Aos 84 anos, o pianista Muhal Richard Abrams vem pela primeira vez ao país, onde dará dois concertos solistas no festival Jazz na Fábrica, no Sesc Pompeia, nesta semana. Sendo um dos criadores da AACM, que acaba de completar 50 anos de história, Abrams representa um pouco do que de mais inventivo a música free jazzística gestou nesse último meio século.
A figura de Muhal Richard Abrams tal como a conhecemos está intimamente ligada aos anos 1960. Foi no início daquela década que ele organizou a seminal Experimental Band, germe da futura AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians), da qual Abrams seria cofundador e uma das faces nucleares. Antes desse passo fundamental, sua vida artística tem passagens de menor expressão, centradas no South Side de Chicago, onde vivia e era relativamente conhecido como pianista e compositor. Apesar de ter começado a tocar profissionalmente cedo, aos 19 anos – se iniciou no piano na adolescência e passou pelo Chicago Musical College, aprofundando depois seus estudos de forma autodidata –, Abrams, nascido em setembro de 1930, demoraria um pouco para desenvolver um trabalho realmente impactante e pessoal. Dos anos 1950, vale citar sua passagem pelo grupo MJT + 3, do baterista Walter Perkins (1932-2004), e as colaborações com o saxofonista Eddie Harris (1934-1996) e o também pianista Walter ‘King’ Fleming (1922-2014), para quem compunha e escrevia arranjos.
No começo dos anos 1960, Abrams procurava uma maneira para melhor desenvolver as ideias frescas com as quais vinha trabalhando. Os novos rumos artísticos que tateava, em sintonia com o free jazz nascente, encontrariam o formato ideal quando um grupo de músicos interessados em experimentar possibilidades sonoras várias, como o baixista Donald Rafael Garrett (1932-1989), começou a se reunir num espaço em Chicago chamado C&C Lounge. Foi nesse lugar que jovens instrumentistas – dentre esses, Roscoe Mitchell e Joseph Jarman – se aproximaram de Abrams (segundo o próprio Muhal: “Eu apenas fui reunindo um pessoal ao meu redor, caras mais jovens, e as coisas foram acontecendo”), formando o núcleo de seu primeiro projeto de relevância: a Experimental Band. Era ainda 1961 e seria com esse grupo primeiro que Abrams colocaria suas ideias artísticas, composição e improvisação, para se desenvolver. Para compreender a relevância da Experimental Band, basta citar que em 63 o grupo contava com Mitchell, Jarman, Garrett, Henry Threadgill, Maurice ‘Kalaparusha’ McIntyre e Jack DeJohnette, figuras que se tornariam referência na música criativa nas décadas seguintes. “A Experimental Band se tornou um lugar em que podia executar a música que vinha compondo, mas os músicos jovens não sabiam ler as composições, aquilo era muito avançado para eles. Então tive que desenvolver maneiras para eles tocarem, todos aqueles [espaços para] improvisações para que eles pudessem criar. Se desejava que aprendessem certa passagem, fazia sinais com as mãos para que tocassem coisas diferentes”, conta Abrams (In: “A Power Stronger Than Itself”). A vivência com a Experimental Band – que, infelizmente, não deixou registros – se manteria por alguns anos e acabaria se revelando a semente para o surgimento do mítico coletivo AACM, que teria em seu núcleo fundador, em maio de 1965, além de Abrams, o também pianista Jodie Christian (1933-2012), o trompetista Philip Cohran e o baterista Steve McCall (1933-1989).
O perfil professoral, de mestre, aglutinador de Abrams fez com que ele se tornasse referência para toda uma geração de músicos que eram de (ou estavam em) Chicago. No posto de presidente da AACM, Muhal ajudou jovens instrumentistas a descobrirem o melhor caminho para desenvolver sua obra. Interessante notar que alguns de seus pupilos, como Mitchell e Jarman, acabaram por lançarem seus álbuns de estreia antes do próprio Abrams – ele entraria em estúdio apenas em meados de 1967 para registrar o que seria seu primeiro disco, Levels and Degrees of Light, lançado quando já contava com quase 38 anos de idade.
Abrams deixaria sua Chicago, rumo a Nova York, em meados dos anos 1970. Por lá se estabeleceria e criaria a seção novaiorquina da AACM, que passou a presidir. Apesar de o piano ser seu veículo expressivo central, Abrams expandiu suas ideias para outros instrumentos, tocando também clarinete, sintetizador e percussão. Não menos fundamental em sua trajetória é seu papel de compositor (além de grupos de jazz, escreveu para conjuntos de câmara e orquestra sinfônica) e condutor – os trabalhos para bands free jazzísticas, desenvolvidos especialmente nos anos 80 e 90, representam alguns de seus mais densos trabalhos. Também acumulou longa experiência como professor, tendo dado aulas de composição e improvisação em centros destacados como Columbia University, New England Conservatory e Sibelius Academy.
O piano solo, formato em que irá se apresentar no Brasil, sempre fez parte de sua trajetória, mesmo que não tenha deixado muitos exemplares desse tipo gravados. O primeiro registro em que se ouve Abrams em piano solo está em “Young at Heart/Wise in Time”, disco lançado em 69 que traz o músico sozinho em toda uma face do vinil. Depois viria “Afrisong” (75), inteiramente dedicado ao piano. Já o mais recente exemplar nesse formato é “Vision Towards Essence”, editado em 2007. Escutando esses registros, podemos entender um pouco da complexidade da música de Abrams, que pode soar única, com seu intrigante viés por vezes etéreo, por vezes agressivo, ressoando as heranças que compõem sua música, a liberdade do free, algo swingante do bop, blues, elementos do stridee do erudito contemporâneo, sempre ondulando em meio a labirínticas improvisações.
(Muhal Richard Abrams. Solo, 2007)
“MUHAL RICHARD ABRAMS”
Quando: 13/8 (qui), às 21h; e 14/8 (sex), às 21h
Onde: Teatro do Sesc Pompeia (SP)
Quanto: de R$ 15 a R$ 50 (inteira)
*5 Álbuns essenciais de Muhal Richard Abrams*
Levels and Degrees of Light
Delmark
Ano de gravação: 1967
Em sua estreia em disco como líder, o mentor da AACM criou uma peça realmente única. Este Levels and Degrees of Light traz três faixas, diferentes entre si, com momentos de improvisação intensa dividindo espaço com lentas divagações sonoras, um poeta recitando (na faixa “The Bird Song”) e uma cantora em modo “lírico” (Penelope Taylor), além das participações de Anthony Braxton e Leroy Jenkins. Esse álbum ilustra bem a amplitude dos interesses artísticos de Abrams desde seus tempos primeiros.
Sightsong
Black Saint
Ano de gravação: 1975
Intimista registro que marca o encontro de Abrams com o baixista do AEOC, Malachi Favors. São apresentados sete temas, com passagens de grande beleza lírica, temperados com muito swing, blues e improvisação. Abrams explora em seu piano elementos que vão do stride ao erudito contemporâneo, em um diálogo muito vivo com Favors – baixista de grande invenção, talvez menos reconhecido do que merece. Os extremos sonoros do álbum estão em sua abertura e encerramento: o disco inicia com uma peça dedicada ao baixista Wilbur Ware, figura importante do bop, soando a atmosfera de seu universo; e encerra com “Unity (Dedicated to AACM)”, que destaca os pontos mais avant garde do conjunto.
Lifea Blinec
Arista Novus
Ano de gravação: 1978
Abrams convocou um de seus mais antigos parceiros, Joseph Jarman, para essa empreitada. Em quinteto, que contou com o também saxofonista Douglas Ewart, Amina Claudine Myers e o percussionista Thurman Barker, são exploradas cinco de suas composições. O colorido AACM – por vezes, ecoando o Art Ensemble of Chicago, como na faixa-título – está fortemente presente, em um conjunto muito vivo e coeso, no que é um dos registros mais caracteristicamente free jazzísticos de Abrams (mesmo o tempero energy music, que não é central em sua música, se mostra bem marcado, em especial em “Ja Do Thu”). Um disco realmente intenso.
Blu Blu Blu
Black Saint
Ano de gravação: 1990
Uma das unanimidades na discografia de Muhal Richard Abrams, Blu Blu Blu apresenta uma orquestra de treze músicos interpretando oito de suas composições. O papel de Abrams como condutor e compositor se destaca em especial – mas podemos ouvi-lo em frescos solos ao piano aqui e ali. A orquestra é composta em sua maioria por músicos menos conhecidos, sendo os mais destacados Joe Daley (tuba), John Purcell (saxes) e Thurman Barker, que já havia trabalhado com Abrams em outras oportunidades. A faixa-título, dedicada a Muddy Waters, com seu ar bluesy, é irresistível.
One Line, Two Views
New World Records
Ano de gravação: 1995
Aqui está em um de seus maiores momentos o Muhal Richard Abrams compositor. Conduzindo um noneto, o músico se divide entre piano, sintetizador e percussão para criar uma música envolvente e complexa. O trabalho timbrístico é um dos pontos elevados dessa criação e vale destacar a intrigante palheta selecionada por Abrams, que traz, ao lado de sopros e percussão, uma harpa, acordeão e violino, numa simbiose que se desdobra em um vibrante colorido sonoro. Música para se descobrir aos poucos, com atenção focada.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos e foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e música para o Valor Econômico; também colabora com o site português Jazz.pt
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