TAXI DRIVER: UM CONTO DE FADAS NOVA-IORQUINO
Música e outras coisas

TAXI DRIVER: UM CONTO DE FADAS NOVA-IORQUINO



Os últimos fiapos de sol morriam por entre as frestas da janela. Ele, ainda trôpego de sono e cansaço, maneou a cabeça e olhou para o relógio. Um leve esgar percorreu-lhe a face sonolenta e, com ele, a certeza de que mais uma noite de trabalho havia chegado. O tempo inclemente não parou enquanto ele dormia. Desde que estacionara o velho táxi, um Checker fabricado num longínquo 1953, tomara uma xícara de café frio e deitara sem prestar atenção ao burburinho que vinha da calçada, já haviam transcorrido quase dez horas. O submundo onde recolhia seus passageiros também começava a despertar.

O longilíneo ponteiro dos segundos continuava sua marcha inexorável. Já estava completamente escuro quando ele tomou coragem para levantar da cama. O banho frio despertou-lhe os sentidos e deu-lhe a coragem necessária para encarar a faina que se afigurava longa. Mais uma noite solitária, trafegando por entre bêbados, drogados, prostitutas e cafetões. Ele era apenas mais uma alma desgarrada vagando pelas ruas indistintas, tão perdido quanto qualquer um dos seus clientes habituais.

Tateou pela velha geladeira e encontrou um pacote de biscoitos, que comeu sem nenhum entusiasmo. Bebeu um pouco de leite gelado, pôs o pesado casaco, deu uma última olhada no espelho e saiu pela porta da cozinha. O pequeno apartamento parecia menor ainda, por conta do gigantesco piano que dominava praticamente toda a extensão da sala e o obrigava a se esgueirar rente às paredes.

Além do táxi, com o qual vinha ganhando a vida nos últimos anos, o piano era o único bem que ele possuía. Já fazia meses que ele sequer abria o imponente Bosendorfer Imperial e sentia que suas mãos destreinadas estavam perdendo a velha destreza. Lembrou dos dias de glória, dos gritos histéricos da pequena multidão que se acotovelava, noite após noite, nos diversos clubes da Rua 52 para vê-lo tocar. Bem, na verdade eles vinham para ver o seu chefe, o seu amigo, o seu camarada – mas ele não se importava. Bird estava morto havia anos e os convites para tocar foram escasseando até parar de vez. Ele, que havia dividido palcos e estúdios com os maiores, que havia sido aplaudido de pé nas casas mais afamadas da Europa, devia agora se conformar e esquecer. Seu tempo havia passado e não voltaria mais.

Ligou o carro e sintonizou uma obscura estação de jazz. As últimas palavras do disc-jóquei foram “...mas ele desapareceu da cena jazzística há algum tempo e ninguém sabe do seu paradeiro atual”. Em seguida, ele ouve os primeiros acordes de “Flight To Jordan” e sente cálidas lágrimas a escorrerem de suas faces. “Não, cara, não existe Cinderela. Você tá acabado, já passou dos cinqüenta... ”. Enxugou as lágrimas e acelerou – não havia tempo para tais sentimentalidades. Concentrou-se no trabalho e esforçou-se para ouvir a música apenas com os ouvidos. Ao parar em um sinal, um bêbado mal encarado lançou-lhe um olhar furioso através do pára-brisa e rosnou: “Tá falando comigo?”. Logo em seguida, deu sorte. Um casal de aparência distinta fez sinal. Eles jantariam no Carlyle e pediram ao motorista que os esperasse até o fim da noitada.

Já eram quase duas da manhã quando ele voltou de Nova Jérsei. Coincidência ou não, o simpático casal morava em Englewood Cliffs – próximo de um endereço que ele conhecia tão bem. No rádio, o velho amigo Parker descortinava sua alma atormentada através de uma portentosa versão de “Out Of Nowhere”. Gravação da Dial. 1946. Ele estava lá. Max, Tommy e Davis também. Pensou em Miles e sua reluzente Ferrari – havia passado por ele algumas vezes. Sentiu um travo amargo na boca. Em seguida, é a delicada “Star Brite” que ecoa pelos alto-falantes do carro e ele recordou dos amigos Dizzy, Stan, Reggie e Artie.

Dizzy, com seu olhar penetrante e inquieto, não precisava falar. Seu sopro – misto de virilidade e ternura – dizia todas as frases necessárias. Stan, outro mestre da delicadeza, custava a crer que alguém pudesse tocar um trompete de forma tão lírica. O querido Artie, sempre de óculos escuros. Reggie e suas mão rápidas como um cometa... De repente, ele está de volta ao dia 4 de agosto de 1960. Sua memória não o trai – é Dizzy quem está sentado na solene escada de madeira que leva ao segundo andar. Trompete na mão esquerda, semblante tranqüilo, apenas sacode a cabeça e sobe em direção ao estúdio. Francis também estava lá, com sua inseparável Rolleiflex.

Lembrou-se, nitidamente, de um compenetrado Van Gelder apertando incontáveis botões, em busca da equalização perfeita. Instrumentos fora dos estojos. O afinado piano é posicionado a alguns metros da imponente bateria. “OK, pessoal. Gravando!”, diz Rudy. Os mesmos acordes que ele ouvira no rádio algumas horas antes, agora reverberam em sua cabeça. A eletricidade de “Flight To Jordan”, com Dizzy arrebentando no trompete... A doce “Star Brite”, na qual Stan arranca do seu saxofone todo o encantamento que é possível a alguém extrair de um instrumento musical... A dardejante “Split Quick”, com os caras se matando prá ver quem toca mais rápido... A irresistível “Si-Joya”, que ficou melhor que na versão do grande Blakey... “Deacon Joe”, com sua tintura de blues, baseada em um antigo spiritual...

Duas e meia. A gorjeta dada pelo casal vale pelo trabalho de três dias. Mais que o corpo, ele tem a alma cansada. Pela primeira vez em muitos anos ele pensa, realmente, se fez a opção correta. Lembra com mais intensidade da época em que compunha trilhas sonoras para o cinema, em que viajava pelo mundo fazendo aquilo que mais amava: tocar! Resolve voltar para casa. Entra sem fazer barulho e se arrasta até o piano. Lentamente, retira a capa que protege o instrumento e fica alguns minutos apenas olhando. Abre sofregamente a tampa, senta na banqueta e começa a brincar com as teclas. Os dedos, inicialmente sem ritmo, vão se amoldando aos poucos. As notas, antes dispersas, começam a se agregar de maneira harmônica e vão formando o contorno sonoro de “I Should Care”. “Outra música que os caras tocaram naquele dia”, pensa ele.

Em seguida, “My Old Flame”, que ele tanto tocava com Bird. Depois, uma versão minimalista de “Jordu”, tocada em um andamento vagaroso. Ele não perdeu a velha forma – apenas recolheu o seu enorme talento em alguma gaveta da alma. Dirigir táxi é para pragmáticos e um pianista certamente não o é. Quatro e meia da manhã. O score solitário chaga ao fim. Não há aplausos – tocara tão baixinho que nem mesmo o senhorio poderia tê-lo ouvido. Cobre novamente o piano e vai dormir – o sono vem fácil, como há muito não experimentava. Sonha com a algaravia da platéia e com o silêncio monástico do estúdio, mas não acalenta mais qualquer ilusão. É 1973 e ainda há muitos passageiros a transportar...


********


Irving Sidney “Duke” Jordan passou mais da metade dos anos 60 e parte dos anos 70 como taxista em sua querida Nova York. O melodioso pianista que acompanhara Charlie Parker nos anos 40 e que chegou aos anos 50 como um dos mais badalados compositores do jazz, chegando a ser convidado pelo francês Roger Vadim para compor a trilha do seu filme “Les Liaisons Dangereuses”, viu-se, por longos 11 anos, obrigado a abandonar a carreira e sobreviver, modestamente, das corridas que fazia a bordo de um táxi. Em 1973, a fada-madrinha apareceu-lhe sob a forma do produtor dinamarquês Nils Winther, que lhe convidou para gravar por sua gravadora, a respeitada Steeplechase.


A partir daí, Duke Jordan pôde retomar a carreira. Mudou-se para a Dinamarca, onde permaneceu até a sua morte, em 2006. Nesses mais de trinta anos, gravou e excursionou intensamente, pelo mundo todo, gozando de uma popularidade inédita até então, especialmente no Japão. Embora tenha se reconciliado com o sucesso e protagonizado um dos mais emocionantes contos de fada da era moderna, o grande disco de sua carreira foi, sem dúvida, o espetacular “Flight To Jordan”. Nesse álbum, Duke, coadjuvado por Dizzy Reece, Stanley Turrentine, Art Taylor e Reggie Workman erigiu uma obra-prima, uma verdadeira declaração de amor ao jazz. Mesmo afastado da ribalta, não cultivou rancores. Suportou estoicamente o destino que as Musas lhe haviam traçado e, no momento certo, soube aproveitar a chance para fazer renascer uma carreira que muitos davam como encerrada. Fez-se, então, uma rediviva Fênix – a Fênix do “yellow cab”.
**********
PS.: Este post é dedicado aos amigos João Bouéres e Edú, verdadeiras reservas morais do bom gosto musical e ao meu querido primo Hélio Cordeiro, que nesse exato instante divide uma ótima garrafa de malbec comigo.



loading...

- Um Conto De Natal
Caminhar sozinho, à noite, pelas ruas de uma grande cidade, pode ser uma experiência assustadora. Sobretudo quando você tem apenas doze anos. Sobretudo quando você não tem pai nem mãe. Nem casa. Nem amigos. Nem lugar prá dormir. Nem dinheiro....

- NÃo HÁ Ratos Em Paddington Hall
O pequeno homem de chapéu coco e bigodes espessos parecia pouco à vontade. Havia algo de volátil naquela sala espaçosa e mal iluminada que o incomodava. Era como se os moradores da casa fizessem questão de manter na penumbra os miasmas que poderiam...

- Um Estudo Em Vermelho: Todos Os Acordes De Red Garland
O piano é a espinha dorsal do jazz. Suas 88 teclas equivalem às 33 vértebras do corpo humano, que dão suporte e mobilidade ao esqueleto. Alguém poderá dizer que é perfeitamente possível fazer jazz sem piano – e com uma qualidade a toda prova....

- O SolitÁrio Concerto Que Valeu Por Uma Vida
Um jovem caminha a passos trôpegos por uma deserta e quase fantasmagórica Paris. A Cidade Luz é agora mera figura de linguagem – não há viv’alma naquelas ruas escuras e os passos do rapaz ecoam pela madrugada. Embriagado de vinho barato, sofrendo...

- MemÓrias Do Fstudio - 12- Frade E Fred
Ele era baixinho, careca e meio gordinho.  Idade, por volta dos 80 anos. Estava parado num ponto de ônibus defronte à Praça de Casa Forte. Eu tinha acabado de sair de casa e ia fazer uma caminhada até o centro da cidade, para o estúdio. Começou...



Música e outras coisas








.