A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS
Música e outras coisas

A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS



Poucas coisas poderiam assustar mais um homem do medievo que a aterradora visão de um drakkar se aproximando, rápida e sorrateiramente, de um porto ou cidade litorânea. A embarcação, cuja tradução significa, literalmente, “navio-dragão”, por causa do seu formato, era o veículo típico dos vikings, civilização que habitava a região da Escandinávia, englobando o que hoje é a Suécia, a Noruega e a Dinamarca.

Os vikings eram guerreiros natos e navegadores habilíssimos. A bordo de suas longas, porém ágeis, embarcações, saqueavam tudo o que encontravam pela frente, especialmente mosteiros situados à beira-mar e pequenas cidades costeiras, sobretudo na região do Mar Báltico. A coragem proverbial impeliu-os a singrar os gelados mares do norte da Europa e a cruzar o Atlântico, descobrindo, no caminho, a Islândia e a Groenlândia.

Os litorais do que hoje conhecemos como Rússia, França e Inglaterra também sofreram com as invasões vikings. Há historiadores que acreditam, até mesmo, que eles foram os primeiros europeus a desembarcar na América, em algum local situado entre o norte dos Estados Unidos e o sul do Canadá. Embora pudessem ser brutais, quando resolviam atacar uma determinada localidade, os vikings também eram hábeis comerciantes e possuíam uma civilização bastante sofisticada.

Dominavam a escrita, tinham uma agricultura e uma pecuária razoavelmente desenvolvidas e dispunham de uma metalurgia bastante avançada, o que explica, em parte, o sucesso de seus empreendimentos militares. Os vikings eram reconhecidos como excelentes fabricantes de armas, e as utilizavam com idêntica maestria.

Donos de uma mitologia rica e fascinante, os vikings eram politeístas e acreditavam em vários deuses. O principal deles era Odin, o todo-poderoso, que havia criado a terra e os homens. O deus mais popular, todavia, era seu filho, o bravo Thor, o Deus do Trovão, sempre disposto a encarar uma boa briga e que, via de regra, vivia enredado em alguma confusão arranjada pelo dissimulado Loki. Os deuses nórdicos viviam em Asgard, uma espécie de Olimpo louro e de olhos azuis.

A guerra era um elemento muito importante na formação de um viking. Eles acreditavam que os guerreiros mais valentes, mortos em combate, eram recolhidos dos campos de batalha pelas Valquírias, belas e corajosas guerreiras, e levados para Valhala (cuja tradução seria algo como “O Salão dos Mortos”), uma espécie de paraíso reservado apenas para aos mais bravos e honrados.

Inspirado pela mitologia nórdica, o compositor alemão Richard Wagner escreveu a ópera “Die Walküre” (A Valquíria), que integra a ambiciosa tetralogia “O Anel do Nibelungo”. A passagem mais popular da ópera é conhecida como “A Cavalgada das Valquírias” e abre a primeira cena do terceiro ato. Seu estilo grandiloqüente e intenso faz parte do imaginário popular, em grande parte por conta de ser o fundo musical de uma das cenas mais impactantes de “Apocalipse Now”, a personalíssima releitura de Coppola para o inferno da Guerra do Vietnã, baseada no romance “O coração das trevas”, de Joseph Conrad.

Invertendo a ordem histórica, no século XX as terras que pertenceram aos vikings foram invadidas por uma horda de homens de além mar. Ao invés de armas, sujeitos como Sahib Shihab, Warne Marsh, Benny Carter, Don Byas, Kenny Drew, Red Mitchell, Carmell Jones, Brew Moore, Clark Terry e Dexter Gordon, entre outros, portavam saxofones, trompetes, baquetas, contrabaixos e retribuíram, mil anos depois, a suposta visita que os vikings teriam feito à sua América natal.

Mas para não decepcionar o espírito desbravador de seus predecessores, também o jazz foi invadido por um viking. Niels-Henning Ørsted Pedersen conservou dos ancestrais a audácia e a tremenda perícia e, embora não fosse navegador, fazia com que os ouvintes viajassem em sua sonoridade poderosa, rica e pulsante. Sem dúvida alguma, inscreveu seu nome entre os maiores nomes do contrabaixo jazzístico, ombreando-se, em técnica e habilidade, a Charles Mingus, Ray Brown e Oscar Pettiford.

Pedersen nasceu no dia 27 de maio de 1946, em Osted, cidadezinha localizada na ilha dinamarquesa de Zealand. A musicalidade veio de berço, já que o pai era organista da igreja local e seus irmãos mais velhos eram músicos amadores. Seu primeiro instrumento foi o piano, que começou a tocar ainda na infância. No início da adolescência, Pedersen tocava em uma banda de dixieland com os irmãos e alguns amigos, chamada “Don Camilo and His Feetwarmers”. Um desses amigos, Ole Kock Hansen, também era pianista e acabaria tomando seu lugar nos teclados da banda. Como curiosidade, Hansen seria o pianista do primeiro álbum solo de Pedersen, “Jaywalkin’”, gravado em 1976, para a Steeplechase.

Assim, NHØP, como é carinhosamente conhecido no meio jazzístico, viu-se obrigado a optar pelo contrabaixo. A troca acabou sendo um ótimo negócio para o garoto, que, com apenas 13 anos, logo se revelou um verdadeiro fenômeno. A fim de aperfeiçoar a sua técnica, estudou com o renomado contrabaixista Oscar Hegner, integrante da orquestra do Royal Theater, e já no ano seguinte, aos 14 anos, integrou-se a uma banda de jazz de Copenhagen, chamada Jazzkvintet. Em seguida, tocou algum tempo no trio do pianista Bent Axen, onde chamou a atenção do público e da crítica para seu trabalho.

Em 1962, aos 15 anos, começou a se apresentar profissionalmente como o baixista regular do tradicionalíssimo Montmartre Jazzhus, clube mais importante da Dinamarca. Seu primeiro trabalho foi acompanhar ninguém menos que Bud Powell, em uma temporada dinamarquesa, que durou de fevereiro a abril daquele ano. A partir de então, construiu um portfólio que o coloca, seguramente, entre os mais prolíficos músicos de jazz de todos os tempos.

Virtualmente, todos os grandes músicos norte-americanos – estabelecidos ou apenas de passagem pela Dinamarca – foram acompanhados pelo jovem NHØP. A lista impressiona pela quantidade e pela qualidade: Ben Webster, Art Farmer, Joe Henderson, Lucky Thompson, Donald Byrd, Kenny Dorham, Johnny Griffin, Bill Evans, Albert “Toot” Heath, Brew Moore, Joe Pass, Don Byas, Duke Jordan, Stuff Smith, Horace Parlan, Teddy Wilson, Lee Konitz, Warne Marsh, Stan Getz, Jackie McLean, Roy Eldridge, Ray Bryant, Louie Bellson, Jimmy Smith Dizzy Gillespie, Herb Geller, Roland Kirk, Sonny Rollins, Joe Albany, Chet Baker, Dexter Gordon, Freddie Hubbard, Count Basie, entre incontáveis outros.

Count Basie, aliás, ficou tão impressionado com a habilidade do rapaz que o convidou para juntar-se à sua orquestra. Receoso de ter que enfrentar problemas legais nos Estados Unidos, por conta de sua pouca idade – 17 anos na época do convite – NHØP recusou a oferta e continuou no seu país. Além do emprego fixo no Montmartre, ele fazia parte da prestigiosa Danish Radio Orchestra, onde permaneceu de 1964 a 1982, e gravava com intensidade para o selo dinamarquês Steeplechase, fundada por Nils Winther em 1972.

Também trabalhou com alguns dos nomes mais importantes do jazz europeu, dentre eles, Tete Montoliu, Alex Riel, Jean-Luc Ponty, Palle Mikkelborg, Stéphane Grappelli, Louis Van Dyke, Philip Catherine, Martial Solal, Niels Lan Doky, Ulf Wakenius, Svend Asmussen e Michel Petrucciani, entre outros. Acompanhou as cantoras Ella Fitzgerald, Tânia Maria, Karin Krog e Maria João e o pianista canadense Paul Bley. Sua versatilidade permitia que trabalhasse tanto ao lado de um gigante do bebop quanto de expoentes do free jazz mais radical, como Archie Shepp, Albert Ayler, John Tchicai e Anthony Braxton, com a mesma desenvoltura.

Um dos seus mais constantes parceiros era o pianista Kenny Drew, ao lado de quem gravou dezenas de álbuns, muitos deles no formato de duo. Outra associação importante, e que projetou seu nome para além do continente europeu, foi com o também pianista Oscar Peterson, cujo trio NHØP integrou, a partir de 1971, no álbum “Great Connections” (MPS), ocupando o lugar que já havia pertencido a sumidades como Ray Brown e Sam Jones.

Os dois já haviam tocado juntos no ano anterior, quando Niels substituiu o então baixista de Peterson, o tcheco George Mraz, em uma turnê pela extinta Tchecoslováquia. O baixista, que havia fugido do país e se estabelecido nos Estados Unidos, estava proibido de retornar à terra natal e NHØP foi recrutado para o posto. Quando Mraz deixou o Oscar Peterson Trio, o baixista dinamarquês foi uma escolha natural e a associação profissional se transformou em uma sólida amizade. Entre muitas idas e vindas, os dois tocaram juntos por quase trinta anos e legaram ao mundo grandes álbuns e apresentações inesquecíveis.

Peterson, seguramente o mais técnico e hábil discípulo de Art Tatum, tinha um enorme respeito por seu jovem baixista. Perguntado sobre quem seria melhor, Ray Brown ou Niels Pederson, o pianista respondeu, certa vez: “Esta é uma pergunta injusta e impossível de responder, porque se trata de músicos completamente diferentes em suas concepções musicais. Ray é, essencialmente, o mais fantástico integrante de uma sessão rítmica com quem já toquei. Niels, como solista, é extremamente lírico em seu toque e, sem dúvida, o melhor solista do mundo em seu instrumento”.

O baixista também compunha – “My Little Anna” e “The Puzzle” são seus temas mais conhecidos – e fazia arranjos, muitos deles dando interpretações jazzísticas a temas folclóricos dinamarqueses. Com centenas de participações em álbuns alheios, NHØP possui uma discografia relativamente modesta, sob o aspecto quantitativo, em seu próprio nome. Além dos álbuns em que divide os créditos com o amigo Kenny Drew, destacam-se “Double Bass” (Steeplechase, 1976), onde Pedersen e Sam Jones atuam em duo, secundados por Billy Higgins (bateria), Albert “Tootie” Heath (percussão) e Philip Catherine (guitarra), e “Friends Forever” (Milestone, 1995), ao lado da pianista Renee Rosnes, no qual o baixista homenageia o amigo Kenny Drew.

“Those Who Were” se enquadra entre os seus mais belos e cativantes trabalhos. O álbum foi gravado para a Verve, em maio de 1996, nos Estúdios Focus, na Dinamarca, com produção do pianista Niels Lan Doky. Acompanham o baixista, o guitarrista Ulf Wakenius e os bateristas Victor Lewis e Alex Riel, que se revezam nas baquetas. O disco conta com as participações especiais de Johnny Griffin no sax tenor (em duas faixas) e da cantora sueca Lisa Nilsson, em uma faixa.

O repertório eclético, traz standards, temas de autoria do líder e leituras de músicas tradicionais dinamarquesas. Abrindo o disco, uma hipnótica versão de “Our Love Is Here to Stay”, dos irmãos Gershwin, uma mostra da habilidade melódica e do fraseado doce e lírico do baixista. Wakenius usa a guitarra acústica de maneira bastante sóbria. A quase imperceptível percussão de Lewis serve como um complemento sonoro para as graciosas harmonias do líder.

A lisérgica “Derfor Kan Vort ØJe Glædes” é baseada no folclore dinamarquês e sua estrutura reflexiva remete aos álbuns impressionistas da ECM. Lewis, mais uma vez, apresenta uma batida minimalista. Em “With Respect”, Wakenius usa a guitarra elétrica, com destreza e muito swing. A abordagem do trio é moderna, lembrando as incursões mais jazzísticas de Pat Metheny. A pegada de Pedersen é vibrante, concisa, uma verdadeira aula de senso rítmico e seus improvisos são paradigma de inteligência musical. Lewis maneja sua bateria com uma energia contagiante.

“Those Who Were” tem a participação da cantora Lisa Nilsson nos vocais e Riel substitui Lewis com igual competência. É uma balada simples e direta, de autoria de NHØP e da cantora, valorizada pela voz intimista de Nilsson e pelo clima caloroso que o baixista impõe a seu toque. Outra balada, a viajante “Friends Forever”, traz um arranjo despojado e um soberbo trabalho do inventivo Wakenius na guitarra acústica, que impregna a seu fraseado uma discreta tintura flamenca.

Mostrando que domina com muita intimidade o idioma bop, Pedersen apresenta sua composição “The Puzzle”, simplesmente irretocável. A extrema perícia do baixista, com suas harmonias alucinantes, e a participação de Griffin, com seu sopro vitaminado e imerso no blues, fazem deste um dos temas mais empolgantes do álbum. Na guitarra elétrica e emulando craques como Pat Martino e Barney Kessel, o encapetado Wakenius se esmera em solos de alta complexidade e elevadas doses de swing.

“Wishing and Hoping” flerta com a bossa nova e é uma das mais charmosas faixas do disco. A simplicidade da interpretação do trio, com destaque para a bateria calorosa de Lewis, remete aos grandes momentos da música brasileira. A suntuosa versão de “You and the Night and the Music”, da dupla Howard Dietz e Arthur Schwartz, com Grifffin em estado de graça, é outro momento de rara inspiração. A sonoridade de Pedersen é rica e sua capacidade de engendrar atmosferas harmônicas de rara beleza parece inesgotável.

A animada “Guilty, Your Honour”, com seu clima descompromissado e alegre, encerra o álbum com um astral festivo e deixa no ouvinte uma agradabilíssima sensação de bem estar. A nota triste é que este seria um dos últimos discos de Pedersen como líder, que somente gravaria mais um álbum em seu próprio nome: “This Is All I Ask” (Verve), de 1998, que conta com uma rara participação de Oscar Peterson como sideman. Em 2007 seria lançado “The Unforgettable NHØP Trio Live”, também para a Verve, reunindo gravações feitas pelo trio do baixista entre 1999 e 2005.

O baixista trabalhou, como freelancer, durante toda a década de 90 e nos primeiros anos do sáculo XXI, com participações em álbuns de Biréli Lagrene, Toots Thielemans, Paquito D’Rivera, Richard Galliano e muitos outros. Foi agraciado com o Nordic Council Music Prize, em 1991, e durante anos lecionou no Rytmiske Musikkonservatorium, em Copenhagen. Sua técnica inovadora, comparável à de Scott LaFaro pela inventividade, incluía um uso revolucionário da mão direita e a utilização de captadores especiais, que davam ao seu timbre uma característica toda original de densidade e extensão.

NHØP faleceu prematuramente, no dia 19 de abril de 2005, em decorrência de um ataque cardíaco. Tinha apenas 58 anos e deixou uma obra registrada em mais de oitocentas gravações. Ecos do seu estilo inovador e ousado podem ser sentidos em grandes baixistas contemporâneos, como John Patitucci, Brian Bromberg e Christian McBride, todos confessadamente influenciados por ele. Guerreiro de grande valentia nas lides jazzísticas, “O Viking”, como também era conhecido, certamente descansa no Valhala reservado aos grandes contrabaixistas do jazz, ao lado de outros monstros como La Faro, Pettiford, Brown, Mingus, Vinnegar e Blanton.

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