Música e outras coisas
De quando Yoko se deparou com o free jazz
Yoko Ono não se contentou com a fama de polêmica artística plástica e performática construída nos anos 50/60 e, quando engatou romance com John Lennon, testou a sorte também no mundo musical. Suas investidas nesse campo não contaram, quando começaram no fim da década de 1960, com muitos afagos de público e crítica: afinal, aquela era a mulher que conquistou Lennon e enterrou de vez os Beatles... Como se isso não bastasse, diriam alguns, Yoko ainda trouxe idéias sem muito sentido que acabaram por anuviar a mente brilhante de Lennon...
Apesar de confusos às vezes, seus álbuns traziam momentos curiosos na virada dos 60/70, amparados em uma vasta gama de processos –nem sempre bem amalgamados. As misturas incluíam: certa curiosidade experimentalista que trazia das artes plásticas (e de sua proximidade com o grupo Fluxus), tempero rock, ‘spoken word’, ironia ácida, improvisação, pitadas eletrônicas e outros rumos mais – não faltou nem um flerte com o pessoal do free jazz. E esse é o ponto de interesse aqui.
Era 29 de fevereiro de 1968 quando Yoko Ono se encontrou com o grupo de Ornette Coleman no palco do Albert Hall, em Londres. Ornette no trompete, acompanhado de nada menos que Charlie Haden, David Izenzon e Ed Blackwell. Yoko trouxe ao grupo seu screeching vocal, marca constante em seus primeiros trabalhos. A artista japonesa e o “pai” do free jazz haviam se conhecido pouco tempo antes e tudo indica que essa foi a primeira vez que tocaram juntos. Do show restou, infelizmente, apenas o registro de uma faixa (“AOS”), que apareceu em um álbum da “Plastic Ono Band”. A apresentação completa contou com vários temas, como a clássica “Lonely Woman”, “Buddha Blues” e “Forgotten Children”. Há um CD duplo (“Complete 1968 Italian Tour”) com esse grupo, mas sem Yoko, que foi captado na mesma turnê que originou a apresentação do Albert Hall. “AOS” é um registro interessante de uma época em que o free jazz vivia seu esplendor (a cena européia também estava inflamada) e captava a atenção de artistas de outras esferas.
Exatamente um ano depois Yoko se encontrou no palco com outras duas figuras do free jazz: o saxofonista John Tchicai e o percussionista britânico John Stevens (um dos fundadores do seminal ‘Spontaneous Music Ensemble’). Um terceiro “John” estava presente: Mr. Lennon. Da reunião, restou uma peça, "Cambridge 1969". Pena que os free jazzistas desempenhem papel relativamente coadjuvante, aparecendo mais nos minutos finais, e que não haja, outra vez, registro completo da apresentação, apenas essa longa "Cambridge 1969". A música naquela noite se estendeu por mais tempo que os 26 minutos que restaram registrados. Estavam presentes no evento outros músicos (Trevor Watts, Mongezi Feza, Barre Phillips, Willem Breuker) que teriam também se juntado depois a Yoko e Lennon. John Tchicai explicou em entrevista o esquema que rolou:
“The concert was in two halves – the first half consisting of John and Yoko, the second was various jazz improvisers. At the end of our set they said: ‘If you would like to join us for some improvisation, please do,’ and that is what appears on the record. It wasn’t composed, it was all improvised and I think people were mostly enthusiastic. I’m sure many people found it strange, it was different to the regular music of the time.”
É fantástico ver Lennon tratando a guitarra de maneira a-melódica, improvisando, lidando com uma feedback guitar ruidosa e suja, algo que deve ter dado congestão em seus antigos fãs. As camadas sonoras criadas pelo ex-Beatle servem de base para Ono deslizar seu screeching vocal, que está ainda mais intenso (o que deve representar um suplício para quem acha que a artista japonesa apenas gritava) e atravessa toda Cambridge 1969.
"
Yoko e o free"
1. “AOS” (7:09)
*Yoko Ono: vocal
*Ornette Coleman: trumpet
*Charlie Haden, David Izenzon: bass
*Ed Blackwell: drums
Recorded live at Albert Hall, London, Feb. 29, 1968.
2. “Cambridge 1969” (26:31)
*Yoko Ono: vocal
*John Lennon: electric guitar
*John Tchicai: sax (alto)
*John Stevens: drums
Recorded live at Lady Mitchell Hall, Cambridge, Mar. 2, 1969.
loading...
-
A Musicalidade Espontânea De John Stevens
O percussionista britânico John Stevens (1940-1994) foi um dos nomes fortes da free improvisation européia. Ao lado de Paul Rutherford e Trevor Watts fundou em 65 o Spontaneous Music Ensemble (SME), um dos mais importantes grupos da cena européia pelo...
-
A Mais Bela Versão De “lonely Woman”?
Um dos temas resgatados por Ornette Coleman para formar o repertório de sua atual turnê é a balada “Lonely Woman”, como pôde ser apreciado nos shows desse fim de semana. A faixa apareceu pela primeira vez no álbum “The Shape Of Jazz To Come”,...
-
Ornette E Seus Reencontros
Reagrupar antigos parceiros é uma prática comum na jornada de Ornette Coleman. Colaboradores de diferentes períodos ressurgem com certa constância (em palco ou estúdio) para novos diálogos. Em 77, por exemplo, reencontrou Charlie Haden para um fino...
-
Após Cherry, Um Novo Sopro: Dewey
Depois do fim da parceria com Don Cherry, Ornette Coleman teve um outro 'reedman' como colaborador constante: Dewey Redman. Natural da mesma Fort Worth (Texas) em que Ornette cresceu, Dewey demorou ainda mais tempo para despontar no mundo jazzístico...
-
Guitarra E Noise (from Japan) Ii
A guitarra foi o último instrumento que me interessou no campo jazzístico. De Jim Hall a Joe Morris, sempre achei que, sem ignorar a relevância do legado desses músicos, faltava algo. E longe de mim estar interessado em virtuosismo. O que faltava...
Música e outras coisas