A solitária mulher de Ornette Coleman (Lonely Woman revisited)
Ornette Coleman queria ser reconhecido também pelo seu trabalho como compositor. A improvisação livre strictu sensu não era, de fato, seu foco central, mesmo que seu nome seja indissociável do mais liberto free jazz. Infelizmente suas composições mais ambiciosas (cordas, orquestra) não tiveram grande repercussão, mas algumas peças que criou para seus conjuntos jazzísticos se tornaram clássicas, sendo revisitadas por gerações distintas de músicos. E nesse campo de reconhecimento, nada se compara a uma de suas primeiras composições: Lonely Woman.
Foi no disco The Shape of Jazz to Come, registrado no dia 22 de maio de 1959, que Lonely Woman apareceu pela primeira vez. Coleman estava acompanhado de seu quarteto clássico na gravação: Don Cherry, Charlie Haden e Billy Higgins. A inspiração para essa dolorida balada nasceu bem antes de sua gravação, após o músico se deparar com uma pintura que trazia uma mulher que carregava o semblante “mais solitário do mundo” – como contou Ornette em entrevista ao filósofo Jacques Derrida em 1997. “Before becoming known as a musician, when I worked in a big department store, one day, during my lunch break, I came across a gallery where someone had painted a very rich white woman who had absolutely everything that you could desire in life, and she had the most solitary expression in the world. I had never been confronted with such solitude, and when I got back home, I wrote a piece that I called Lonely Woman.”
Ornette deixaria a composição de lado por um tempo após tê-la gravado. Apenas em 1965, quando retorna de seu período sabático tocando em trio com Charles Moffett e David Izenzon, ele voltaria a colocar Lonely Woman no repertório de suas apresentações, durante a turnê que fizeram pela Europa naquela época – como pode ser ouvido nos discos não oficiais “Live at the Tivoli ‘65” e “Lonely Woman Trio ‘66”, ambos captados na Dinamarca. Essas versões ao vivo extraem o viés mais soturno da peça, com Ornette, sempre ao sax alto, ampliando as divagações em torno do tema inicial; os 4:50 minutos da versão original se espraiem por cerca de 12 minutos nessas leituras ao vivo. Especialmente interessante deve ser a perdida versão executada em fevereiro de 1968 no Royal Abert Hall, quando o quarteto de Ornette subiu ao palco junto com Yoko Ono... O saxofonista voltaria à música em diferentes oportunidades até meados dos anos 70, quando, mergulhado no projeto Prime Time, a deixa na geladeira de novo. Lonely Womanvoltaria de fato ao repertório de Ornette apenas nos anos 2000, quando passou a tocá-la ao vivo, normalmente no fim de suas apresentações – no Brasil, quando esteve em novembro de 2010, a peça foi executada no bis, para encerrar o concerto.
Verdadeiro standard contemporâneo (fora do mainstream jazzístico), Lonely Woman recebeu ao menos umas 90 versões registradas em disco (deve haver mais...) por músicos de diferentes épocas e perspectivas sonoras – afora incontáveis releituras ao vivo. Modern Jazz Quartet, John Zorn, Peter Broetzmann, Masayuki Takayanagi, Joe McPhee, Lester Bowie, Branford Marsalis, Joshua Redman, Ken Vandermark, Kronos Quartet, Diamanda Galás: é ampla a variedade de estilos e propostas dos que regravaram esse clássico colemaniano.
Há também versões com vocal da canção. A letra foi escrita pela compositora e cantora Margo Guryan ainda no fim dos anos 50 – ou seja, a letra acompanha a canção por quase toda sua existência. Isso aconteceu na Lenox School of Jazz, onde o pianista John Lewis, amigo e um dos primeiros admiradores do trabalho de Coleman, dava aulas. Margo estudou lá e recebeu a missão de Lewis de inventar uma letra para Lonely Woman. É curioso que essa versão “com letra” tenha sido a primeira a ser regravada por um artista: em 61, o cantor Chris Connor a colocou em seu disco “Free Spirits”. Não foram poucas as gravações da versão cantada e não seria absurdo especular que houve cantores que a registraram como mais uma “bela canção dos anos 60”, sem conhecer o trabalho original de Coleman. Provavelmente a mais tocante versão vocal é a do trio AM-4, conduzida por Linda Sharrock (voz), Wolfgang Pusching (saxes) e Uli Scherer (piano) – sem menosprezar a impressiva leitura de Marzette Watts com Patty Waters no vocal, cantarolando uma letra dela. Aqui, os envolvidos sabiam perfeitamente com o que estavam lidando.
“Lonely Woman” (lyrics by Margo Guryan)
Lonely in the night she wanders who can she tell of her heartache They that listen do not care They don’t share heartache She is a lonely woman, Noone to cry to at all
Once she wore a smile of gladness Now on that smile there are teardrops They that knew her didn’t care Wouldn’t wear teardrops They left the lonely woman To wander allone through the darkness
Once she loved a man Don’t bother to imagine how she loved him You'd never guess at all She never told the secret of her sorrow And yet there was someone who knew.
He had eyes that saw her sorrow He heard the sound of her sadness When he called her no one came But the same sadness He calls the lonely woman But never again will she hear him
Para ilustrar melhor a amplitude da repercussão de Lonely Woman, separamos em alguns tópicos diferentes perspectivas de quem a revisitou, destacando músicos, dentro de cada quadrante, que a regravaram, com o nome do artista seguido do título do disco e do ano em que foi lançado.
*David Liebman, Richie Beirach, Billy Hart ("Redemption”, 2007)
*Brad Mehldau, Kevin Hays (“Modern Music”, 2011)
*Dave King (“I’ve Been Ringing You”, 2012)
*Benoit Delbecq & Fred Hersh Double Trio (“Fun House”, 2013)
Outros músicos tantos que gravaram Lonely Woman...
*Kronos Quartet, hr Big Band, Frank Kimbrough, Carol Morgan, Zagreb Jazz Quartet, George Gruntz, Curtis Amy e Dupree Bolton, Cruel Frederick, Takashi Kako, Yochk’o Seffer, Ignaz Schick’s Decollage 3, Paul Van Kemenade - Ron Van Rossum Duo, Bill Leslie, Hugh Ragin Trio, Kyle Bruckmann’s Wrack, João Lencastre, Barney Wilen, Tiziana Ghiglioni, Juhani Aaltonen Trio, Giacomo Mongelli Quartet, Jaki Byard, Albin & Rebekah Zak, Freda Payne, Lisa Manosperti, Carola & Heikki Sarmanto Trio, Mecolodiacs, Jocque & Le Scott, Susanne Abbuehl, Daniele Cavallanti, The Guarneri Underground, Claudine François, Dave Goldberg, Bourbon and Coffee, Diamanda Galás et aliii...
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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o jornal Valor Econômico
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