UM ESTUDO EM VERMELHO: TODOS OS ACORDES DE RED GARLAND
Música e outras coisas

UM ESTUDO EM VERMELHO: TODOS OS ACORDES DE RED GARLAND



O piano é a espinha dorsal do jazz. Suas 88 teclas equivalem às 33 vértebras do corpo humano, que dão suporte e mobilidade ao esqueleto. Alguém poderá dizer que é perfeitamente possível fazer jazz sem piano – e com uma qualidade a toda prova. Sonny Rollins gravou ótimos discos apenas com a formação sax + baixo + bateria, além dos discos gravados com Jim Hall, cuja guitarra fazia as vezes de piano. O quarteto “pianoless” de Gerry Mulligan deu ao mundo maravilhas como “What Is There To Say”. Paul Desmond, em sua carreira solo, usava a guitarra – Jim Hall nos anos 60 e Ed Bickert nos anos 70 – para compor a seção rítmica de seus grupos. Stanley Turrentine e Grant Green fizeram discos maravilhosos para a Blue Note nos anos 60, usando um órgão Hammond no lugar do piano.

Entretanto, esses músicos eram gênios, donos de um talento excepcional que lhes permitia, inclusive, dispensar o piano ou, quando muito, substituí-lo por outro instrumento. Mas pensemos nos grandes combos do jazz. O quinteto modal de Miles Davis, o quarteto de John Coltrane dos anos 60, o quinteto de Clifford Brown/Max Roach e o Modern Jazz Quartet, para falar de alguns dos mais incensados, tiveram, respectivamente, os talentos de Herbbie Hancock, McCoy Tyner, Richie Powell e John Lewis a conduzir o piano. A maioria dos grandes arranjadores do jazz era pianista: Billy Strayhon, Gil Evans, Tadd Dameron, Stan Kenton – a lista é enorme. Por fim, muitos dos maiores compositores do jazz eram pianistas: Jelly Roll Morton, Duke Ellington, Thelonious Monk, John Lewis, Horace Silver, Dave Brubeck, entre outros.

Dentre os mais destacados pianistas que puseram seu talento a serviço do jazz está William “Red” Garland. Esse texano, nascido em Dallas em 1923, tem uma história de vida curiosa. Até entrar para o exército, em 1941, Garland usava suas hábeis mãos para fins bem menos pacíficos que acariciar as teclas do piano – boxeador semi-professional, chegou a trocar socos com o legendário pugilista Sugar Ray Robinson, que, obviamente, venceu o combate. No exército, passou a freqüentar aulas de piano. O boxe perdeu um promissor meio-médio mas o jazz ganhou um excepcional pianista.

A partir de 1945 começou a tocar profissionalmente – primeiro com Billy Eckstine, depois com Edddie “Lockjaw” Davis. Chegou a Nova York no início dos anos 50 e percorreu o circuito dos clubes, tendo acompanhado Dizzy Gillespie, Flip Philips e Lester Young, com quem permaneceu por cerca de dois anos. Embora tivesse alguma reputação no circuito nova-iorquino, somente em 1955 é que Garland foi alçado à celebridade jazzística, ao ser convidado para integrar o lendário quinteto de Miles Davis, com quem permaneceu até 1958. Basicamente, além de Miles e Garland, batiam ponto nesse combo extraordinário John Coltrane, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Com essa formação, Miles Davis legou ao mundo obras primas do quilate de Relaxin’, Workin’, Steamin’ e Cookin’, todas gravadas para a Prestige.

Nessa mesma gravadora, o pianista construiu uma bem-sucedida carreira solo, tendo gravado, como líder, dezenas de ótimos discos, entre meados da década de 50 e início da década de 60, geralmente sob o formato de trio. Embora autodidata, Red desenvolveu um estilo personalíssimo, com um pé muito bem fincado no blues, que influenciou diversos pianistas, inclusive Bill Evans.

Em 1968, abalado pela morte da mãe e desencantado com os rumos que o jazz estava tomando – de um lado o radicalismo free proposto por Coltrane e do outro a aventura fusionista gestada por Davis, ironicamente seus ex-companheiros – o grande Red Garland retornou a Dallas, de onde somente sairia para esporádicas gravações e apresentações e onde permaneceria até a morte, em 1984.

Dentre os discos lançados pela Prestige, um dos mais aclamados é o “Red Garland’s Piano”, gravado entre dezembro de 1956 e março de 1957, no mítico Van Gelder Studio, em Hackensack, Nova Jérsei. Fazendo companhia ao pianista, dois dos seus mais habituais parceiros: Paul Chambers no baixo e Art Taylor na bateria. A exuberância técnica do trio é notável e o repertório, composto basicamente de standards, é soberbo. O disco abre com uma belíssima versão de “Please Send Me Someone To Love”, clássico de Percy Mayfield, cujas características de blues são realçadas pelo estilo “block chord” – uso de ambas as mãos em todas as notas da melodia – do pianista.

Com a sacolejante “Stompin’ At The Savoy”, o trio chama o ouvinte para dançar e tempera com um molho todo especial de bebop uma das canções mais representativas da era do Swing – é possível sentir-se no salão do Savoy Ballroom, em pleno Harlem. O piano elegante de Garland desfila impecável pela balada “But Not For Me” – uma das mais belas composições dos irmãos Gershwin – criando um clima de nostalgia e enlevo. Outro ponto alto do disco é “I Can't Give You Anything But Love”, tocada em tempo mais acelerado que o habitual, com destaque para o ótimo trabalho de Chambers e Taylor.

Apesar de ser um músico de extrema classe, Red Garland também tinha um ótimo senso de humor e era muito espirituoso. Certa feita, o quinteto de Miles tinha um show marcado para as 9 da noite em um pequeno clube do Brooklyn. Pontualmente, todos os músicos chegaram na casa e começaram a se preparar para subir ao palco – exceto o bravo Red. 9:30 e nada! 10:30 e nada! 11:00 e nada! Miles, Coltrane, Chambers e Philly começaram a ficar impacientes – tanto quanto a audiência, que já começava a debandar. Quase à meia-noite, um esbaforido Red Garland entra no clube e se dirige ao chefe:

- Um acidente terrível no metrô, Miles. Todos os trens estavam parados, polícia no local, ambulância prá todo lado. Eu fiquei preso na estação até agora...

- Ok, disse Miles, vamos tocar.

O show transcorreu sem sobressaltos e, por volta das 2 da manhã, os músicos começam a guardar seus instrumentos. Miles, Coltrane e Philly vão embora rapidamente e o pobre Chambers luta para empacotar seu pequeno instrumento, a fim de não perder o último trem – como na célebre canção de Adoniran. Um despreocupado Garland interpela o amigo:

- Por que a pressa? Você não precisa tomar o metrô uma hora dessas. Eu tô de carro aí fora e te dou uma carona...



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