Música e outras coisas
John Coltrane (23/set 1926 - 17/jul 1967)
Em 17 de julho de 1967 morria John Coltrane, um dos mais impactantes mitos da música ocidental. Experimentador incansável, Trane morreu tateando novos campos sonoros, desvendando inéditas possibilidades expressivas. Em seus últimos anos de vida, aprofundou com seu sopro o processo de criação que conduzia desde os anos 50 quando, ainda sob a sombra do hard bop, já causava estranhamento devido à forma inusual com que conduzia o sax tenor.
Trane desenvolveu sua sonoridade única paralelamente aos pioneiros do free jazz. Mas, apesar de sempre ter sido um músico que primava pela liberdade, pelo som sem amarras, demarcando com seu sopro (além do sax tenor, testou o soprano, a flauta, o alto e o clarinete baixo) uma escritura que seria devidamente compreendida apenas após os anos 60, ele alcançaria a soltura plena somente em trabalhos datados após o clássico “A Love Supreme”, de dezembro de 64. Todavia, pelo que vinha fazendo desde o fim da década de 50, seria ingênuo pensar que Trane “aderiu” ao free jazz: seu som caminhou passo-a-passo rumo à total liberdade, conquistada e solidificada no período 65-67.
Associar o nome de Coltrane ao free jazz, simplesmente, acaba por gerar certas distorções. Quem for ouvir os álbuns “Giant Steps”, “My Favorite Things” ou mesmo “A Love Supreme” na esperança de tentar compreender o que é o free irá desembocar em caminhos equivocados. Nessas obras clássicas do jazz, Trane ainda mantinha estruturas muito bem armadas, tanto melódicas quanto harmônicas, e o ouvinte iniciante poderá ficar com uma impressão falsa sobre até onde progrediu sua música.
O processo contínuo de criação de Coltrane, que estava em seu ápice quando um câncer no fígado tirou sua vida, aos 40 anos, pode ser apreciado em sua gênese já nos álbuns que gravou ao lado de Miles Davis no período 55-56. Após o primeiro rompimento com Miles (voltariam a se juntar no fim dos anos 50, quando produziram o festejado “Kind of Blue”), ele passaria a gravar constantemente em seu próprio nome, mudança que permitiria o aprofundamento de suas pesquisas, interrompidas apenas com a morte prematura.
“My Favorite Things” é um caso interessante do processo traneano. Ao criar sua versão para a canção, presente no álbum homônimo de 1960, Trane não fez apenas uma variante jazzy-instrumental da peça da dupla Rodgers/Hammerstein, imortalizada no filme 'A Noviça Rebelde', como é comum ocorrer no mundo jazzístico: o saxofonista desconstruiu a canção original, oferecendo aos ouvintes uma peça completamente revigorada. Como essa seria uma das músicas que seguiria Coltrane até o fim da vida, é possível ver como essa desconstrução foi se radicalizando com os anos junto com seu som. Dos já longos pouco mais de 13 minutos da primeira versão que fez, o saxofonista chegaria em sua última fase, documentada no disco “Live in Japan”, de julho de 66, a uma interpretação de “My Favorite Things” que superava os 57 minutos, com muita improvisação livre, na qual do clássico original restaria apenas o assobiável tema de abertura.
Ouvir os trabalhos mais radicais de John Coltrane levanta a questão: para onde caminharia seu som? Mesmo que essa pergunta possa ser direcionada a qualquer artista morto, para alguns se torna mais relevante. James Joyce, Hilda Hilst, Beckett ou Cortázar, todos pareciam já ter atingido o pico de sua expressão criativa quando faleceram. Mas Trane estava em sua ebulição máxima: seu último rebento de estúdio foi “Interstelar Space”, um duo sax/bateria com Rashied Ali, gravado em fevereiro de 67, que sedimentou o formato e pauta os músicos até hoje.
Em seus últimos dois anos de vida, Trane gestou para o mundo obras-primas free jazzísticas como “Meditations”, “Ascension” e “OM”, ícones da fusão entre a total liberdade de exploração sonora e a busca do equilíbrio espiritual que conduzia seu ser. Os títulos desses álbuns ilustram bem a aura que rondava o músico e seus companheiros nesses últimos tempos.
Na abertura e no encerramento de “OM” podemos ouvir Trane (junto a seus parceiros) entoando em uníssono um canto baseado em uma das passagens do livro IX do texto sagrado indiano Bhagavad Gita. Entre as orações, uma avalanche de sons guturais e estridentes, vozes ecoando num sistema de ataque-resposta no qual os instrumentos de sopro ora se misturam, ora se distanciam, criando uma perturbada massa sonora livre das regras que regem o bem-fazer musical. Para onde ia o som de Coltrane?
“Rites that the Vedas ordain, and the rituals taught by the scriptures: all these am I, and the offering made to the ghosts of the fathers, herbs of healing and food, the mantram, the clarified butter: I the oblation and I the flame into which it is offered. I am the sire of the world, and this world’s mother and grandsire: I am He who awards to each the fruit of his action: I make all things clean, I am OM, OM, OM...”
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Ps: Billie Holiday, a mais profunda e dolorosamente expressiva cantora de jazz, também morreu em um 17 de julho. Lady Day, que se foi em 59, nunca gravou ao lado de Coltrane.
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