STEVE LACY, O GÊNIO QUE REINVENTOU O SAX SOPRANO
Música e outras coisas

STEVE LACY, O GÊNIO QUE REINVENTOU O SAX SOPRANO



Em uma fria e deserta praia ao norte da Califórnia, um casal apaixonado troca carinhos e juras de amor eterno. O frêmito que percorre seus corpos denuncia a paixão que os une. Ao seu lado, um cabeludo magricela sopra um nauseabundo sax soprano, cometendo uma série interminável de xaroposos acordes, capazes de fulminar, em apenas poucos segundos, qualquer diabético que passasse por ali. O clima é de total enlevo – parece que ninguém seria capaz de perturbar aquela bucólica atmosfera.


Não obstante, a idílica sessão é interrompida subitamente, quando uma pequena lancha atraca na praia. Desembarcam cerca de dez homens, fortemente armados, e se dirigem, com semblantes nada amistosos, até o local onde estavam os nossos três amigos. Os homens do barco eram piratas somalis que, fugindo de uma patrulha americana, perderam o caminho de casa e ficaram algumas semanas à deriva, até encontrar aquela acolhedora faixa de areia. Sem que dissessem uma única palavra, engatilham suas mortíferas Kalashnikovs e disparam, impiedosamente, contra o indefeso trio, que perece ali mesmo. A débil tentativa de acalmar aqueles espíritos indômitos com uma açucarada versão de “Feelings” fora em vão!


Os homens não perdem tempo. Enquanto alguns despem os cadáveres, outros preparam uma enorme fogueira. Após semanas no mar, comendo apenas minúsculas porções de carne de camelo seca e restos de pão, eles agora poderiam saborear um nababesco banquete, digno dos seus valorosos ancestrais. No dia seguinte, todas as revistas de celebridade do universo estampariam, em suas capas, a estarrecedora manchete: “Kenny G, Julia Roberts e Campbell Scott devorados por canibais somalis”.


Um final que, se não propriamente feliz, certamente seria o mais adequado ao sujeito que atirou na lama o sax soprano e que quase fez com que esse elegante instrumento fosse relegado ao ostracismo por todos aqueles que apreciam a boa música. Mas o instrumento que fez a glória do grande Sidney Bechet agora estava vingado: nunca mais haveria de ser tão vilipendiado pelo lamuriento sopro de Mr. G.


Além de Bechet, outros fabulosos músicos se dedicaram ao sax soprano, como John Coltrane, Courtney Pinne, Benny Carter e o universalíssimo brasileiro Vítor Assis Brasil. Esse instrumento, contudo, nunca granjeou a popularidade que seus primos, o sax alto, o sax tenor e o sax barítono, mereceram dentro da comunidade jazzística. Todavia, há um músico que, dedicando-se apenas ao sax soprano, construiu uma respeitadíssima carreira no jazz e legou aos aficionados uma obra extremamente pessoal, calcada na sonoridade etérea desse singular instrumento: Steve Lacy.


O nova-iorquino Steven Norman Lackritz nasceu em 23 de julho de 1934, no bairro do Brooklyn. De origem judia, Steve se apaixonou pela música de Duke Ellington ainda na infância e aos 13 anos já extraía da clarineta os seus primeiros acordes. Aos 16, trocou a clarineta pelo sax soprano, graças à influência de Sidney Bechet, e dedicou-se ao jazz tradicional. Nos anos 50 conheceu o pianista Cecil Taylor, ligado à música de vanguarda, que o contratou para sua banda. Nesse período, abandonou o dixieland e descobriu a obra de Thelonius Sphere Monk, o compositor a quem passaria a dedicar boa parte de sua energia e talento. Ouvindo milhares de vezes as gravações do Mad Monk, Lacy produziu uma incontável série de discos dedicados a seu ídolo maior, fazendo releituras extremamente originais da produção monkiana e inscrevendo seu nome entre os maiores inovadores do jazz.


A primeira incursão de Lacy pela obra de Monk está registrada no álbum Reflections, gravado para a Prestige em uma única sessão, no dia 17 de outubro de 1958. Trata-se de um álbum extraordinário em todos os sentidos, um dos melhores do saxofonista, que ainda haveria de legar à posteridade uma discografia extensa e altamente recomendável. A começar pela escolha do impecável repertório, integrado por sete magistrais composições de Monk. Embora nenhuma delas seja das mais conhecidas (pelo menos não tão conhecidas como “Round Midnight”, “Epistrophy”, “Straight, No Chaser” ou Bemsha Swing, por exemplo), todas são de altíssimo nível, revelando toda a complexidade harmônica e melódica que o monge era capaz de conceber.

Outro ponto alto do disco são os músicos escolhidos por Lacy para acompanhá-lo. No piano, o sinuoso Mal Waldron, espécie de irmão gêmeo musical de Monk, com seus acordes espaçados e sua percussividade singular, quase metálica. Na bateria, o fenomenal Elvin Jones, que demonstra porque é um dos mais versáteis músicos do jazz, capaz de desfilar à vontade tanto em um violento hard bop quanto em uma lírica atmosfera cool. No baixo, o velho amigo Buell Neidlinger, um músico erudito quase desconhecido, que batia ponto na prestigiosa Houston Simphony Orchestra
mas que também era apaixonado por jazz, tendo gravado com certa regularidade com Cecil Taylor e Anthony Braxton.


Parece haver uma eletricidade sobrenatural percorrendo as gravações e impregnando aqueles quatro músicos. “Four In One”, que abre o disco, é um bebop tipicamente monkiano, com um andamento quebradiço, nada previsível. Jones pode ser apontado o maior destaque da faixa, com o seu tradicionalmente belo trabalho de pratos – mas dos outros deve-se dizer que estão nada menos que soberbos. A segunda música é uma balada intimista, mas com um discreto swing, que dá nome ao álbum e permite a Lacy uma exibição de técnica apurada e lirismo, enquanto o piano de Waldron parece brincar por sobre os acordes da canção.


“Skippy”, “Hornin’ In” e “Bye-ya”, com suas estruturas complexas e suas repentinas alterações rítmicas, são os veículos mais que perfeitos para o quarteto demonstrar toda a sua capacidade de improvisação e a sua completa sintonia. Elvin e Waldron estão perfeitos e o discreto Neidlinger mantém o esqueleto harmônico das composições com rara maestria. O seu baixo não se impõe pela velocidade ou pelo virtuosismo, mas pela precisão com que se coloca em face dos demais instrumentos – parece não estar ali, mas o ouvinte sente a sua pulsação. Em “Let’s Call This”, Lacy usa uma afinação mais aguda e incisiva, como se quisesse realçar as obliqüidades da canção. Em mais uma balada, a emocionante “Ask Me Now”, saxofone e piano interagem de forma quase telepática, com um instrumento fazendo o contraponto lírico à passagem do outro, e, outra vez, percebe-se o magistral trabalho de Neidlinger, a sustentar a base rítmica da música com discrição e sobriedade.


Espírito inquieto, Lacy sempre esteve aberto a novas experiências musicais, gravando nos mais diversos contextos: álbuns solo, duos, tributos a Monk, pequenos combos e big bands. Muito ligado a todas as formas de manifestação artística, sua influência ultrapassa as fronteiras do jazz e se espraia pelas artes plásticas, cinema e literatura. No final dos anos 60, com a pequena visibilidade do jazz nos Estados Unidos, mudou-se para a França, onde foi acolhido com entusiasmo pelos numerosos jazzófilos daquele país. Gravou com grandes nomes do jazz europeu, como o italiano Enrico Rava, o francês Jean-Jacques Avenel e o inglês Evan Parker. Morreu em 04 de junho de 2004, em decorrência de um câncer no fígado, que jamais deixou que o abatesse. Seu compromisso com a vida e com a arte que professava era tão grande que mesmo muito doente, ainda se apresentava ao vivo até poucos dias antes de falecer.



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PS.: Post dedicado ao capitão John Lester, cruzado moderno e incansável paladino que, a bordo da nave Jazzseen, enfrenta com muita galhardia o dragão da vulgaridade e da descartabilidade musical.



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