LEVANDO A VIDA NA FLAUTA
Música e outras coisas

LEVANDO A VIDA NA FLAUTA



Apesar do talento exponencial, Jerome Richardson não é dos músicos mais conhecidos na história do jazz. Seu nome dificilmente constará dos compêndios e enciclopédias com grande destaque, merecendo apenas algumas breves linhas em todos eles. A discrição que pautou sua vida e sua música faz com que, ao se falar dos maiores flautistas do jazz, lembremos sempre de nomes como Herbie Mann, Yusef Lateef, Frank Wess, Hubert Laws, James Spaulding ou James Moody, o que é uma grande injustiça. E olha que a flauta era apenas um dos instrumentos que ele dominava com rara habilidade!

De fato, esse multiinstrumentista é uma daquelas jóias raras que, por capricho dos deuses do jazz, acabou por não receber o devido reconhecimento do grande público, embora seja pouco provável que alguém nunca tenha ouvido uma de suas milhares – isso mesmo, milhares! – de gravações como sideman, em álbuns de jazz, blues, pop, rock, e até mesmo de música brasileira. É bom que se diga, no entanto, que poucos músicos mereceram de seus pares tamanho respeito e admiração, como se vai ver a seguir.

Ele nasceu em Sealy, Texas, mas seus registros indicam que nasceu em Oakland, Califórnia (para onde seus pais haviam se mudado logo após o nascimento), no dia 15 de novembro de 1920. Seu aprendizado musical começou aos oito anos, quando começou a tocar sax alto. Na adolescência, estudou no San Francisco State College, ao tempo em que, com apenas 14 anos, já fazia apresentações profissionais, na região de Bay Area, em San Francisco.

Johnny Hodges e Ben Webster eram os seus heróis e o jazz a coisa mais importante em sua vida. Em 1940 descobriu a flauta, que passou a receber as suas maiores atenções a partir de então. Tocou por algum tempo com a orquestra de Jimmy Lunceford e de 1942 a 1945 esteve na marinha e integrou a banda da corporação, liderada por Marshall Royal, o grande saxofonista da orquestra de Count Basie.

Ao sair da marinha, Richardson tocou com Lionel Hampton, de 1949 a 1951, e com Earl Hines, de 1952 a 1953. Na época, começou a tocar também o sax tenor e o sax barítono. Montou o seu primeiro combo naquele período, no qual pontuava o baixista George Morrow, que posteriormente ganharia certa notoriedade ao integrar os grupos de Max Roach.

Em 1954 desembarcou em Nova Iorque, onde se firmaria como um requisitado músico de apoio, trabalhando com Lucky Millinder, Cootie Williams, Oscar Pettiford, Ella Fitzgerald, Cal Tjader, Frank Sinatra, Kenny Clarke, Michel Legrand, Nat Adderley, Peggy Lee, Chico Hamilton, Nancy Wilson, Miles Davis, Billy Eckstine, Horace Silver, Lena Horne, Gerry Mulligan, Milt Jackson, Gerald Wilson, Maxine Sullivan, Ray Brown, Sarah Vaughan, Oliver Nelson, Billie Holiday, Gil Evans, Dizzy Gillespie, Zoot Sims, Ray Charles, Wes Montgomery, Billy Taylor e Eddie Lockjaw Davis, entre incontáveis outros.

Montou um quarteto que se tornou atração fixa do célebre Minton’s Playhouse, em 1955 e que incluía o pianista Hank Jones, o baixista Wendell Marshall e o baterista Shadow Wilson. Costumava substituir Buddy Collette nas temporadas do quinteto de Chico Hamilton no Basin Street, quando o saxofonista, por algum motivo, não podia viajar até Nova Iorque.

Em 1959 excursionou pela Europa com a orquestra de Quincy Jones, que apresentava então o musical “Free And Easy”, de Harold Arlen. Além das atividades como músico de estúdio, Richardson trabalhava como integrante fixo das orquestras do Teatro Roxy e do programa televisivo “The Hit Parade”. Na Broadway, participou das montagens de diversos musicais, incluindo “Ain't Misbehavin’”, “Black & Blue”, “Jelly's Last Jam” e outros. Uma de suas associações mais importantes no período foi com Charles Mingus, que o chamou para tocar sax barítono em seu álbum “Mingus Dinasty”, de 1959.

Uma das raras oportunidades de ouvirmos Richardson como líder é o ótimo “Midnight Oil”, gravado no dia 10 de outubro de 1958 e lançado pela Prestige. Ao seu lado estão o trombonista Jimmy Cleveland, o pianista Hank Jones, o guitarrista Kenny Burrell, o baixista Joe Benjamin e o baterista Charlie Persip. A produção ficou a cargo de Esmond Edwards e a engenharia de som coube ao mago Rudy Van Gelder.

Abrindo o disco em altíssima temperatura, “Minorally” é um bebop musculoso, de autoria do próprio líder, que aqui usa o sax tenor (nas outras faixas, ele toca apenas a flauta). O sexteto atua com enorme competência e os solos de Richardson são um primor de fluência e bom gosto. Burrell é, certamente, um dos mais técnicos e inventivos guitarristas da história do jazz e seu solo, impregnado de blues, é uma aula de vitalidade. Grandes momentos de Cleveland e Jones, merecendo destaque a bateria furiosa de Persip.

O irresistível swing de “Way In Blues” ecoa na cabeça do ouvinte por horas. O líder – e compositor – esgrime a flauta com enorme destreza e consegue imprimir ao tema bastante groove, no que é ajudado, sobremaneira, pela guitarra energizada de Burrell. A inusitada mistura de flauta e trombone resulta em uma sonoridade alegre, realçada pela maestria da inspirada sessão rítmica, especialmente Jones.

“Delerious Trimmings” é mais uma composição de Richardson, que começa lentamente para, aos poucos, ir acelerando. Belíssimo trabalho do baixista Benjamin e do endiabrado Persip, que aqui alivia a mão e usa as escovas com enorme talento. Como de costume, Burrell e Cleveland tocam um absurdo e o fleumático Jones perpetra talvez o solo mais elegante do álbum.

A clássica “Caravan”, de Duke Ellington, Irving Mills e Juan Tizol, ganha uma versão magistral. Impressionante como a flauta soa misteriosa e dá outro sentido harmônico a uma das composições mais conhecidas e gravadas de todos os tempos. A introdução, a cargo de Benjamin, Jones e Persip, é demolidora. Richadson parece um encantador de serpentes e o som que extrai do seu instrumento é verdadeiramente hipnótico, enquanto Burrell e Cleveland providenciam doses extras de histamina.

Pagando tributo aos heróicos tempos do swing, o grupo resgata “Liric”, do clarinetista Artie Shaw. Maravilhoso o diálogo entre Jones e Richardson e o solo de Burrell é simplesmente primoroso. É a única faixa sem a presença de Cleveland e encerra o disco de maneira mais que gratificante, com sua atmosfera dançável e alegre. Pena que além deste, Richardson somente tenha lançado, em seu próprio nome, mais três álbuns: "Roamin' With Richardson", de 1959, pela Prestige, "Going To The Movies", de 1962, pela United Artists e "Groove Merchant", de 1967, pela Verve.

Richardson também foi um dos fundadores e principais integrantes da Thad Jones-Mel Lewis Orchestra, entre 1965 e 1970, onde tocava flauta, sax alto, tenor e soprano. Sua amizade e lealdade para com Jones se estenderia para além da morte deste, em 1986. No final dos anos 80, ele organizou diversos concertos e tributos dedicados à música de Thad, até mesmo para arrecadar fundos para a família do falecido músico, que na época passava por dificuldades financeiras.

Em 1971 voltou para a Califórnia, trabalhando com o velho amigo Quincy Jones em projetos para o cinema e a televisão. A música brasileira não era estranha a Richardson, que participou de sessões com o maestro Tom Jobim, com o pianista Sérgio Mendes e com a cantora Astrud Gilberto, além de ter gravado com o maestro Moacir Santos e com Hermeto Paschoal, em seu álbum “Yogurt”, de 1972. Também participou de álbuns de grandes nomes da música pop, como Steely Dan, The Four Tops, Bee Gees, Mama Cass Elliot, Neil Diamond, Earth, Wind And Fire, Harry Belafonte e outros.

Em meados dos anos 80, retornou a Nova Iorque, onde tocou regularmente com Art Farmer, Clifford Jordan e Slide Hampton, além de ter liderado seus próprios conjuntos. Estima-se que tenha participado de inacreditáveis 4.000 gravações ao longo da carreira, tornando-se, certamente, um dos músicos mais prolíficos de todos os tempos. Além disso, Richardson também era compositor e arranjador e, nos últimos anos, também passou a cantar.

Faleceu no dia 23 de junho de 2000, em Englewood, Nova Jérsei, em decorrência de um ataque cardíaco. Sua grandeza e seu espírito solidário não se extinguiram nem mesmo com a morte. Atendendo a um pedido seu, a família requereu que quaisquer donativos feitos à sua memória fossem encaminhados à Dizzy Gillespie Foundation, dedicada a descobrir e apoiar jovens talentos musicais.

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