O APARTAMENTO DE ARLINDO: A TRILHA SONORA DE MUITAS VIDAS
Música e outras coisas

O APARTAMENTO DE ARLINDO: A TRILHA SONORA DE MUITAS VIDAS



Conheci Arlindo Raposo em meados dos anos 80. Eu havia ingressado recentemente no Curso de Economia da UFMA e, embora nunca tivesse sido seu aluno, acabamos por trabalhar juntos em um projeto da Fundação Sousândrade, onde fui estagiário e ele integrante do corpo técnico.

Sua personalidade afetuosa, bonachona e bem-humorada logo nos cativou a todos e ele aglutinou em torno de si um grupo de jovens futuros economistas: Celijon Ramos, Washington Torreão, Sérgio Martins, Hugo Rabelo, Gilberto Lago, Josinaldo da Luz, Eurípedes Serra, José Reinaldo Barros, Antônio Vieira, Cáritas de Jesus, Ribamar Sá e eu (que acabei trocando a economia pelo direito).

Para além das afinidades político-ideológicas, estreitamos os laços de amizade e criamos então uma pequena confraria, que passou a gravitar em torno do nosso querido mestre, baseada em um elevado sentimento de respeito ao próximo e de cumplicidade recíproca.

O coração generoso de Arlindo acolheu esses jovens universitários cheios de planos e ele e eu nos tornamos amigos bastante próximos. Todos nós freqüentávamos a sua casa e qualquer motivo – por mais bobo que fosse – era razão suficiente para que nos reuníssemos no “apartamento de Arlindo”. Não era raro encontrar por ali artistas, políticos e intelectuais e nos deleitávamos ouvindo a prosa de pessoas que tanto admirávamos.

O “apartamento de Arlindo” era uma espécie de “apartamento da Nara” da minha geração. Da mesma forma que alguns jovens e talentosos músicos se reuniam no apartamento da Nara Leão no final dos anos 50 e ali criaram a Bossa Nova, nós nos reuníamos no “apartamento de Arlindo”. Diga-se, a bem da verdade, que não possuíamos o menor talento musical!

Tínhamos, em contrapartida, uns aos outros. Tínhamos, naquela época, uma segunda casa. Tínhamos um lugar que era um pouquinho nosso também – acolhedor, generoso, alegre, alto-astral – e que era a mais completa tradução da alma do seu dono. Dali, viajávamos com Arlindo, sem escalas, para Cuba e para o México. Conhecemos as majestosas ruínas de Machu Pichu e nos encantamos com a delicadeza do artesanato local, sem jamais sair da sua acolhedora sala de estar.

Naquele lugar tão hospitaleiro discutíamos política com toda a gravidade que o assunto exigia e da sacada daquele apartamento conseguíamos – tantas e tantas vezes – mudar o mundo. Inúmeras foram as ocasiões em que fizemos, a partir do nosso “quartel-general”, a revolução e criamos um novo país – mais justo e solidário. Daquela sala tão aconchegante desfraldávamos as nossas bandeiras e ousávamos sonhar com um mundo melhor.

Mas Arlindo não se contentava apenas em sonhar com esse mundo. Ele ia além dos devaneios bem intencionados daqueles jovens idealistas e praticava, em seu dia a dia, todas aquelas idéias de igualdade, fraternidade, liberdade, integridade e justiça que nós outros – que tão pouco sabíamos da vida – somente éramos capazes de intuir.

Apesar da seriedade de alguns dos temas que davam o tom a boa parte das nossas conversas, o ambiente nada tinha de enfadonho ou sisudo. Pelo contrário, o apartamento de Arlindo sempre significou festa, alto-astral, congraçamento, amizade, alegria, união. Não lembro de ter passado ali um único momento triste – o apartamento sempre transbordava bom humor e felicidade.

Falávamos também de cinema, de música, de literatura. Víamos filmes e, sobretudo, ouvíamos música. Muita música!!!! O melhor da música!!!! João Gilberto, Caetano, Gal, Bethânia, Chico, Nana, Edu, Johnny Alf, Milton, Elis, Gil, Ellington, Chet, Sinatra, Miles, Ella, Billie, Bennett, Jobim... Eram esses – e tantos outros – os nossos companheiros de viagem.

Ali ouvi pela primeira vez o emocionante And His Mother Called Him Bill, tributo do maestro Duke Ellington ao seu fiel escudeiro e amigo Billy Strayhorn, o estupendo songbook dos irmãos Gershwin, na voz de uma iluminada Ella Fitzgerald, e o seminal Pithecanthropus Erectus, obra prima do caudaloso Charles Mingus. Nesse exato momento, a minha memória afetiva se manifesta mais fortemente e vejo, nitidamente, todos nós ali outra vez. Mais jovens, mais próximos uns dos outros, mais esperançosos e menos céticos!

Meu amigo Arlindo não pôde ver o país que sonhou e pelo qual lutou tanto. A sociedade justa, fraterna, igualitária, alegre, generosa, democrática, solidária e despida de qualquer tipo de preconceito que ele tanto ansiava não se materializou até hoje. Pelo contrário. Vive-se atualmente em um país onde o mau é o bom, onde o feio é o bonito, onde o grotesco é o belo, onde a ostentação substitui a solidariedade para com o próximo e a intolerância dá a tônica nos relacionamentos humanos. Nada mais anti-Arlindo.

Que bom seria se nós, que tivemos a honra e o privilégio de compartilhar de sua generosidade, tivéssemos um pouco da sua grandeza e pudéssemos nos dedicar ao outro – ao amigo, ao vizinho, ao colega de trabalho, ao irmão, ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos – com a mesma intensidade e o mesmo desapego às pequenas coisas que eram as suas características mais evidentes. Arlindo era um amigo fiel e leal, sempre pronto a estender a mão a quem dela precisasse, sempre disposto a fazer qualquer sacrifício pessoal para auxiliar um amigo em dificuldades.

Drummond certa vez conclamou: “vamos de mãos dadas”. E talvez esse fosse o mote mais adequado a qualquer conversa sobre Arlindo. Essa foi a sua grande lição! “Não nos dispersemos”, parecia ser a frase revelada por seu sorriso sempre posto. Se a vida nos impõe a separação, que combatamos a vida para construir uma outra vida... Nesse embate, ficou a música como a grande aliada. A música que ele tanto amava e que nos tornou mais próximos. A música, a trilha sonora das nossas vidas, tinha no apartamento de Arlindo um santuário e uma fonte inesgotável de sensibilidade e bom gosto.

Aquele apartamento era uma trincheira do bom, do belo, do pleno. Elevemos, pois, os nossos espíritos ao som da música e lembremos um pouco do sorriso terno e gentil do nosso querido amigo. Creio que é dessa forma que ele gostaria de ser lembrado.

Arlindo, não pude lhe dar o último abraço. Não pude estar ao seu lado na hora derradeira. Que você vele por nós, porque numa dessas encruzilhadas da eternidade certamente iremos nos encontrar novamente. Então, talvez, possamos nos abraçar e rir e chorar e contar histórias e ser velhos amigos e irmãos outra vez. Até qualquer dia. Segue em paz, meu irmão!

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Este texto foi escrito no dia 20 de agosto de 2006, ainda sob o impacto da morte do meu querido amigo Arlindo Raposo e permaneceu inédito até hoje. É uma homenagem bastante singela a alguém cuja importância foi capital na minha formação tanto intelectual quanto humanística. Seus conselhos até hoje me fazem uma falta tremenda. Para relembrar os muitos momentos felizes proporcionados por esta excepcional figura humana, algumas canções emblemáticas daquela época: Dora, com Nana Caymmi, Eu e a brisa, com Johnny Alf, e Milagre, com João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

Na foto que ilustra o post, Arlindo é o primeiro da direita para a esquerda, de terno claro. Integrou a primeira turma de Economia da Universidade Federal do Maranhão, que teve como patrono o ex-presidente Juscelino Kubitscheck. A cerimônia de colação de grau foi realizada na noite de 12 de dezembro de 1968 e contou com a presença do ex-presidente.

Na noite do dia 13 de dezembro de 1968, quando se realizaria o baile, os formandos foram informados de que naquele mesmo dia Juscelino Kubitscheck foi preso ao descer do avião. Um dos integrantes daquela turma, o economista Milton Freitas, relata o que ocorreu então:

“A festa perdeu todo ânimo, todos se entristeceram. Então, em sinal de protesto, no momento em que deveríamos dançar a valsa, os formandos com seus pares dirigiram-se ao centro do salão, onde fizeram um semicírculo. Todos, de cabeça baixa, fizeram um minuto de silêncio, após o que, puseram a mão direita sobre o peito e entoaram o hino nacional. Em seguida, todos se retiraram cabisbaixos para seus lugares. A valsa não foi dançada.”


No dia 13 de dezembro de 2008, a Universidade Federal do Maranhão e o Conselho Regional de Economia promoveram o baile que não aconteceu naquela noite, quarenta anos antes, e os formandos puderam, finalmente, dançar a tradicional valsa. Infelizmente, sem a presença de Arlindo.



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