TUDO COMEÇOU COM CHARLIE CHRISTIAN
Música e outras coisas

TUDO COMEÇOU COM CHARLIE CHRISTIAN



Nove entre dez guitarristas do jazz apontam Charlie Christian como uma de suas principais influências. A importância do chamado “Pai da guitarra moderna” transcende gerações e a lista de nomes que o reverenciam como fonte primária de inspiração vai de Joe Pass e Wes Montgomery a Peter Bernstein e Anthony Wilson. Considerado um dos mais legítimos sucessores de Christian – e, segundo alguns críticos, um continuador de sua obra, interrompida pela morte precoce em 1942 – Barney Kessel pertence àquela rara espécie de artistas cujo nome é sinônimo de qualidade, bom gosto e excelência técnica.

Kessel nasceu no dia 17 de outubro de 1923, em Muskogee, Oklahoma. Aos 12 anos, comprou a primeira guitarra, com o dinheiro que economizou vendendo jornais. Autodidata, começou a tocar sozinho, usando um livreto intitulado “Como tocar guitarra em 5 minutos”. Aos 14 anos descobriu o jazz e não muito tempo depois se apaixonou pelo estilo de Charlie Christian, que na época fazia bastante sucesso no sexteto de Benny Goodman. Aos 16 anos fazia suas primeiras apresentações como profissional em bandas de blues e R&B da cidade natal, como a de Ellis Ezell.

Corria o ano de 1939 e o destino reservava a Barney uma incrível surpresa: conhecer pessoalmente o ídolo Charlie Christian, que estava na cidade para uma apresentação. Após o concerto, o jovem Kessel foi aos bastidores e nem em seus sonhos mais generosos poderia esperar uma receptividade tão grande. Christian o convidou para jantar e, ao fim da noite, deixou o incrédulo rapaz em casa, não sem antes dar-lhe diversas dicas e conselhos sobre a carreira musical.

No ano seguinte, Kessel tornou-se membro efetivo da orquestra de dança da Universidade de Oklahoma. Em 1942, decidido a tentar a sorte em Holywood, mudou-se para Los Angeles. Recebeu da mãe um beijo de boa sorte e vinte dólares e foi à luta. Seu primeiro trabalho na nova cidade foi como lavador de pratos em um drive-in, mas pouco tempo depois passou em um teste e foi aceito na orquestra do comediante Chico Marx, que nas horas vagas atacava de bandleader. O crooner da big band era o também jovem Mel Tormé e a associação de Kessel com a banda durou cerca de um ano, o suficiente para colocar seu nome em evidência no cenário musical da cidade.

Em 1944, foi o único músico branco a participar do filme “Jammin’ the Blues”, documentário que mostra uma jam session comandada por Lester Young e que conta com as participações de, entre outros, Red Callender, Harry Edison, Big Sid Catlett, Jo Jones e Illinois Jacquet. Após o desligamento da orquestra de Marx, o guitarrista trabalhou com Charlie Ventura, Les Brown, Roy Eldridge, Hal McIntyre, Benny Goodman e Artie Shaw, com quem passou cerca de dois anos. Também fez carreira no rádio, tocando nas orquestras dos programas de Jack Smith, Frank De Vol e Bob Crosby.

Em 1947 integrou-se aos Charlie Parker's New Stars, participando de algumas gravações do saxofonista para a Dial. No mesmo ano, fez diversas apresentações na série Just Jazz, produzida por Gene Norman, incluindo um espetáculo denominado “From Dixieland To Bop,” executado por uma banda liderada por Lucky Thompson e Benny Carter. Outro trabalho bastante representativo naquele período foi como acompanhante nas gravações do clarinetista sueco Stan Hasselgard, feitas para a Capitol Jazz e que incluíam também o vibrafonista Red Norvo e o pianista Arnold Ross.

No início dos anos 50 foi convidado por Norman Granz para participar do projeto Jazz At The Philharmonic. Durante as excursões e concertos do JATP pelos Estados Unidos e Europa, conheceu o pianista Oscar Peterson, que em 1952 o convidou a integrar seu trio, cujo baixista era o grande Ray Brown. A parceria foi muito bem-sucedida, mas o guitarrista deixou o grupo no ano seguinte, a fim de assumir a direção musical e os arranjos do programa televisivo de Bob Crosby. Seu substituto no trio de Peterson foi o excelente Herb Ellis.

Concomitantemente, manteve uma intensa atuação como freelancer, acompanhando Billy May, Sonny Rollins, Benny Goodman, Fred Astaire, Billie Holiday, Anita O’Day, Kid Ory, Milt Jackson, Frank Sinatra, Gene Krupa, Benny Carter, Buddy Collette, Paul Horn, Ella Fitzgerald, Flip Philips, Hampton Hawes, Wardell Gray, Shorty Rogers, Dinah Washington, Bobby Troup, Helen Humes, Red Norvo, Peggy Lee, Buddy DeFranco, Erroll Garner, Chet Baker, Art Tatum, Sarah Vaughan, Bing Crosby, Bud Shank e Mel Tormé, entre uma infinidade de outros grandes nomes.

Barney foi o arranjador e o guitarrista do álbum “Julie Is Her Name”, de Julie London, gravado entre outubro de 1955 e janeiro de 1956. A versão de “Cry Me A River” incluída no disco fez um sucesso estrondoso pelo mundo, inclusive no Brasil, influenciando diretamente jovens instrumentistas, como Roberto Menescal, Carlos Lyra e Oscar Castro Neves, que em breve revolucionariam a música brasileira com o advento da Bossa Nova. Segundo Menescal, a performance de Kessel era um verdadeiro “tratado de harmonia”.

Em 1953, assinou com a Contemporary, lançando por aquela gravadora uma série de álbuns, alguns deles muito bem-sucedidos do ponto de vista comercial. Uma das parcerias mais duradouras foi com o baixista Ray Brown, seu velho parceiro no trio de Oscar Peterson, e o baterista Shelly Manne. Por conta dos inúmeros prêmios que os três abocanharam ao longo da carreira, o trio foi logo batizado com o nome de “The Poll Winners”.

O primeiro disco do trio, simplesmente chamado “The Poll Winners”, foi gravado em 1957. Seguiram-se outros, como “The Poll Winners Ride Again”, de 1958, “The Poll Winners Three”, de 1959, “The Poll Winners Exploring The Scene!”, de 1960, e “The Poll Winners: Straight Ahead”, de 1975. A excelência técnica de todos os discos é inquestionável, mas se for preciso escolher apenas um deles, fico com “The Poll Winners Ride Again!”, que não é dos mais incensados pela crítica, mas sua audição é sempre deliciosa.

Gravado em duas sessões, nos dias 19 e 21 de agosto de 1956, foi o segundo álbum do trio, que aqui se mostra mais entrosado e coeso do que nunca. E bastante irreverente também, com um repertório que mescla composições de Kessel e Brown, standards, hits da parada pop e trilhas sonoras de desenhos animados. Não é por outro motivo que o próprio guitarrista declarou certa feita: “Com baixo, bateria e guitarra você tem melodia, harmonia e ritmo. Os elementos da música estão todos aí. Esses instrumentos são tão diferentes que quando tocam juntos cada um possui uma enorme clareza, resultando em uma combinação única. É um enorme prazer para mim poder tocar nesse formato, que é o meu favorito.”

O blues em tempo médio “Be Deedle Dee Do” abre o disco em grande estilo. É uma composição do guitarrista, que exibe a habitual consistência harmônica, com direito a improvisações de grande expressividade. A versatilidade de Brown se revela não apenas no acompanhamento perfeito, mas também no maravilhoso solo, distinto e muito bem arquitetado. Manne é um baterista de enorme capacidade de adaptação e que toca com grande facilidade em qualquer tempo ou andamento. Nesta faixa, o seu trabalho com os pratos é soberbo.

Uma bem-humorada interpretação do hit “Volare”, do italiano Domenico Modugno, dá bem a medida de quanto os três músicos estavam se divertindo ao gravar o disco. A balada “Spring Is Here”, de Richard Rodgers e Lorenz Hart”, ganha um arranjo requintado, no qual as notas límpidas de Kessel criam um clima de melancólica beleza. O contrabaixo de Brown ajuda a compor a atmosfera sombria.

Richard Rodgers comparece novamente, com “The Surrey With The Fringe On Top”, em parceria com Oscar Hammerstein. Rápida e swingante, a faixa é um ótimo veículo para que o guitarrista exiba toda a sua fluência e inventividade, dedilhando o instrumento com ferocidade e enorme senso melódico. A frenética atuação de Manne, explosivo e contundente em seus ataques, é outro ponto que merece destaque.

“Custard Puff” é outro blues, agora de autoria de Ray Brown. Cadenciado e dolente, privilegia o sentido rítmico do guitarrista, cuja levada é verdadeiramente hipnótica, mostrando que Kessel também bebeu na fonte dos grandes guitarristas rítmicos, como Oscar Moore e Freddie Green. A integração entre baixo e bateria é telepática, e tanto Manne quanto Brown brilham em solos admiráveis.

O título de “When The Red, Red Robin Comes Bob, Bob, Bobbin' Along” é dos mais estranhos. Mas a composição de Harry M. Woods, que já havia sido gravada por Al Jolson, Doris Day e Dean Martis, é interpretada de forma envolvente e alegre. A batida de Manne é infecciosa, pulsante e de um dinamismo que contagia os outros integrantes do trio. “Foreign Intrigue”, tema de autoria do guitarrista, é um bebop acelerado e repleto de alternativas harmônicas. A técnica superior de Kessel faz com que, por vezes, o ouvinte tenha a sensação de que são duas guitarras tocando ao mesmo tempo.

“Angel Eyes” é uma balada soturna de Matt Brent e Earl Dennis, que ganha uma roupagem lírica e delicada. A guitarra de Kessel pontua frases de pura elegância e de uma eloqüente concisão. A abordagem minimalista de Brown e, sobretudo, de Manne combina sutileza e muita classe. Para encerrar, outra bela amostra do clima descontraído e despretensioso é a versão de “The Merry-Go-Round Broke Down”, de Cliff Friend e Dave Franklin, célebre por ser a trilha sonora dos desenhos do Pernalonga.

De 1956 a 1960 o incansável Barney trabalhou como executivo da gravadora Verve, voltado para a área pop, tendo produzido diversos álbuns do cantor Ricky Nelson. Nos anos 60, foi contratado pela Columbia Pictures, trabalhando incessantemente em trilhas sonoras daquele estúdio de cinema. Também esteve presente em gravações de cantores e grupos pop, como Elvis Presley, Sam Cooke, The Righteous Brothers, The Coasters, Barbra Streisand, The Beach Boys e The Monkees.

Kessel atuou em um episódio do seriado televisivo Perry Mason, um dos mais populares daquela década, interpretando um guitarrista de jazz. Em 1961 a famosa fábrica Gibson lançou uma guitarra com seu nome, sendo que o modelo foi fabricado até 1973. De 1967 a 1970, manteve a Barney Kessel's Music World, uma loja de instrumentos musicais localizada em in Hollywood e que, na época, era considerada inovadora, por possuir em seus quadros técnicos especializados em guitarra. Não é por outra razão que roqueiros como John Lennon, George Harrison e Eric Clapton eram fregueses assíduos da loja.

Em 1968, após uma excursão com os Newport All Stars, do produtor e pianista George Wein, Kessel estabeleceu-se em Londres e ali permaneceu até 1970, quando retornou para os Estados Unidos. Durante a temporada londrina, ele trabalhou para a BBC Television Broadcasts, gravou um álbum baseado no musical Hair (“Aquarius: The Music From Hair”, para o selo inglês Black Lion, em novembro de 1968) e se tornou atração constante no tradicional clube Ronnie Scott’s.

Ainda no continente europeu, gravou ao lado de Joe Venutti e Stéphane Grappelli (no álbum “Venupelli Blues”), de Ruby Braff e Red Norvo (no álbum “Swing That Music”) e Chet Baker (no álbum “Albert’s House”), todos de 1969. Nos anos 70 e 80 ele fez parte de outro supergrupo, o “Great Guitars”, ao lado dos geniais Charlie Byrd e Herb Ellis. Sucesso de público e crítica, o trio realizou inúmeras gravações para a Concord.

O guitarrista também possuía um ótimo senso de humor e muita presença de espírito. Em seu livro “Jazz Anedoctes”, o baixista Bill Crow relata que, certa feita, Barney descobriu um restaurante chamado “Barney Kessel’s”, em Chicago. Sem se fazer de rogado, entrou no estabelecimento, pediu a comida e, na hora de pagar, perguntou à garçonete: “Mas quem é esse Barney Kessel”?

Ela apontou para o sujeito que estava no caixa. Barney foi até lá para conferir e, de fato, constatou que ele e o dono do local eram homônimos. O guitarrista ficou meio desapontado, pois pensava que o restaurante era uma homenagem à sua singularíssima pessoa. Não obstante, ainda tentou um “Migué”, para ver se, pelo menos, a refeição saía de graça. Mas não teve jeito. O máximo que conseguiu foi uma simples balinha de hortelã. “Essa é por conta da casa!”, disse Barney Kessel (o dono do restaurante, não o músico).

Kessel também foi um requisitado educador musical, ministrando cursos, palestras e workshops nos quatro cantos do planeta e manteve uma coluna fixa na revista Guitar Player chamada “The Guitar: A Tutor”. Do final da década de 40 até o início dos anos 90, quando esteve em plena atividade, Barney venceu dezenas de premiações de Melhor Guitarrista do Ano, concedidos por revistas como Esquire, Down Beat, Metronome, Theme e Playboy.

Influente e muito querido no meio musical, Barney teve a carreira abortada, de forma repentina e inesperada, em 1992, quando sofreu um AVC devastador, que praticamente lhe roubou os movimentos e a fala. Casado com Phylis Baker, Barney faleceu em casa, no dia 06 de maio de 2004, devido a um câncer no cérebro, em San Diego, Califórnia. Deixou dois filhos, David e Daniel, que também são músicos e trabalharam durante muito tempo com o produtor Phil Spector.

Seu nome está imortalizado no Big Band Hall Of Fame e no Jazz Hall of Fame. O guitarrista Pete Townsend compôs em sua homenagem o tema instrumental “To Barney Kessel”, incluída em seu álbum “Scoop”, de 1983. Sobre ele o crítico André Francis escreveu: “De todos os músicos brancos modernos, ele é um dos que toca melhor o blues. Quando executa uma balada, ele o faz com muita sensibilidade e uma belíssima utilização de acordes. Seu estilo é rítmico, seu estilo é interessante e suas harmonias lógicas e firmes”.

===============================




loading...

- O Guitarrista Sujo
Quando se fala em guitarristas de jazz, quais os nomes que logo vêm à mente? Barney Kessell, Wes Montgomery, Jim Hall, Joe Pass, Grant Green, Pat Martino, Herbie Ellis, Tal Farlow, Jimmy Raney, Pat Metheny, Django Reinhardt... Dificilmente alguém...

- Meu Malvado Favorito
Uma frase atribuída a Tommy Dorsey dá bem a medida do gênio irascível e da personalidade tempestuosa de Buddy Rich: "Existem três sujeitos ruins no mundo: Adolf Hitler, Alvin Stoller e Buddy Rich. Eu trabalhei com dois deles em minhas orquestras"....

- O Rei
O saxofonista, clarinetista, trompetista, pianista, trombonista, compositor, arranjador, bandleader e educador musical Bennett Lester Carter esteve entre nós por exatos 95 anos, muitíssimo bem vividos. Ao longo de seus quase 80 anos de carreira,...

- Fogo TranqÜilo
A sobriedade e a discrição parecem ter sido as principais características de Mitchell Herbert Ellis, nascido no dia 04 de agosto de 1921 em Farmersville, Texas, e criado em Dallas, no mesmo estado. Ouviu o som da guitarra elétrica pela primeira...

- Todos Os Homens De Shelly Manne
“No sax alto, Frank Strozier, de Menphis, Tenesse. Ao piano, Russ Freeman, de Chicago, Illinois. No trompete, Conte Candolli, de Mishawaka, Indiana. No contrabaixo, Monty Budwig, de Pender, Nebraska. Eu sou Shelly Manne, de New York City. Todos nós...



Música e outras coisas








.