UM MESTRE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO
Música e outras coisas

UM MESTRE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO





Único músico brasileiro a dominar completamente o idioma jazzístico moderno, indo do bebop parkeriano ao mais ousado free com a mesma naturalidade e competência, o carioca Victor Assis Brasil nasceu no dia 28 de agosto de 1945. No mesmo dia e local, com uma diferença de apenas cinco minutos, nascia o seu irmão gêmeo, o pianista João Carlos Assis Brasil.

Sempre incentivado pela família, Victor, desde muito cedo, revelou um talento musical fora do comum e seu primeiro instrumento foi a gaita. Embora fosse autodidata, a seriedade com que se dedicava à música fazia com que o garoto copiasse os solos de saxofonistas e trompetistas de jazz, que ouvia com devoção, para reproduzi-los na gaita. Aos 12 anos, recebeu de presente uma bateria e passou a se dedicar com o mesmo empenho ao novo instrumento.

Quando fez 17 anos, ganhou de uma tia um saxofone alto e, com isso, começou a se aventurar com enorme paixão e intensidade pelas veredas abertas pelos ídolos Charlie Parker, Cannonball Adderley, Phil Woods e John Coltrane. Deslumbrado com as possibilidades do novo brinquedo, que casava à perfeição com a sua fabulosa musicalidade, o jovem saxofonista passava horas praticando, incansavelmente, e, a partir daí, teve a inabalável certeza de que a música seria um elemento determinante em sua vida e nela haveria de se enraizar profundamente.

Victor começou a tocar, basicamente, em reuniões familiares e em shows nas escolas da Zona Sul carioca, como os tradicionalíssimos colégios Andrews, onde estudava, e Benett. Em pouco tempo, já era capaz de encarar as concorridas jam sessions do lendário Beco das Garrafas, especialmente nas boates Little Club e Bottles, onde atuava a nata da música instrumental brasileira, além de cantores como Leny Andrade, Claudete Soares, Elis Regina, Pery Ribeiro e Wilson Simonal.

A reputação de exímio improvisador só aumentava e um dos primeiros músicos a reconhecer o talento do jovem saxofonista foi Paulo Moura, que tomou-o sob sua proteção e foi seu primeiro professor de teoria musical, ajudando-o a refinar a sua fabulosa técnica. Ao mesmo tempo, preocupado com as incertezas da vida musical, foi aprovado no vestibular para o curso de Direito, na Universidade Cândido Mendes, mas nunca chegou a concluí-lo.

Em 1965, quando alguns jornalistas, críticos musicais, radialistas e músicos cariocas criaram o Clube de Jazz e Bossa, coube a Victor a honra de protagonizar o show que marcou a inauguração do clube, realizado na boate Gaslight. O clube, na época, era presidido pelo jazzófilo Jorge Guinle e dentre os seus associados constavam nomes como José Domingos Raffaelli, Ricardo Cravo Albin, Luiz Orlando Carneiro, Ary Vasconcelos, Everardo Magalhães Castro e Silvio Túlio Cardoso. Suas reuniões eram realizadas, inicialmente, no Golden Room do Hotel Copacabana Palace, aos sábados, e, posteriormente, na boate Little Club, aos domingos.

Naquele mesmo ano, durante uma de suas apresentações no CJB, Victor foi ouvido pelo pianista e maestro austríaco Friederich Gulda, ele próprio um grande admirador e intérprete de jazz. Impressionado com o talento do saxofonista, o maestro incentivou-o a participar do Concurso Internacional de Viena, em 1966, onde Victor recebeu um honroso terceiro lugar, na categoria de saxofone.

O júri, integrado pelo próprio Gulda e por feras do calibre de J. J. Johnson, Cannonball Adderley e Joe Zawinul, deu a vitória a Eddie Daniels, bem mais experiente e então um destacado integrante da Thad Jones-Mel Lewis Orchestra. Posteriormente, Daniels tocaria com uma plêiade de grandes jazzistas, como Yuse Lateef e George Benson, e se consagraria como clarinetista, chegando a ser comparado a Benny Goodman e Buddy DeFranco, pelo apuro técnico e pela inventividade. Mas aquele terceiro lugar, obtido pelo jovem instrumentista brasileiro, que mal havia completado 21 anos, foi crucial na manutenção de sua auto-estima e de suas convicções musicais.

Aproveitando a oportunidade na Europa, onde ficou por quase um ano, Victor dedicou-se ao estudo de teoria musical e composição. Na mesma viagem, e de forma ainda mais surpreendente, o brasileiro foi eleito o melhor solista do Festival de Jazz de Berlim, que lhe renderia como prêmio uma bolsa de estudos na prestigiosa Berklee School of Music, nos Estados Unidos.

Victor gravou seu primeiro disco, chamado “Desenhos”, em 1966, para o pequeno selo Forma, secundado pelo pianista Tenório Júnior, pelo baixista Edison Lobo e pelo extraordinário Chico Batera. Trata-se de um verdadeiro marco na história da música instrumental brasileira saudado pela crítica especializada como “o primeiro grande disco de jazz gravado no Brasil” e que, infelizmente, se encontra fora de catálogo há vários anos.

O segundo LP, “Trajeto”, seria lançado em 1968, antes de sua partida para os Estados Unidos, e obteve ótima repercussão de crítica e público, especialmente do chamado circuito universitário. Naquele ano, Victor liderou um sexteto onde despontavam jovens instrumentistas como o pianista Haroldo Mauro, de apenas 18 anos e o tenorista Ion Muniz, então com 19 anos, fizeram a turnê “Calmalmas”. O grupo realizou concorridos shows em teatros e universidades país afora, apresentando o jazz a pessoas que, habitualmente, tinham muito pouco contato com esse tipo de música.

Marco na trajetória do saxofonista, foi a apresentação do seu sexteto, juntamente com o Quinteto Villa-Lobos e a companhia de dança de Sandra Diekens, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, ainda em 1968. Sobre a importância de levar sua música às pessoas e formar um público interessado em jazz, Victor chegou a afirmar: “Ninguém avalia a minha felicidade diante de um garotão de cabelo parafinado, quieto, ouvindo minha música sem amplificadores”.

Em 1969, mais uma façanha internacional: foi considerado o melhor saxofonista do festival de Festival de Montreux, liderando um quinteto que contava com os fabulosos Dom Salvador (piano), Hélio Delmiro (guitarra), Edison Lobo (baixo) e Edison Machado (bateria). Em seguida, Victor partiu para os Estados Unidos, a fim de estudar em Berklee, onde ficou por cinco anos, aprimorando sua técnica e estudando, sobretudo, harmonia, arranjo e composição.

Na terra de Tio Sam, o saxofonista conseguiu um razoável destaque no concorrido cenário jazzístico – reza a lenda que, após ouvi-lo, um dos seus professores em Berklee, abismado com o seu nível técnico, teria lhe perguntado: “Você veio aos Estados Unidos para aprender ou para ensinar saxofone?”. Para ajudar a se manter, o saxofonista dava aulas de improvisação na J. D. School of Music, em Boston.

Ao longo da sua carreira, Victor tocou com nomes importantes como Dizzy Gillespie, Jeremy Steig, Red Mitchell, Albert Mangelsdorff, Slide Hampton, Richie Cole, Clark Terry, Chick Correa, Ron Carter, Jeff Gardner e Bob Mover, entre outros. Durante o período nos Estados Unidos, formou uma banda com músicos norte-americanos e brasileiros, onde se destacava o trompetista Cláudio Roditi.

Em 1970, durante suas férias, passou três meses no Brasil e aproveitou para gravar dois álbuns: “Victor Assis Brasil toca Antonio Carlos Jobim” (para o selo Forma), onde, pela primeira vez em disco, usa o sax soprano, e “Esperanto” (para o selo Tapecar), que somente foi lançado em 1974.

Produzido por Robert Quartin, o álbum “Victor Assis Brasil toca Antonio Carlos Jobim” (lançado em cd pela Atração Fonográfica) pode ser descrito como o encontro épico de dois titãs da música brasileira. Em comum, ambos possuíam uma incontida paixão pelo jazz e a aspiração de fazer uma música universal, sem perder de vista as peculiaridades harmônico-melódicas do samba e da bossa nova. Liderando um quinteto que contava com os mesmos músicos que o acompanharam em Montreux, no ano anterior, o saxofonista estava particularmente iluminado nesta sessão, gravada nos dias .

Solto de qualquer amarra estética e disposto a expandir as fronteiras do jazz e da música popular brasileira, Victor encontrou no repertório jobiniano o veículo mais que adequado para destilar a sua técnica invejável e a sua capacidade improvisacional aparentemente ilimitada. Perfeccionista ao extremo, jamais se contentava com um acorde que não fosse, no mínimo, irretocável.

Em “Wave”, tema que abre o disco, o arranjo torna o tema, por vezes, irreconhecível, sem jamais ofuscar-lhe a beleza. O fraseado do líder é prenhe de lirismo e criatividade, alternando os registros agudos e graves com o máximo de expressividade. O piano de Dom Salvador, outro improvisador nato, e a guitarra de Hélio Delmiro, preenchem todos os espaços da melodia e Edison Machado, soberano, mostra porque é um dos maiores bateristas brasileiros de todos os tempos.

“Só tinha de ser com você” rememora os gloriosos tempos do Beco das Garrafas, com um arranjo que reverencia todos os cânones do samba jazz. Bateria pulsante, com excepcional trabalho de pratos, baixo robusto, diálogos que beiram o impossível, discurso incisivo do saxofone e um piano ensandecido, dão a sensação de que o ouvinte se encontra em plena jam session dominical, na histórica boate Little Club.

Em “Bonita”, uma das jóias menos badaladas do repertório do maestro soberano, Victor se mostra senhor absoluto do vocabulário jazzístico, improvisando com extrema autoridade e com uma excepcional capacidade de concatenar o enorme fluxo de idéias de maneira lógica e coerente. Por outro lado, seu saxofone jamais soa mecânico ou cerebrino: sua música é feita com alma e emoção, apesar da elevada complexidade harmônica. Os parceiros que o acompanham compreendem essa intensa necessidade de expressão e jamais impões qualquer obstáculo ao vigoroso solista. Além do líder, outro destaque é Salvador, que aqui maneja, com competência ímpar, o órgão Hammond.

“Dindi” talvez seja a faixa mais arrojada do álbum, do ponto de vista estilístico, com uma introdução arrebatadora, a cargo de Salvador, novamente pilotando o Hammond. Os instrumentos vão se agregando aos poucos, primeiramente a bateria de Edison Machado, depois o etéreo sax soprano do líder, que após quase um minuto de improvisação livre começa a articular a melodia. Poucas vezes essa composição tão bela foi interpretada com tamanha ousadia, valendo destacar a guitarra à Wes Montgomery de Delmiro.

A delicada “Quartiniana”, feita em homenagem ao produtor Robert Quartin, encerra o álbum de maneira bastante tranqüila, com seu clima oriental minimalista. A reedição em cd, pelo selo Atração Fonográfica, traz, além da apresentação escrita pelo próprio Tom Jobim e que constava do LP, um emocionado e emocionante depoimento de Quartin, no qual revela a sua admiração pelo fabuloso músico e ser humano Victor Assis Brasil.

Mesmo sem concluir sua graduação em Berklee, Vitor retorna, definitivamente, ao Brasil em 1974 e decide retomar sua carreira profissional, já que era mais reconhecido no exterior do que em seu próprio país – fato que o magoava bastante. Vieram então novas turnês e apresentações pelo país, o álbum “Victor Assis Brasil Ao Vivo no Teatro da Galeria” (CID) e uma marcante participação na trilha sonora da novela O Grito, da Rede Globo, com a inclusão de quatro composições suas no disco.

Em 1976, sob a regência do maestro Marlos Nobre, apresenta a sua “Suíte para Sax Soprano e Cordas”, executada pela Orquestra Sinfônica Nacional, no templo da música erudita brasileira, a Sala Cecília Meireles. Em 1977, apresentou-se com o pianista Luiz Eça no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em um show histórico, que posteriormente seria lançado em disco.

No mesmo ano, fez shows ao lado do flautista norte-americano Jeremy Steig e, para coroar a sua obstinada luta pela causa do jazz, foi convidado por Art Blakey para ser o diretor musical do mítico Jazz Messengers – associação que, infelizmente, não se materializou, ante a ausência de tempo hábil para solucionar as intrincadas exigências legais e contratuais necessárias.

Em 1978, foi um dos destaques do I Festival de Jazz de São Paulo, deixando boquiabertos músicos como Chick Corea e Joe Farrell e merecendo rasgados elogios do crítico Leonard Feather, que, extasiado com sua performance, escreveu: “Victor Assis Brasil, um esplêndido saxofonista, não deixou que sua longa estada nos Estados Unidos confundisse seus valores, apresentando uma música firmemente plantada nos solos dos dois países. Seu ‘Love For Sale’ recebeu um tratamento altivo, contagiante, jamais incerto em seu senso de direção”.

No ano seguinte, apresentou-se no Festival de Jazz de Monterey e gravou seus dois últimos álbuns: “Victor Assis Brasil Quinteto” e “Pedrinho”, ambos pela EMI-Odeon. Victor foi um dos pioneiros na realização de workshops para jovens músicos e a sua influência pode ser sentida no trabalho de gente como Mauro Senise, Roberto Sion, Carlos Malta, Mané Silveira, Nivaldo Ornelas, Ivo Perelman, Zé Nogueira, Ion Muniz, Nailor Proveta e muitos outros.

Quando estava no ápice criativo e começava a desfrutar do merecido reconhecimento no Brasil, Victor Assis Brasil faleceu, vitimado por uma doença circulatória bastante rara, chamada periartrite nodosa, no dia 14 de abril de 1981, no Rio de Janeiro. Tinha apenas 35 anos. Seu legado, consistente em oito álbuns gravados no país e em mais de 500 composições, representa um dos momentos mais sublimes da música instrumental brasileira, capaz de ombrear-se à obra dos grandes mestres do jazz.

Após a sua morte, sua mãe conservou intactas, no apartamento da família, duas malas que havia encontrado no quarto do filho. Quando seu irmão, o pianista João Carlos Assis Brasil, decidiu abri-las, em 1988, deparou-se com centenas de partituras, que continham cerca de quatrocentas composições inéditas, compreendendo peças para piano solo, orquestra e quarteto de cordas, indo do jazz ao erudito, com uma nítida influência de compositores modernos como Satie, Debussy e Stravinsky.

O resultado dessa viagem afetivo-musical está contido no cd “Self Portrait”, lançado originalmente em 1990 pela Kuarup e relançado pela Biscoito Fino, no qual João Carlos se faz acompanhar por Paulo Sérgio Santos (clarinete e saxofone), Zeca Assumpção (contrabaixo) e Jurim Moreira (bateria). Dentre as 13 músicas escolhidas pelo pianista para compor o disco, destacam-se um tributo a Bill Evans, chamado “One for Bill”, e “Blues for Oliver”, composta em homenagem ao saxofonista e arranjador Oliver Nelson.

Em 2001, o guitarrista Alexandre Carvalho, o pianista Fernando Martins, o saxofonista Idriss Boudrioua, o contrabaixista Paulo Russo e o baterista Xande Figueiredo criaram o Quinteto Assis Brasil, dedicado à preservação da sua obra. Em 2005, ano em que Victor completaria 60 anos, o quinteto se apresentou, juntamente com o pianista João Carlos, na Sala Baden Powell, em um concerto em homenagem ao saxofonista.

Cioso de sua arte, Victor jamais se rendeu à ditadura do mercado ou aceitou submeter-se a contextos comerciais, apesar das eventuais dificuldades financeiras. Obcecado pela preservação da música de qualidade, costumava dizer que o jazz, no Brasil, só era pouco conhecido por causa da sua precária divulgação. Ele tocava apenas aquilo que lhe parecia relevante e sua honestidade, integridade artística e dedicação à música permanecem vivos, quase trinta anos depois de sua morte. Sobre ele, o querido José Domingos Raffaelli escreveu:

“Victor foi um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Tinha ainda muito a realizar, muito a oferecer, muitos projetos idealizados. Resta-nos o consolo da sua obra gravada. Uma obra inspirada, criativa e, acima de tudo, musicalmente honesta. Victor Assis Brasil deixou um grande vazio que não foi e dificilmente será preenchido, além de uma imensa saudade que não foi e não será amenizada no coração de todos os que tiveram a felicidade de conhecê-lo.”


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