendido na época, o disco recebeu uma recepção fria por parte da crítica, mas suas vendas não decepcionaram. Contando novamente com uma sessão de cordas, com arranjos de Monk Higgins, além das presenças do vibrafonista Alan Estes, do guitarrista Al Vesvoco e do baterista Paul Humphrey, o álbum trafega pelo soul-jazz e flerta com o pop, mas sem perder o swing e chegou à décima nova posição na parada da Billboard Magazine.

Em 1969 o baixista Andrew Simpkins foi substituído por Henry Franklin e o grupo se manteve em intensa atividade. No ano seguinte, Franklin deixa o posto, dando lugar a Monk Montgomery, irmão do grande Wes. Essa formação não chegou a gravar e em 1971, o grupo passou a se chamar Gene Harris & the Three Sounds. Com Burnette na bateria e Luther Hughes, no baixo elétrico, o grupo mergulhou ainda mais fundo no pop, gravando canções como “Ain’t No Sunshine”, de Bill Withers, “It’s Too Late”, de Carole King e “Spanish Harlem”, de Jerry Lieber e Phil Spector.

Harris continuou a trilhar esse caminho por cerca de seis anos, período em que lançou mais alguns álbuns pela Blue Note, mas sem a repercussão de outrora. Em 1974, sob a liderança do baixista Ray Brown, fez uma longa temporada pela Europa. De volta aos Estados Unidos, reformulou o seu próprio grupo, que daí por diante seria um sexteto.

Um pouco desencantado com o rumo da carreira, em 1977 Gene se afastou da ribalta e foi morar em Boise, no estado do Idaho. Apaixonou-se pela cidade quando, ainda na década de 60, fez um show no local e costumava dizer que “se você não conhece Boise, não sabe o que é o paraíso”. Ali, assumiu a direção musical do Idanha Hotel e eventualmente se apresentando no Peter Schott’s Lounge, clube mantido pelo hotel, e no restaurante Main Street Bistro.

Gene desenvolveu uma estreita ligação com a Boise State University, onde ministrou diversas oficinas e se apresentou inúmeras vezes. Foi em Boise também que conheceu sua segunda esposa, Janie Harris, filha de uma abastada e tradicional família da região. Apesar de conservadora, a cidade acolheu o pianista com extrema generosidade e ele e Janie nunca sofreram qualquer tipo de preconceito ali.

Janie conta que a única vez em que ela e o marido foram vítimas de racismo aconteceu, inacreditavelmente, na civilizada Suíça. Ela, Gene, Dizzy Gillespie, Ray Brown, James Moody e Grady Tate aguardavam no saguão de um hotel o automóvel que os levaria até o local em que iriam se apresentar, durante o Festival de Berna. Um sujeito se aproximou do grupo e começou a proferir, em alemão, insultos de cunho racista para Janie, que estava abraçada ao marido. Tendo aprendido alemão na juventude, ela entendeu o que o imbecil havia dito e replicou da mesma forma, insultando-o na mesma língua.

Em 1981, Harris se aventurou a retornar ao mundo do jazz, a convite do seu amigo Ray Brown. Ele então assumiu o piano no novo trio que o baixista estava formando, cujo baterista era o talentoso Jeff Hamilton, atualmente bastante conhecido, por conta de sua longa associação com a cantora Diana Krall. O grupo fez uma bem sucedida temporada no Hacienda Hotel and Casino, em Las Vegas e Harris voltou à ativa com toda energia.

O trio excursionou pela Europa, acompanhando Dizzy Gillespie e em 1985 deu o suporte para a apresentação de Benny Carter na edição daquele ano do Concord Jazz Festival. A volta de Harris aos estúdios também aconteceu durante o seu período com Brown, no excelente “Soular Energy”, que conta com a presença, em algumas faixas, da guitarrista Emily Remler.

O pianista também acompanhou a cantora Ernestine Anderson em uma temporada no clube Parnell’s, em Seattle, e, por sugestão dela, foi contratado pela Concord. Em seguida, Harris trabalharia com o saxofonista Red Holloway, com o trompetista Wynton Marsalis e com o vibrafonista Milt Jackson. Animado com a receptividade, ele não demorou a montar seu próprio trio.

Com uma formação que incluía Ray Brown e Mickey Roker, gravou, também para a Concord, o ótimo “The Gene Harris Trio Plus One” (1985), ao vivo no clube Blue Note de Nova Iorque, reeditando a parceria com o saxofonista Stanley Turrentine. O disco foi agraciado com o prêmio Grand Prix Du Disc de Jazz, na França, em 1986.

Em 1987, Gene voltaria a trabalhar com Turrentine, durante uma turnê européia. Naquele mesmo ano, gravou “Tribute to Count Basie”, bastante elogiado pela crítica e que chegou a ser indicado ao Grammy, na categoria “Best Big Band Jazz Instrumental” no ano seguinte. Ainda em 1987, Harris liderou a Philip Morris Superband, grupo All-Star, integrado por Ray Brown, Harry “Sweets” Edison, Jef Hamilton e Herb Ellis, entre outros luminares.

O grupo deixou álbuns como “Live at Town Hall, N.Y.C., With The Philip Morris Superband” (1989) e “Wolrd Tour” (1990), excursionando intensamente até 1991, quando foi desfeito. Uma nova edição da Philip Morris Superband foi reeditada em 1995, para a gravação do disco “Philip Morris All-Stars Live”, ainda sob o comando de Harris e contando com gente do gabarito de Harry “Sweets” Edison, Stanley Turrentine, Kenny Burrell, George Mraz e Lewis Nash.

Mostrando que as parcerias com os saxofonistas sempre produziram excelentes resultados, “At Last” traz Harris na companhia do formidável Scott Hamilton. Os dois dividem os créditos do álbum, que conta ainda com uma retaguarda de peso: Herb Ellis na guitarra, Ray Brown no contrabaixo e Harold Jones na bateria. As gravações foram feitas em maio de 1990 e o que se ouve é um primoroso exercício de destreza, sensibilidade e encantamento.

Logo na faixa de abertura, “You Are My Sunshine”, canção bastante popular nos anos 30 e 40, de autoria de Charles Mitchell e Jimmie Davis, o quinteto mostra a que veio, com uma interpretação musculosa e cativante. Ellis está inspiradíssimo, despejando os acordes com fúria e entusiasmo. Harris injeta doses maciças de blues em sua performance, mas não esquece da força que os spirituals tiveram em sua formação. O sopro de Hamilton é caloroso e sempre muito empolgante e seus solos possuem uma robustez que lembra a poderosa escola texana de tenoristas.

Segue-se uma versão arrepiante de “It Never Entered My Mind”, composição da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart, que fez parte do score do musical “Higher And Higher”, de 1940. O arranjo é uma notável tapeçaria de delicadezas, de onde Harris emerge como um legítimo herdeiro de Erroll Garner. É uma balada romântica de contornos ellingtonianos e Hamilton não participa desta faixa, na qual a guitarra, o contrabaixo e a bateria permanecem como um luxuoso suporte para a sofisticada atuação do pianista.

“After You’ve Gone”, de Henry Creamer e Turner Layton, é ainda mais antiga, de 1918, mas foi imortalizada pela gravação de Louis Armstrong, em 1929. A versão do quinteto é incendiária, com direito a uma eletrizante performance de Ellis, que dispara uma seqüência em velocidade supersônica. Hamilton não é menos enfático em seus solos e a energia percussiva de Jones possui a intensidade de uma locomotiva.

“The Lamp Is Low”, de Bert Shefter, Mitchell Parish e Peter DeRose, foi construída sobre a melodia de “Pavane pour une infante défunte”, de Maurice Ravel. Sua atmosfera classuda deve bastante aos diálogos enternecedores travados por Harris e Hamilton, cuja sonoridade macia evoca o mago Stan Getz. O quinteto trafega com discrição pela bossa nova, merecendo destaque o trabalho irretocável de Brown e de Jones.

O tema que dá nome ao disco é fruto da parceria entre Harry Warren e Mack Gordon, que também deram ao mundo gemas como “Chattanooga Choo Choo”, “There Will Never Be Another You” e “The More I See You”. Aqui temos apenas o sax de Hamilton e o piano de Harris, dialogando de maneira elegante e charmosa. Apesar do arranjo minimalista, a faixa possui uma grande intensidade emocional e evidencia a sensibilidade e o bom gosto de dois dos mais versáteis e criativos nomes do jazz de todos os tempos.

“Blues For Gene” é uma homenagem de Milt Jackson ao pianista, que agradece a deferência da maneira mais auspiciosa possível: tocando com a alma e o coração. Ressaltem-se as impressionantes intervenções de Hamilton, Brown e Ellis, que elevam a arte de solar a patamares restritos a bem poucos músicos. “I Fall in Love Too Easily”, de autoria de Jule Styne e Sammy Cahn, recebe um arranjo quase tão pungente quanto o da versão definitiva, feita por Chet Baker. As comoventes atuações de Harris e Ellis são um espetáculo à parte e põem a sutileza a serviço da emotividade.

A versão de “Some of These Days”, canção de domínio público, é tão arrebatadora quanto a que Alberta Hunter apresentou ao mundo no álbum “The Glory of Alberta Hunter”. Encharcada de blues, ela encanta desde a introdução, a cargo de um inspiradíssimo Herb Ellis. Jones tem uma de suas mais primorosas participações e a atmosfera remete aos anos vinte, temperando a vocação blueseira do tema com saborosas pitadas de swing e dixieland. Merece atenção redobrada o sopro incansável e volumoso de Hamilton.

Na dolente “Stairway to the Stars”, de Frank Signorelli, Matty Malneck e Mitchell Parish, Hamilton cria um clima lânguido e comovente, enquanto Harris dedilha o piano com o lirismo de um poeta oitocentista. Destaque também para a sensibilidade percussiva de Jones, cujo trabalho com as escovas é notável.

Para encerrar, uma interpretação vigorosa de “Sittin' in the Sandtrap”, de Ray Brown. O baixista tem aqui uma de suas atuações mais cintilantes, conjugando força física, habilidade técnica e capacidade melódica primorosas. Hamilton e Harris, cada um a seu modo, fazem releituras impactantes do blues, especialmente o pianista, que se apóia nas notas mais graves para dar maior profundidade ao tema. Um álbum relaxado e despretensioso, onde a música flui com naturalidade e elegância e que dá uma boa mostra das qualidades desse grande pianista, por cujas mãos “a tradição do jazz rude e pouco polido se transfigura numa expressão de vitalidade, explorando uma trama harmônica e certos efeitos sonoros de completo êxito”, nas palavras do pesquisador Sylvio Lago.

Em 1991, Gene modificaria a sua banda, que passou a ser um quarteto, complementado pelo guitarrista Ron Eschete, pelo baixista Luther Hughes e pelo baterista Harold Jones, mais tarde sucedido por Paul Humprey. Com essa formação, o grupo registraria alguns ótimos álbuns para a Concord, destacando-se “Blue Gene” (1991), “Funk Gene’s” (1994) e “Brotherhood” 1995).

O pianista criou, em 1996, a Gene Harris Endowment, entidade dedicada a distribuir bolsas de estudo para que jovens músicos pudessem estudar na Boise State University. Naquele ano, fez uma triunfante temporada no clube Pizza Express, em Londres, cujo resultado pode ser conferido no álbum “Live in London” (Resonance), onde se faz acompanhar do guitarrista Jim Mullen, do baixista Andrew Cleyndert e do baterista Martin Drew. O disco foi lançado em 2008 e aquela turnê gerou também “Snother Night in London”, lançado em 2010 também pela Resonance. A nota triste foi a perda de sua filha, Tammy Haire, aos 36 anos, em decorrência de um câncer.

1998 marca a criação do Gene Harris Jazz Festival, uma iniciativa conjunta entre o pianista e a Boise State University e que é realizado anualmente desde então. Naquele ano o pianista gravaria o seu último álbum, “Alley Cats” Concord), ao vivo, no clube Dimitriou’s Jazz Alley, em Seattle, com participações especiais dos saxofonistas Ernie Watts e Red Holloway. Nesse período, já apresentava os sintomas de uma grave doença renal e também do diabetes.

O ano de 1999 foi doloroso. Crises renais e várias internações praticamente o retiraram de cena. No dia 16 de janeiro de 2000, o pianista faleceu, em decorrência de falência dos rins. Ele estava a poucos dias de receber um transplante renal, e uma de suas filhas seria a doadora. Para o crítico Mike Joyce, da revista Jazz Times, Harris era um “vital, desembaraçado e propulsivo músico, que pode tornar bem-vinda a audição da mais surrada canção”. Em 2005, a viúva do pianista, Janie Harris, lançou o livro “Elegant Soul: the Life and Music of Gene Harris”, escrito em parceria com o jornalista Bob Evancho, onde relata sua vida ao lado de Gene.

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