O CAMPEÃO MUNDIAL DOS PESOS MÉDIOS
Música e outras coisas

O CAMPEÃO MUNDIAL DOS PESOS MÉDIOS



Um turbilhão de oito mil vozes histéricas, sedentas de sangue e violência, tornava o interior do ginásio um ambiente ensurdecedor. O odor de cigarro e suor, o ar quase irrespirável, o calor extremo, a tensão quase palpável, os flashes que pipocavam incessantemente, tudo conspirava para que a noite fosse inesquecível. Sob os urros da multidão ensandecida, os dois contendores subiram ao ringue, cada um deles usando um vistoso roupão e secundado por um numeroso staff. Naquela arena de cerca de 36 metros quadrados, aqueles homens, qual gladiadores modernos, haveriam de se enfrentar até que um deles tombasse. O cobiçado cinturão de campeão mundial desfila nas mãos de uma loura escultural. A sorte estava lançada.


Soa o gongo. Os dois homens, com o olhar resoluto e a expressão pétrea se dirigem ao centro do tablado. São profissionais experientes, dois dos mais brilhantes pesos médios que já subiram em um ringue. O mais alto e esguio, Benny “Honey” Flint, é um pugilista clássico, da escola de Sugar Ray Leonard. Dex “The Punisher” Noonan é mais baixo e atarracado, valente e muito forte, uma versão um pouco menos robusta de Marvin Hagler. O início do round é eletrizante. Dex “The Punisher” encurrala Flint nas cordas logo nos primeiros 30 segundos e impõe ao rival uma intensa saraivada de golpes.


Mas Flint é malandro. Mais experiente, tem apenas 18 nocautes em seu cartel – venceu as outras 19 lutas por pontos. Jamais caiu. É muito técnico e sabe se defender. Como certos peixes que fingem-se de mortos para poder devorar suas presas, ele aparenta ter acusado os golpes. O afoito Dex se preocupa apenas em atacar e se esquece de uma das regras mais elementares da nobre arte: jamais deixe a guarda aberta. A lição vem sob a forma de um potente uppercut de esquerda. O pescoço faz um movimento de noventa graus. Um feixe de músculos de aço impede que a cabeça seja arremessada para longe do corpo. Noonan sente o golpe. São os 20 segundos mais longos de sua vida, até que soe o gongo. Dois potentes jabs e um cruzado de esquerda quase fazem o voluntarioso pugilista de Detroit beijar a lona. Mas ele consegue o tempo que precisava para se recuperar.


O segundo e o terceiro round se sucedem sem grandes momentos. Um direto aqui, um cruzado acolá – o ritmo alucinante do início do combate parece ter deixado mais cautelosos os combatentes. No quarto round, o bailado cadenciado de Flint começa a fazer a diferença. Seus golpes não são muito potentes, mas são bastante certeiros. Dex “The Punisher” começa a arfar. Seus joelhos parecem não ter vontade própria e os braços começam a ficar pesados. A respiração penetra nos pulmões como uma procissão de adagas e o nariz começa a sangrar. O gongo se encarrega de abreviar o suplício.


No quinto assalto, novamente Flint toma a iniciativa. Cada golpe parece ter sido calculado e executado uma centena de vezes. Um direto na altura do supercílio esquerdo faz Dex cambalear e procurar as cordas. Um minuto e quarenta. Dex se recurva em uma posição quase fetal e aguarda o impiedoso castigo. O repertório do adversário é vasto e penosamente certeiro. Um cruzado de esquerda atinge a orelha de Dex – felizmente para ele o golpe não foi tão forte e nem tão preciso. Um minuto e dez segundos. Alguns jabs e um poderoso direto no plexo solar fazem a platéia urrar. A queda parece iminente.


Um pugilista mais afobado teria partido com tudo para cima do combalido Dex. Mas não Flint, o catedrático, o doutrinador, o homem de gelo. Ele é arrogante, mas não estúpido. Sob os apupos da assistência, ele recua pois sabe que se subestimar o adversário pode acabar nas cordas ou, pior, na lona. Refreia o ímpeto e cuida de esperar o melhor momento para o golpe mortal. Alguns socos na altura do fígado e Dex quase não consegue respirar. Trinta segundos. Mais alguns jabs. Dez segundos. Os pulmões de Dex parecem querer explodir. O gongo, finalmente, é acionado. Ele quase não consegue chegar sozinho ao corner.


O trabalho dos técnicos é frenético. Eles agitam os braços e gritam feito desesperados. O olhar de Flint, visivelmente mais inteiro, é atento. Dex mal consegue manter os olhos fixos no velho treinador. São três minutos de um combate desigual. De um lado, um boxeador no esplendor da sua forma física e técnica. O outro, um alquebrado pugilista, cuja força descomunal não tem se mostrado capaz de fazer frente à superioridade do adversário. Um uppercut fura a guarda de Dex e o deixa a mercê de “Honey”. Novamente, uma sucessão de golpes muito bem concatenados vai exaurindo as forças do valente boxeador de Detroit. Seu olho esquerdo é uma massa disforme e os lábios sangram com abundância. O árbitro pára o combate para que Dex possa ser atendido e aqueles preciosos segundos têm um efeito revigorante. Tudo que ele precisa fazer é resistir por mais vinte segundos. E ele consegue, apesar do castigo.


No sétimo assalto, Dex reformula a sua estratégia. Evita o combate direto e se afasta ao máximo do raio de ação do adversário, cuja envergadura permite golpes mais longos. O ritmo da luta cai e os dois homens voltam a se estudar. Benny Flint, que até então exibia o seu fabuloso jogo de pernas de forma ostensiva, começa a se movimentar menos. Pela primeira vez em três ou quatro rounds, recebe alguns golpes mais duros. Um gancho na altura do fígado faz com que ele encoste nas cordas. O orgulho de Nova Jersey acusa o golpe.


Um misto de perplexidade e dor percorre seus olhos. Ele tenta um gancho mas a esquiva de Dex, mais baixo e melhor posicionado no tablado, é mais eficaz. “The Punisher”, cuja queda parecia inevitável, encontra forças para emendar um potente cruzado, que atinge em cheio o maxilar de Flint. Ele cambaleia e tomba sobre as cordas. A multidão delira. Quinze segundos. Uma saraivada de golpes rápidos, mas pouco precisos, é a prova de que Dex, apesar das vinte e seis vitórias por nocaute, ainda tem muito que aprender sobre os mistérios do ringue. Mas pelo menos ele conseguiu impor ao adversário algum dano. O massacre, tido como certo há apenas dois ou três rounds, não se consumou.


Oitavo round. Dois homens extenuados se estudam no centro do ringue. Ambos adotam uma postura escorregadia. Golpes quase frívolos, mal concebidos e pior executados, dão a tônica do pior assalto do combate. Boa parte da luta é consumida em um sonolento clinch. Apáticos, os dois retornam aos corners sem tentar esconder a decepção com os respectivos desempenhos. Nono round e a história parece que vai se repetir, para desespero da platéia, que dá mostras de estar impaciente.


Faltando pouco menos de dois minutos, Flint encaixa um cruzado espetacular e Dex provoca um clinch. São apenas dez segundos, suficientes para que ele recupere parcialmente os sentidos e desfira um sensacional uppercut em Flint. Depois, esquiva-se agilmente de um direto e muda o próprio centro de gravidade, usando o impulso de todo o corpo para desferir um gancho devastador. Flint dobra os joelhos e expele o ar dos pulmões. Está à mercê de Dex, que agora, apesar de exausto, consegue uma seqüência de três socos indefensáveis.


No último deles, Flint tomba no tablado, como uma árvore abatida por um implacável lenhador. Ainda tenta evitar a queda, movendo freneticamente os braços, como se procurasse uma corda invisível para se apoiar. Mas não havia como evitar o tombo. Os calcanhares são a última parte do corpo a tocar o solo, o gran-finale de uma coreografia grotesca. As estruturas do ginásio parecem chacoalhar, por causa dos gritos exaltados da assistência.


O juiz inicia a contagem. 1, 2... Flint não consegue ouvir o barulho da multidão. Seus olhos esgazeados o traem. 3, 4, 5... Tudo o que consegue ver é uma massa indistinta de cores e formas sem sentido. Seus joelhos estão descoordenados e os braços não conseguem se elevar acima da cintura. 6, 7, 8... Com um esforço absurdo, consegue se sentar, mas não encontra forças para levantar. A cabeça pende de lado, como um doloroso apêndice do corpo. 9, 10. O combate acabara. O cinturão dourado agora teria uma longa viagem até Detroit.

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O apelido de “Campeão mundial dos pesos médios” foi dado a Hank Mobley pelo crítico Leonard Feather, que o fez sem qualquer conotação pejorativa. Como admitia o próprio saxofonista, seu sopro não tinha a potência ou o vigor de pesos pesados como Dexter Gordon, John Coltrane ou Sonny Rollins, mas era doce e impregnado de lirismo – uma espécie de Lester Young do hard bop. Nascido em Eastman, Georgia, mas criado em Nova Jersey, Hank começou a tocar saxofone relativamente tarde, aos 16 anos. Contudo, aos 19 já atuava profissionalmente, acompanhando o cantor de R&B Paul Gayten, ao lado de feras como Sam Woodyard, Clark Terry e Cecil Payne. Em 1951 foi convidado por Max Roach para integrar seu quarteto, permanecendo ali por quase três anos e, em 1955, uniu-se aos Jazz Messengers, de Art Blakey e Horace Silver.


Também tocou com Dizzy Gillespie, Tadd Dameron, J. J. Johnson, Lee Morgan, Johnny Griffin, Curtis Fuller, Wardell Gray, Jimmy Smith, Kenny Dorham e Lester Young. Integrou o quinteto de Miles Davis entre 1961 e 1962, tendo participado do ótimo “Someday My Prince Will Come”. Embora não possa ser comparado a Rollins e Coltrane no quesito inovação, Mobley era um dos tenoristas mais confiáveis e um dos mais disputados acompanhantes das décadas de 50 e 60, como demonstram as dezenas de álbuns que gravou para a Prestige e a Blue Note nesse período. Pela gravadora de Alfred Lyon, lançou excelentes álbuns como líder como “Soul Station”, “Roll Call”, “No Room For Squares” e “The Turnaround”.

Um de seus discos menos conhecidos é o “Hank Mobley: Quintet”, de 1957. Uma pena, pois a qualidade da sessão é espantosa. Acompanhando o saxofonista, estão Art Farmer no trompete, Horace Silver no piano, Doug Watkins no baixo e Art Blakey na bateria. Compositor de mão cheia, todos os seis temas são de autoria do líder. A sua atuação, em cada uma das faixas, é soberba daí porque a pecha de pouco inventivo se mostra absolutamente injusta. “Funk In Deep Freeze”, uma de suas mais conhecidas composições, merece especial destaque, sobretudo por conta dos maravilhosos solos de Silver e Farmer.

Outra das acusações mais usuais – e menos verdadeiras – era a de que Mobley era um saxofonista extremamente técnico, mas nada emotivo. Basta ouvir a lindíssima versão da balada “Fin de l’affaire” e o diálogo magistral com Farmer, para que qualquer dúvida se dissipe. O quinteto arrasa nas trepidantes “Wham And They’re Off”, “Startin’ From Scratch” e “Stella-Wise”, executadas com alta dose de adrenalina. Outro ponto alto é o blues “Bass On Balls”, na qual sobressai-se o entrosamento entre Watkins e Silver.

No final dos anos 60, Mobley mudou-se para a Europa, retornando aos Estados Unidos em 72. Nessa época, integrou por pouco tempo a big band de Muhal Richard Abrams e manteve uma breve associação com o pianista Cedar Walton, mas diversos problemas de saúde impediram que o saxofonista tivesse o mesmo reconhecimento que teve na década anterior. A pneumonia abateu-o em 1986, mas o sopro lírico e melodioso desse verdadeiro campeão jamais deixará de ecoar nos ouvidos e corações dos jazzófilos.



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