Não deve passar despercebido o fato de, em tempos recentes, novos free improvisers brasileiros estarem surgindo e conseguindo fazer algo por aqui. Tradicionalmente, nossos músicos focados na free music acabaram por migrar em busca de um cenário mais vivo e acolhedor. Márcio Mattos foi o pioneiro nesse campo, partindo ainda nos 1970 para a Europa, se fixando em Londres para fazer sua história. Chegada a década seguinte, seria a vez de Ivo Perelman partir para os EUA e sedimentar sua carreira. Nos anos 2000, temos o exemplo de Yedo Gibson embarcando para o continente europeu e se instalando na Holanda. E entre Ivo e Yedo, outro saxofonista brasileiro realizou trajetória semelhante: Alípio C Neto.
Nascido na pequena cidade de Floresta, no sertão de Pernambuco, Alípio C Neto foi para Portugal em 1997. Curioso que o motivo central nem fosse a música, mas sim um PhD na área literária... Alípio lidava, ainda no Brasil, com as duas frentes: enquanto fazia mestrado em Teoria Literária na UFPE, que resultou em uma dissertação dedicada ao poeta Mário Faustino (1930-1962), desenvolvia seu trabalho como saxofonista. Uma vez em Lisboa, Alípio acabou se estabelecendo na cena jazz/improvisativa local, gravando celebrados álbuns (merecem atenção redobrada: “The Perfume Comes Before the Flower -2007”, “Paura -2008” e “Harafè -2010". Esses três trabalhos, gravados com diferentes músicos europeus e americanos, exibem sem economia a variada riqueza do sopro de Alípio e a urgência de se descobrir e explorar sua valiosa arte). Neste ano, editou com o experimentador Thelmo Cristovam o disco “Triatoma Infestans”, pela Creative Sources. 2011 também marcou seu estabelecimento em uma nova parada, a Itália, onde tem estudado a obra de Giacinto Scelsi (1905-1988), além do lançamento de seu mais recente trabalho, “Air”, trio ao lado de Francesco Lo Cascio e Federico Ughi (vídeo abaixo). Focado principalmente nos saxes tenor e soprano, Alípio vem demarcando seu território dentre os mais destacados reedmen da atual cena europeia, tendo dividido parcerias com Carlos Zíngaro, Mark Sanders, Adam Lane, Michael Moore, Dennis González -apenas para citarmos alguns. Conversei há pouco com o músico, que contou passagens de sua trajetória:
Trocar o Brasil pela Europa. Oportunidades para tocar em seu próprio país.
"Parti do Brasil para Portugal em 1997 . Antes havia vivido algumas temporadas fora que me convenceram da necessidade de buscar espaços novos para fazer aquilo que desejava. Ainda não tive a oportunidade de levar os meus projetos daqui para o Brasil. Toquei no país acompanhando o compositor Armando Lôbo, com quem gravei no seu primeiro álbum, ‘Alegria dos Homens’. Além disso, participei numa grande orquestra de frevo, como convidado, dirigida pelo maestro saxofonista Spok (Orquestra Multicultural do Recife), e fiz dois pequenos concertos na Livraria Cultura em Recife para apresentar uma parte dos meus álbuns, mas com uma formação ad hoc: do primeiro participou o trompetista alemão Johannes Krieger, que me acompanhava no ‘Wishful Thinking’; o segundo, também na Livraria Cultura em Recife, na exposição "Espaços Polifônicos" da fotógrafa italiana Rachele Gigli - música que compus para a exposição sobre o diálogo entre motivos polifônicos culturalmente distintos (Brasil, Portugal e Itália), do qual participaram músicos pernambucanos de grande talento e abertura para uma linguagem fora do ‘mainstream’ tradicionalista."
Ainda é difícil para músicos brasileiros que fazem sons menos convencionais mostrarem seu trabalho em sua terra natal?
"Acho que sim. Em 2006 fui escolhido para representar o Brasil nos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa (Fórum Gulbenkian Imigração). Fui chamado pela importância da minha contribuição como músico imigrante, brasileiro, para o jazz feito em Portugal. Vinha-me à mente a seguinte questão: nunca toquei minha música no Brasil e estou aqui representando o meu país, a minha cultura? Estranho... O anfiteatro da Fundação estava cheio, e muita gente não conseguiu entrar, ingressos esgotados para ouvir uma música fora do eixo ortodoxo do consumo."
Reconhecimento no país: há algum?
"Existe uma profunda desinformação sobre quem somos, como contribuímos e que tipo de experiência trazemos para a música brasileira e, principalmente, existe uma grande dificuldade de encontrar apoios para projetos em que os músicos se interessam mais por fazer mexer com a cabeça do que com o quadril de quem ‘consome’ música. É uma questão de política e de mercado cultural. Creio que há uma tendência a subestimar a inteligência e a sensibilidade do público. Ao contrário do que parece, falo por experiência própria, as pessoas ditas comuns, a ‘massa’, têm uma grande abertura e curiosidade para ouvir a música menos convencional."
O fato de fazer música instrumental atrapalha a divulgação de seu trabalho no Brasil?
"Há ainda no Brasil o mito de que a principal contribuição nacional como cultura popular, étnica, seja o porto seguro da canção. A bossa nova e a MPB, apesar de inegavelmente importantes, estigmatizaram o panorama musical brasileiro, reduzindo a inteligência e a abertura musical do grande público, no máximo, ao tradicionalismo do samba-canção, do chôro e aos clichês regionais, marcados principalmente por uma confusão entre o virtuosismo, o apelo sentimental e o real valor do repertório proposto. Aquela ideia de que a boa música instrumental é simplesmente uma música que é "bem tocada", isto é, de forma virtuosística e superficialmente agradável por pertencer ou seguir o cânone tradicional da cultura nacional. Mesmo assim, alguns músicos do panteão brasileiro em determinado período de suas carreiras, entre compositores e instrumentistas de grande força, como Altamiro Carrilho, Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Baden Powell et alii, sofreram imensamente para sobreviver no Brasil."
O problema é apenas nosso?
"Na verdade creio que é um problema que existe em toda parte, não só no Brasil. Desde a década de 50 que uma grande parte dos principais nomes do jazz americano não vive sem a Europa e o Japão. Eu tenho notado que hoje, com a transformação do cenário econômico, essa realidade começa a mudar e o Brasil parece mais receptivo, começam a surgir instituições interessadas numa programação voltada para o presente e para o que pode ser o futuro. Não parece mais aquele país em que cultura era o valoroso necrológio do que houve de melhor. Creio que há quem acredite na força renovadora da arte para reeducar o país, e a música, como foi para o Villa-Lobos no período Vargas, poderia, para além de abrir os ouvidos do povo, abrir a cabeça, mover, ensinar e deleitar."
Ouça/Listen Alípio C Neto em diferentes contextos:
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