UMA BICICLETA EMOLDURANDO AS PAREDES DA SALA DE ESTAR
Música e outras coisas

UMA BICICLETA EMOLDURANDO AS PAREDES DA SALA DE ESTAR



Horace Silver é um assombro! Em sua alentada discografia não há espaço para um único disco mediano. Esse soberbo pianista, que possui uma ligação muito especial com o Brasil, jamais gravou um mísero álbum irrelevante e, merecidamente, inscreveu seu nome com letras douradas na galeria dos maiores nomes do jazz de todos os tempos, como músico, arranjador e compositor de raro talento. Ainda por cima, é a prova mais avassaladora da falsidade do argumento de que as drogas seriam uma fonte primária ou a causa principal de um propalado aguçamento da inspiração – afinal, o compositor de “Doodlin”, “Nica’s Dream” e “Song For My Father” é um “careta” convicto.


Horace Ward Martin Tavares Silver (o pai americanizou o próprio nome quando casou com a mãe de Horace), nasceu a 2 de setembro de 1928, em Norwalk, Connecticut. Filho do imigrante cabo-verdiano John Tavares Silva (depois Silver), desde muito cedo, revelou uma excepcional aptidão para a música. O ambiente familiar contribuía para isso – de um lado, a mãe o levava aos cultos da igreja que freqüentava, onde o pequeno Horace conheceu os spirituals; do outro, o pai, violonista amador e emérito festeiro, que promovia concorridas reuniões para os patrícios e onde a animada música da terra natal rolava à vontade na vitrola da família Silver.


Sempre estimulado pelo pai, que lhe comprou o primeiro piano ainda na infância e o pôs para estudar com o severo organista de uma igreja da cidade, Horace foi um aluno disciplinado e bastante dedicado. Em 1948 mudou-se para Hartford, onde integrou um trio local. Em 1950, o trio acompanhou Stan Getz em uma apresentação na cidade. O saxofonista gostou do que ouviu e contratou os três para acompanhá-lo em uma breve turnê – que se transformou em uma parceria de quase dois anos – e o nome de Silver foi ficando conhecido nos meios jazzísticos. No mesmo ano, mudou-se para Nova York e ali pôde tocar com astros da estatura de Charles Mingus, Roy Haynes e Lou Donaldson. Acompanhou os ídolos Coleman Hawkins e Lester Young e conheceu o notável Art Blakey, ao lado de quem fundaria, em 1954, os Jazz Messengeres, onde permaneceria até 1956.


Contratado pela Blue Note, passou quase 30 anos na companhia e lançou discos históricos, destacando-se os badalados “Song For My Father”, seu maior sucesso comercial, “Horace-Scope”, “Six Pieces of Silver” e “Blowing The Blues Away”. Após sair dos Messengers, montou um quinteto, por onde passaram, entre outros, os trompetistas Kenny Dorham, Carmell Jones e Blue Mitchell, os saxofonistas Junior Cook, Joe Henderson e Hank Mobley, os baixistas Gene Taylor, Teddy Kotick e Teddy Smith e os bateristas Louis Hayes, Roy Brooks e Roger Humphries. Em 1957 lançou uma pequena obra-prima. “The Stylings Of Silver” dificilmente é relacionado entre as obras mais importantes do pianista (sequer consta da completa discografia do pianista indicada no Penguin Guide de 2006), mas nesse disco se encontra o embrião de muito do que o pianista iria fazer na década de 60, quando viveria o seu apogeu criativo.


Secundado por uma banda excepcional (Art Farmer no trompete, Hank Mobley no sax tenor, Teddy Kotick no baixo e Louis Hayes na bateria), Horace ajuda, com esse álbum fabuloso, a compreender a transição do bebop para o hard bop (do qual foi um dos mais eméritos criadores), sinaliza uma aproximação com a soul music (movimento que se consolidaria na década seguinte) e, de quebra, dá uma demonstração do seu superlativo talento composicional – é o autor de cinco das seis músicas gravadas. Percebem-se claramente ecos de Ellington, sua maior influência, especialmente na lindíssima versão de “My One And Only Love”, com o pianista mostrando que, além de transitar com rara maestria em ambiente mais “funky”, ele também sabe ser puro lirismo. Nem precisa dizer que Art Farmer – baladeiro por excelência – rouba a cena, embora o solo de Mobley também seja lindíssimo.


Voltando à atmosfera incandescente que permeia as demais faixas, o disco abre com a ótima “No Smokin”, um hard bop clássico, no qual Silver exercita a notória velocidade de seus dedos. Um trabalho de pratos atordoante é a contribuição de Hayes para a sessão, com direito a um grandioso solo ao final, que ainda tem como atrativo um excelente duelo entre Farmer e Mobley (como sempre, muito à vontade em um contexto mais “hot”). Na complexa “The Back Beat”, cheia de variações melódicas, o bebop é o mote condutor, com destaque para os solos antológicos de Mobley e Farmer. O anfitrião mantém-se quase o tempo todo ao lado de Kotick e Haynes fazendo a base rítmica, mas quando sola revela a importância de Monk (outra confessa influência) em sua formação.


“Souville” é puro blues. Baixo fazendo a marcação juntamente com o piano, trabalho magistral de Hayes nos pratos e metais altamente coesos. Mobley, mais uma vez, exibe sua técnica de forma avassaladora, construindo um dos melhores solos do disco e Silver faz uma discreta citação da clássica “Riders In The Sky”. As experimentações rítmicas de Silver são sintetizadas na ótima “Home Cookin”, talvez o grande destaque do disco. Bebop de ótima cepa, poderia ter sido composta por Gillespie (com quem Farmer soa extremamente parecido ao longo da sessão – quase é possível vê-lo com as bochechas infladas a la Dizzy) ou Parker, mas embora seja uma composição harmonicamente elaborada, sente-se nela a onipresença inefável do blues. Em “Metamorphosis”, outra composição nada linear e cheia de variações, um exuberante Silver serpenteia entre as intrincadas estruturas harmônicas, fazendo jus ao título, que sugere transformação. Novo show da dupla Farmer-Mobley, atuando com uma competência invulgar.


Relançado em 2002 com a habitual maestria de Rudy Van Gelder na remasterização, o álbum soa límpido e fresco, como se tivesse sido gravado ontem. Como curiosidade adicional, a capa, cuja fotografia foi tirada por Francis Wolff, foi a primeira a usar diversas cores em seu design (este, a cargo de Red Miles), contrariando a tendência de usar cores “chapadas”, que era uma das mais evidentes características gráficas da Blue Note. Um álbum irretocável, digno de figurar com destaque em qualquer prateleira e, certamente, um dos mais representativos do gênio criativo e avesso a qualquer espécie de preconceito musical de Silver.


Sobre suas afinidades com o Brasil, onde veio pela primeira vez em 1964 e voltou inúmeras outras vezes, o Mestre Lula, uma das maiores autoridades brasileiras em jazz, conta esta saborosa história, recolhida da sessão Histórias do Jazz, postada no blog do CJUB: “Num belo sábado de sol, parti com minha bicicleta para a praia de Icaraí onde tínhamos um futebol organizado, com onze de cada lado, camisas, balizas, redes e tudo o mais. Quase chegando, vi no calçadão a figura de Horace Silver. Freei a bicicleta e fiquei aguardando quem o acompanhava. Era Sérgio Mendes, que vinha saboreando um sorvete e quando me viu falou: "Olha o homem aí"! Saltei da bicicleta para as apresentações e para minha surpresa o pianista pediu para dar uma volta. Claro que acedi e ele saiu pedalando pelo calçadão como qualquer niteroiense”. Não se sabe se é verdade a história (espalhada por Sérgio Mendes) de que o Mestre Lula, depois desse dia, mandou empalhar a bicicleta e pendurá-la na parede de sua sala de estar, mas que Silver mereceria tal deferência, mereceria!


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PS.: Post dedicado ao Mestre Lula, um dos timoneiros da belonave CJUB e baluarte na luta pela defesa intransigente do nosso bem estar auditivo.



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