O FRASEADO SEDUTOR DE UM MESTRE DAS SEIS CORDAS
Música e outras coisas

O FRASEADO SEDUTOR DE UM MESTRE DAS SEIS CORDAS



O guitarrista, compositor, arranjador e educador musical Kenneth Earl Burrell nasceu no dia 31 de julho de 1931, na cidade de Detroit, no seio de uma família extremamente ligada à música. A mãe era integrante do coral da igreja batista que a família freqüentava e também tocava piano. O pai tocava banjo e ukelele e dois de seus irmãos tocavam guitarra. Aos doze anos, incentivado por eles, Kenny começou a tocar contrabaixo e guitarra, optando, definitivamente, por este instrumento, sendo que o contato formal com a música iniciou-se na Miller High School.

Dentre as principais influências, Burrell sempre citou os nomes de Oscar Moore, Charlie Christian e Django Reinhardt, no âmbito do jazz, e T-Bone Walker e Muddy Waters, no âmbito do blues – outra das grandes paixões musicais do guitarrista. A música erudita entrou em sua vida através das aulas de Louis Cabara, um renomado professor local, de quem Burrell foi aluno durante a adolescência. Posteriormente, já na universidade, retomaria o contato com a música erudita, estudando violão clássico com Joseph Fava.

No final dos anos 40 e início dos anos 50, ao mesmo tempo em que estudava composição e teoria musical na Wayne State University, Burrell participava ativamente da movimentada cena jazzística local, tocando com expoentes do naipe de Donald Byrd, Paul Chambers, Tommy Flanagan (ao lado de quem criaria seu primeiro trio, completado pelo baixista Alvin Jackson), Pepper Adams, Frank Foster, Yusef Lateef e os irmãos Hank, Thad e Elvin Jones.

Uma história engraçada envolve Kenny e o pianista Tommy Flanagan. Certa feita, Charlie Parker faria uma apresentação em Detroit, mas eles não podiam entrar no clube porque ainda eram menores de idade. A solução encontrada, para parecer mais velhos, foi pintar bigodes falsos. O estratagema funcionou e a dupla de marotos pôde assistir, sem ser importunada, ao concerto do ídolo.

Em 1951, participou de sua primeira gravação, a bordo de um combo liderado por Dizzy Gillespie e que incluía John Coltrane, Milt Jackson e Percy Heath. Outros grandes músicos de passagem por Detroit também ficaram impressionados com a técnica do garoto e o convidaram para integrar seus combos e orquestras, como Illinois Jacquet. Alguns anos depois, concluído o bacharelado na Wayne State University, em 1955, Burrell excursionou com Oscar Peterson, substituindo o então titular Herb Ellis. Após a turnê, ele se mudou para Nova Iorque, em 1956.

Ali, em pouco tempo, se consagraria como um dos mais requisitados músicos do período e tocaria com grandes nomes do jazz, como John Coltrane, Gil Evans, Stan Getz, Milt Jackson, Sonny Rollins, Quincy Jones, Tony Bennett, Benny Goodman (substituindo ninguém menos que o ídolo Charlie Christian), Kenny Dorham, Coleman Hawkins, Billie Holiday, Ray Charles, Herbie Hancock, Miles Davis, Charlie Parker, Bill Evans, Frank Foster, Hubert Laws, Gene Ammons, Herbie Mann, Jimmy Smith, Frank Wess, Stanley Turrentine e Cedar Walton.

A partir de então, Burrell também construiu uma fabulosa carreira solo, liderando seus próprios conjuntos e gravando álbuns para selos como Blue Note, Prestige, Verve, Savoy, Fantasy, CTI, 32 Jazz, Cadet e Concord. Sua discografia é soberba, qualitativa e quantitativamente, e inclui álbuns antológicos como “The Cats”, ao lado de Tommy Flanagan, “Two Guitars”, com o virtuose Jimmy Raney, e o espetacular “John Coltrane With Kenny Burrell”.

Um dos pontos altos dessa alentada discografia é, sem dúvida, o aclamado álbum duplo “Blue Lights – Vol. 1 & 2”. Gravado “ao vivo” no dia 14 de maio de 1958, em um estúdio montado na boate do hotel Manhattan Towers, o guitarrista está no esplendor de sua forma e absolutamente inspirado. Como é praxe com os discos da Blue Note, o som cristalino e envolvente, cortesia do mago Rudy Van Gelder, permite ao ouvinte captar toda a exuberância dessa luxuosa jam session transformada em disco.

O escrete que acompanha Burrell nessa primorosa aventura musical é de tirar o fôlego: Louis Smith no trompete, Tina Brooks e Junior Cook no sax tenor, Duke Jordan e Bobby Timmons no piano, Sam Jones no baixo e Art Blakey na bateria. Curiosamente, esta seria a primeira gravação de Jones, Brooks e Cook para a Blue Note.

Além da música de excepcional qualidade, outro atrativo é a belíssima ilustração da capa, de autoria de Andy Wharol (que, antes da fama, também fez capas para inúmeros discos de jazz, como “The Congragation”, de Johnny Griffin, “Trombone By Three”, de J. J. Johnson, Kai Winding e Bennie Green e “Both Feet In The Groove”, de Artie Shaw).

Abrindo os trabalhos em grande estilo, “Phinupi” é um vigoroso bebop de autoria do líder, tributário dos grandes boppers que mudaram a face do jazz nos anos 40, especialmente Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Louis Smith rouba a cena, com seus solos anabolizados e tecnicamente perfeitos e a usina sonora chamada Blakey mostra porque é um dos papas da bateria em qualquer época. A agilidade de Burrell impressiona e seus solos são altamente criativos, nesta faixa em que o piano é conduzido, com a maestria habitual, por Jordan.

Sempre em busca de novas possibilidades harmônicas, Burrell também é o autor de “Yes, Baby”, um blues pesado, maciço, e os sopros de Smith, Cook e Brooks cuidam de fazê-lo ainda mais encorpado. O piano de Jordan e o baixo de Jones chamam para si a responsabilidade pela coesão do septeto. Burrell é sempre bastante expressivo e sabe usar a sua inesgotável capacidade técnica para criar climas ora sombrios, ora efusivos.

A luxuriante “Scotish Blues”, de Duke Jordan, empolga. A formação aqui é, novamente, o septeto, com o autor do tema ao piano. Burrell e Blakey, soberbos, são os destaques individuais. “The Man I Love”, dos irmãos Gershwin, recebe um arranjo singular, sem a participação dos saxofonistas. A fabulosa introdução e o gutural solo de Jones merecem audição atenta, assim como as intervenções de Smith, sempre muito bem concebidas e executadas.

“I Never Knew”, outro tema do líder, fecha o primeiro volume em grande estilo, com a sua levada bop contagiante e seus quase treze minutos de pura energia. O discípulo de Charlie Christian mostra que absorveu muito bem as lições do mestre, desenvolvendo suas idéias com fluidez e uma velocidade estonteante. O primeiro solo de saxofone cabe a Brooks, cujo vigor e inventividade o colocam entre os maiores saxofonistas dos anos 50/60. Em seguida, Smith se encarrega de manter a temperatura elevada, preparando o terreno para o antológico solo do vibrante Cook.

O segundo volume abre com uma demolidora versão de “Caravan”. Louis Smith, o trompetista que trocou os holofotes pelas salas de aula, se encarrega de alguns dos mais incandescentes solos do álbum. Cook e, logo em seguida, Brooks, proporcionam um banquete auditivo digno de Pantagruel. No piano, o endiabrado Bobbby Timmons encharca as desérticas paisagens do Saara com uma fabulosa dosagem de blues, diretamente do Delta do Mississipi.

“Chuckin’” é um petardo de autoria de Sam Jones, com uma atuação magistral de Timmons, de Burrell e de Brooks. Bebop de primeira, com espaço para longos e deliciosos solos, em seus mais de doze minutos de duração. “Rock Salt”, outra grande composição de Burrell, também envereda pelo blues, mas de forma menos ortodoxa que em “Yes Baby”.

Fechando o álbum, “Autumn In New York”, com seu andamento dolente, é um prato cheio para o proverbial lirismo de Burrell. Seus dedos deslizam sutilmente pelas cordas, magnetizando a audição – e a bateria de Blakey é de uma delicadeza comovente. Sam Jones e Bobby Timmons completam a formação, com um desempenho fabuloso. É, ninguém precisa de castelos na Espanha, quando pode usufruir do outono em Nova Iorque, a bordo desse luxuosíssimo álbum! Se você não tem nenhum disco de Burrell, esse é mais que indicado para começar a sua coleção – e guarde espaço na estante, porque certamente você vai precisar.

Considerado um dos mais completos guitarristas da história do jazz, dono de um fraseado elegante e altamente lírico, Burrell é capaz de executar, com a mesma facilidade, tanto as intrincadas harmonias do bebop quanto os eletrizantes compassos do funk e do rhythm and blues – não por acaso, Burrell também acompanhou o Grandfather Of Soul, James Brown. O blues também está intensamente impregnado em sua forma de tocar, daí dizer-se que ele é o mais negro dos guitarristas brancos de jazz.

Outra característica que se costuma creditar a Burrell é o fato de ter sido considerado o guitarrista preferido de Duke Ellington. Apesar de jamais terem gravado juntos, o pianista e o guitarrista chegaram a dividir o palco algumas vezes e desenvolveram uma profunda e respeitosa amizade. Como retribuição à deferência do maestro, Kenny gravaria diversos discos em sua homenagem, como “Ellington is Forever, Vol. 1”, de 1975, e “Ellington is Forever, Vol. 2”, de 1977, ambos para a Fantasy, e “Ellington A La Carte”, de 1983, para o selo Muse. Além disso, Ellington teria papel decisivo em sua vida acadêmica – seus cursos na UCLA, onde é professor e diretor do Departamento de Estudos de Jazz, incluem diversos seminários e workshops sobre a vida e a obra do maestro.

Nos anos 80, Burrell também fez parte da Philip Morris Superband, uma orquestra all-star que incluía o pianista Gene Harris, o baixista Ray Brown, o trompetista Harry “Sweets” Edison, o saxofonista Ralph Moore e muitos outros grandes nomes do jazz. Não é por acaso que o guitarrista é considerado um dos mais importantes embaixadores do jazz em atividade e o reconhecimento tem vindo sob a forma dos inúmeros convites para tocar em festivais do mundo inteiro e também dos diversos prêmios e lauréis que recebeu ao longo da carreira.

Alguns dos principais prêmios e homenagens recebidos por Burrell foram o título de Jazz Master concedido pela National Endowment for the Arts (NEA), em 2005, o prêmio de Jazz Educator Of The Year, dado pela revista Down Beat em 2004, além do título de Doutor Honoris Causae e do prêmio Ellington Fellowship, ambos concedidos pela prestigiosa Universidade de Yale, em 1997. Sua influência pode ser sentida no trabalho de guitarristas como Grant Green, Steve Ray Vaughan, Russell Malone e Pat Martino.

Vencedor de inúmeros concursos de melhor guitarrista de jazz, por revistas como Jazz Times, Down Beat e Metronome, Burrell se mantém em intensa atividade desde o início dos anos 50 e está às vésperas de completar 60 anos de uma carreira brilhante. Fundou e dirige a Jazz Heritage Foundation, uma entidade dedicada à promoção do jazz (e cuja orquestra, a Jazz Heritage All-Stars, costuma fazer apresentações na região de Los Angeles) e integra diversas associações de compositores e educadores norte-americanos. Ele também é autor de dois livros: Jazz Guitar e Jazz Guitar Solos.

Burrell será um dos homenageados do Grammy de 2010, que o distinguirá com o prêmio Salute To Jazz, em cerimônia marcada para o dia 31 de janeiro. Aliás, sua composição “Dear Ella” foi incluída por Dee Dee Bridgewater em seu álbum tributo de mesmo nome, que recebeu o Grammy de melhor álbum de jazz vocal de 1998. Para completar, Jimmy Hendrix, o maior guitarrista de rock de todos os tempos, também se rendeu ao talento do mestre e, certa feita, confessou: “Kenny Burrell possui o tipo de som que eu sempre busquei”. E quem somos nós para questionar Hendrix, não é mesmo?





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